sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A COLEGIAL NO MEU JARDIM


F. ANTENOR GONSALVES
A COLEGIAL NO MEU JARDIM
(MEMÓRIAS DA
ADOLESCÊNCIA)
ROMANCE
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Venezuelana do Livro, Caracas, Venezuela)
Gonsalves, F. Antenor
G626c A Colegial no Meu Jardim (Memórias da Adolescência)
F. Antenor Gonsalves.
Caracas: ISKRA, 2010.
1. Literatura Latinoamericana I. Título.
10-6132
CDD-869.915
Índice para catálogo sistemático:
1. Romance: Século 21 – Literatura Latinoamericana 869.915
2. Século 21: Romance – Literatura Latinoamericana 869.915
Todos os direitos reservados de acordo
com a legislação em vigor
Hecho en Venezuela.
Revisão, diagramação, editoração, paginação, digitação, capa, arte final:
F. Antenor Gonsalves.
Foto da capa: Daiane (Flor do serrado).
Ref.: 8.692. ISKRA EDITORA
“Há mulheres que amo
quando tu não estás comigo
(o homem necessita de doses de amor e fantasia).
E ainda que as ame só no poema
não deixa de ser amor.
Previno-te pois podes um dia descobri-las entre minhas coisas.
Estas são minhas mulheres de papel.
Meus amores de caligrafia e solidão.”

A COLEGIAL NO MEU JARDIM
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CAPÍTULO I

      Entre as cinco e dez e cinco e quinze da tarde – com exceção dos domingos e feriados – quase que pontualmente, passava por minha calçada com seu uniforme de colegial: saia pinçada, sapatos pretos e meias e blusa brancas, alguns livros contra os seios como se denunciasse pudicice, bem apertados contra si pelos braços cruzados sobre os mesmos; cabelos longos esvoaçando ao vento – o que a obrigava a fazer bruscos movimentos com a cabeça para reordenar os cabelos – uma jovem de passos firmes e lentos como se a nada temesse e tampouco tivesse pressa de chegar a lugar algum, pára diante das grades do meu jardim e por entre as hastes de ferro colhe um cravo e o põe no canto esquerdo da boca e prende-o com seus dentes brancos que me lembram teclados de pianos. Calma e altivamente por entre as hastes de ferro colhe também alguns ramalhetes de jasmim; dá meia volta olhando-me por entre os cabelos, cheira os jasmins e segue pela calçada como se somente ela existisse.
      Acompanho-a com o olhar melancólico até que ela desapareça na multidão e volto a regar meu jardim e penso (quase como um consolo íntimo): amanhã ela encontrará cravos e jasmins mais belos e mais perfumados! E volto a esperar que o novo dia traga-me novamente a minha colegial anônima.
      A noite longa da espera por um novo dia por fim se foi enquanto eu nutria minha insônia com a leitura de alguns poemas, nos quais eu via sempre a imagem da colegial enigmática.
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      Sob os primeiros raios do Sol eu fui ver como amanheceram as minhas rosas, fontes de néctar aonde vinha todas as tardes (como uma beija-flor – como uma beija-flor!), não sei se se nutrir, mas me nutrir de esperanças, sonhos, desejos e interrogações a minha beija-flor vespertina e pontual.
Eu passava os dias contando os segundos... e era ainda meio dia!
      – Tenho que ser torturado ainda por mais cinco horas! – resmungava eu.
      Fui ao jardim. Senti-me como se não estivesse só. O cheiro marcantemente forte do jasmim dava-me a certeza de que a minha colegial estava ali, colhendo minhas flores; olhando-me por entre os cabelos. Apertando seus livros contra seus seios, como que buscasse segurança e proteção em um abraço amigo. O sussurro do vento soou como se alguém balbuciasse meu nome. Talvez fosse ela... Eu jamais ouvira sua voz, portanto não tive a certeza de que ela me chamasse pelo nome. Fiquei ali por todo o resto da tarde e não vi o tempo passar. Procurei ver a hora: quatro e cinquenta e três!!! Fui até ao portão, olhei para todos os lados da rua. Todos me pareciam estranhos... até os vizinhos...
      – Mas já são cinco horas!... – sussurrei desconsolado.
Dez eternos minutos se passaram e quando a ansiedade já me consumia senti como se algo magnético se aproximasse de mim – naquele momento eu cuidava de uma papoula – e me virei no rumo das grades do jardim: era ela!! Olhamo-nos de soslaio sem nenhuma palavra. Ela
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colheu suas flores. Eu pensei: São tuas; cultivo-as para ti. Senti vontade de gritar isto, mas a voz não me saiu. Ela deu sua meia-volta com o cravo entre os dentes e os ramalhetes de jasmim próximos ao nariz. Olhou-me em silêncio, mas com altivez, e foi como se ela tivesse me sentenciado:
      – São minhas! Eu sei que as cultivas para mim!
Eu tive a leve impressão de que ela deixou escapar um suave e discreto sorriso... Preferi pensar que fosse assim. E ela se foi mais uma vez; passos firmes e elegantes; sem olhar para trás; sem dizer uma palavra; sem alimentar nenhuma esperança, e a noite – mais uma infindável noite! – veio tempestiva.
Procurei ouvir música – não consegui.
Pensei:
      – Vou escrever tudo que me vier à cabeça e amanhã, quando ela vier e estiver colhendo suas flores, eu colocarei o papel em sua mão.
Vibrei com a ideia. Enfim, uma possibilidade de um contato com aquela misteriosa jovem.
      Fracassei.
      Escrevi dezenas de estrofes – centenas talvez; escrevi centenas de frases – milhares talvez; escrevi até ver que um outro dia se anunciava com a alva. E fiquei indignado quando me dei conta da pilha de papéis rasgados por todos os lados e nem um monossílabo sequer para que eu pudesse entregar à colhedora de flores.
      Foi um dia sorumbático. O próprio tempo parecia enlouquecido: ora, sol; ora, nublado; ora, o vento silvava nas árvores; de repente uma chuva que, de início, pareceu
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uma tempestade, mas não passou mesmo de uma chuvinha.
Rápido, o trágico me veio à mente, e desconsolado pensei:
      – Com chuva, certamente ela não virá colher as suas flores!...
Um raio de sol iluminou-me a face filtrado por entre os ramos de acácia – era o Sol que, por fim, surgia entre as nuvens como se violentasse um véu para reacen-der-me a esperança de que o meu fim de tarde seria festivo. Incontido, balancei alguns galhos de árvores e as gotas d’água retidas em suas folhas caíram sobre mim. Fiquei encharcado, porém alegre como uma criança no ápice de sua pureza e ingenuidade. E era assim que eu me sentia.
      Tive a certeza de que naquele instante alguém ali riu de mim (por entre os dentes – como se diz) e a mão abafando o som premendo os lábios como se não quisesse ser ouvida. Ansiei tanto que fosse a minha colegial, mas pensei:
      – Ainda não são cinco horas...
      Levantei a cabeça e olhei em direção do portão e lá estava a colhedora de flores tentando disfarçar seu tímido sorriso inclinando a cabeça, de modo que os cabelos penderam para frente, anuviando-lhe a face. Não saberia eu descrever aquele momento: seria inútil tentar. As palavras seriam vãs, inúteis, inexpressivas... assim como foram desnecessárias para nós dois por tanto tempo. Bastavam-nos aqueles encontros breves e silenciosos, onde as palavras frustrariam os pensamentos; violariam a imaginação; violentariam os desejos... Enquanto qualquer palavra que-
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braria o encanto; a magia; a sublimação. A ausência de qualquer palavra nos permitia que os pensamentos não tivessem limites. Talvez tenha sido de uma situação semelhante que tenha surgido a expressão “dar asas à imaginação” – pensei como se fosse possível sussurrar pensamentos. Ela se demorou olhando os jasmins e como se estivesse saboreando o cravo. Colheu, por fim, mais uns ramalhetes de jasmim e quase que imperceptivelmente olhou em minha direção. E eu vibrei! Preferi crer que ela tivesse olhado mesmo para mim. Eu vi seu rosto ensaiar um sorriso e ela voltou a contemplar os jasmins. E assim – por três ou quatro vezes – ela olhou simultaneamente em minha direção e para os ramalhetes de jasmim, parada; imóvel; silenciosa... Senti que ela queria estender o braço direito com alguns jasmins em minha direção, como se a me oferecê-los – seu braço esquerdo continuou apertando os livros contra seus seios e segurando os primeiros jasmins que ela colhera naquela tarde. Lembrei-me de respirar ou respirei porque fui secar o suor das mãos e percebi que eu estava anóxico. Tentei respirar fundo e lentamente. Seu rosto ainda ensaiava um suave sorriso; seus olhos pareceram-me úmidos e, concomitantemente, com mais brilho. Ela encolheu o braço que ensaiara estender com os jasmins em minha direção e o cruzou sobre os seus livros e se foi mais uma vez com os seus passos firmes, cadenciados, sem pressa, deixando para trás um profundo vazio pontuado por sextilhões de interrogações. E eu quis gritar: Até amanhã!!!, mas a incerteza reteve a minha voz na garganta. Ela já ia longe, quase um vulto na multidão, porém uma presença em tudo; marcante, indelével, inevitável – mesmo
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que se eu não quisesse, inevitável.
      Abri o portão e fiquei na calçada por um tempo que sequer tenho a mínima noção do quanto durou. E eu olhava tudo, e em tudo eu não via nada. Em cada transeunte eu procurava especificamente um rosto que somente conseguia encontrar dentro de mim mesmo. Aquele rosto parecia fazer parte do meu cérebro. Era criação minha.
Dei uma volta no quarteirão. Respondi uns-sei-lá-quantos “boa noite” e outros tantos “olá!”, “tudo bem?”, “anda meio sumido, hein?”... A rua começou a ficar vazia. A cidade começou a ficar vazia – ou tudo já estava vazio antes e eu não percebera. Eu me senti vazio; mais vazio. Já era madrugada. Pensei em voltar para casa, mas o fato é que eu nunca gostei mesmo de casa. O que ainda me pren-dia ali eram mesmo o jardim e a colegial colhedora de flores. Abomino casa; prefiro as estradas do mundo – sou um cidadão do mundo e não trocaria uma viagem qualquer que fosse pela melhor mansão do mundo. E foi com estes pensamentos que por fim me dei conta de que eu estava na estação rodoviária e que o dia já vinha raiando. Fiz o caminho inverso. Voltei para aquela casa fazendo de conta de que estava fazendo uma viagem para um encontro marcado entre as cinco e dez e cinco e quinze da tarde. Passei o dia apático.
      – Já são cinco e dezesseis!!! Há algo errado! – pensei – e como consolo, confortei-me:
      – Cinco e dezoito! Eu já desconfiava de que este relógio está adiantando... Só pode.
      – Cinco e vinte e dois! – exclamei, num misto de indignação, decepção, impotência e frustração.
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      Corri para o portão e olhei para a rua, em suas duas direções. Vislumbrei, ao longe, um vulto na multidão. Sorri por dentro: É ela. Só pode ser ela! O vulto foi se anunciando, reconstituindo formas, se definindo:
      – É ela! – exclamei eufórico.
      Ela estava cada vez mais próxima, e eu não queria que ela me visse ali, como se estivesse esperando por ela. Dissimulei que estava podando alguns galhos parasitas. Ela colheu suas flores e enquanto as colhia, eu percebi – senti mesmo – que ela me olhava sorrateiramente. Eu me virei bruscamente como se a quisesse flagrar me olhando e (quem sabe?) eu pudesse dizer-lhe:
      – Ah! Que ótimo! Consegues ver aqui algo além de tuas flores...
      Quedei-me com a boca semiaberta, pois ela, calmamente e depois de cheirar as flores, colocava algumas no ferrolho do portão, com os talos em molho enfiados no buraco destinado ao cadeado; e enquanto dava sua meia-volta para ir embora (palavrinha esdrúxula: embora quer dizer em boa hora – uma síncope criada para mau uso), olhou-me penetrante e suavemente e esboçou um tímido sorriso; cena que eu traduzi como:
      – São para ti. Guarda-as.
      Oh, se amei aquele gesto! E quanto!
      Saltei até ao portão, recolhi as flores – percebi que minha mão tremia – puxei o ferrolho do portão e fui para a calçada com as flores na mão, querendo encontrar coragem ou razão para alcançar a colegial e lhe dizer algo (qualquer coisa que fosse); agradecer, talvez, pelo seu gesto; pelas flores; por ela existir, e por que não?!
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      Andei alguns passos trôpegos e incertos como um bêbedo – sim, um bêbedo de paixão, talvez – e de repente parei no meio da rua como um louco que recupera a razão e me indaguei:
      – Mas o que é que eu estou fazendo aqui!?
      Percebi que eu quase alcancei a minha colhedora de flores (ela ainda ia ali, bem perto; eu sentia seu magnetismo – era esta a sensação que eu tinha quando nos aproximávamos: de que eu estava dentro de um campo magnético) e hesitei:
      – Devo ou não alcançá-la?
      Ponderei – parado ali, no meio da rua como aqueles bustos de parentes de politicóides, insignificantemente no meio da rua – e concluí que eu iria passar por vexame, pois o que dizer para a minha colegial colhedora de flores, se nem ao menos eu tinha certeza de que ela deixara as flores para mim? Eu nem mesmo tinha a certeza de que ela via o jardineiro além do jardim!
      Voltei a olhar para ela – já ia longe, bem longe! – e fiquei indignado: ela sequer olhou para trás! Mas me consolei, pensando em voz alta:
      – Menos mal. Pelo menos ela não me viu assim, me arrastando atrás dela.
      Entrei em casa, guardei as flores sem querer guardá-las, mas mantê-las juntas e junto a mim, porém eu não aguento casa; prefiro perambular pelas ruas; ser apenas mais um na multidão; um rosto sem identidade; confundir-me com os da rua. É assim que me sinto bem: cidadão do mundo, sem pátria e sem patrão; um gitano. Casa me deprime; sinto-me um animalzinho domesticado. As ruas e as
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estradas me libertam...
      Perambulando e pensando assim, percebi que as lâmpadas dos postes começaram a se apagar: elas são conectadas a fotossensores que são sensíveis à luz do Sol, acionando um dispositivo que desliga as lâmpadas da iluminação pública, o que significava que o dia amanhecia e eu sequer percebera.
      Lembrei-me também de que era sábado, o que sig-nificava que não havia turno integral de aulas, portanto a colegial anônima não passaria entre as cinco e dez e cinco e quinze da tarde, se é que passaria.
      Fui ver as flores que eu guardei na noite anterior entre meus papéis. Tomei-as nas mãos e tive uma breve confusão mental: eu via nas flores que eu mantinha em minhas mãos o corpo da minha colegial anônima, exalando o seu perfume inconfundível e exclusivo; e a maciez das pétalas me dizia da maciez da pele daquela misteriosa jovem que eu jamais tocara. Mas eu senti seu corpo em minhas mãos, e assim eu acariciava as flores como se fosse o corpo dela. Assim, ela era minha; deixava-se acariciar como se fosse tudo que quisesse na vida. Sim, aquilo era uma alucinação. Repus as flores entre os papéis com o propósito de desidratá-las e o tempo passou como se eu evitasse tocá-las novamente. Eu não tinha uma explicação lógica, mas eu evitava tocá-las. E não sei, com precisão, quanto tempo eu passei sem rever aquelas flores.
      Logo me relembrei de que era sábado, e os sábados são para mim como um dia dividido em dois: até ao meio-dia, é uma prolongação da sexta-feira; do meio-dia em diante é uma antecipação do domingo. Definitivamente não
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gosto dos sábados. São como dias de meia-preguiça; de meias-alegrias; de meias-felicidades; de meias-tragédias; de meias-amizades; de meias-confidências; de meias-doses; de meias-certezas; de meias-horas; de meios-amores; de meias-mentiras; de meias-aventuras; de meias-desilusões; de completas amarguras.
      Andei a esmo pela casa, como se buscasse a mim mesmo. Folheei alguns livros; tentei ouvir Pink Floyd: Another Brick in the Wall, We don’t Need no Education, The Wall… Mudei para o Bolero, de Ravel…
      Porém, nada me satisfazia. Nada ali me completava. Só a solidão me fazia companhia – única companhia. Pensei em sair; fui até o portão, mas nem mesmo para isto me sobrara ânimo. Debrucei-me sobre a barra de ferro transversal do portão, com os braços entre as pontas-de-seta do mesmo e eu fiquei ali meio contemplativo e meio apático; como dizem: “matando o tempo”, mesmo eu sabendo que quem mata o tempo mata a si mesmo.
      Surpreendi-me cantarolando:

MARRÓN
Marrón, Marrón,
Préstame una sonrisa
Te cambio ilusión.
¿De donde saco flores
Si no hay ningún balcón?
¿De donde saco flores
Si no hay ningún balcón?
Si sobran los dolores
Si falta la razón.
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¿De donde saco flores
Si nadie las plantó?
Canillita se carchita
La niñez y la alegría
Lave ropa noche y día;
Lustre, lustre bien marrón.
Monedero sin dinero
No se asuste del ladrón.
Por las calles de la villa
Se me astilla me canción
Dos niños se pelean
Por un rayo de sol.
Miseria, estay muy fea.
¿Miseria, que pasó?

      Sábado, uma hora e quarenta e dois minutos da tarde, cantarolando MARRÓN, alheio a tudo e a todos, incrédulo da vida, vejo passarem bem ali, a alguns centímetros de mim, um casal e uma jovem entre os dois, pegando nas mãos dos mesmos, como se a unir-los.
A mulher – que deduzi ser a mãe – dizia:
      – Não nos decepcione. Eu e teu pai praticamente deixamos de viver para nós para vivermos em função de você. Investimos tudo nos teus estudos... nada de namoricos. Você é muito nova e tem que antes concluir teus estudos.
      A jovem, que unia o casal pelas mãos, olhou-me por entre os cabelos (não tenho certeza, mas prefiro pensar que ela sorriu para mim) e enquanto o pai (suponho eu) falou algo que eu não ouvi bem, mas entendi que reforçava
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o que a mãe dizia, pois já iam distantes; a jovem soltou sua mão da do pai e a levou às costas, acenando para mim – quis eu que fosse isto mesmo, pois foi o suficiente para me alegrar por todo o restante do dia. Olhei no rumo dos três – minha colegial anônima e colhedora de flores enigmática e, suponho, seus pais – e vi três vultos sumindo na rua, quase como uma lembrança. Por sobre o ombro olhei para o jardim e demorei-me contemplando os pés de jasmim que, naquele instante, me pareceram mais floridos; mais perfumados; mais vivos... E eu também me senti mais vivo naquele momento e naquelas condições.
      Caminhei a esmo pelo jardim como quem está pleno de si mesmo e colhi algumas flores, dispondo-as em forma de buquê entre os dedos polegar e indicador da mão esquerda. Cheirando-as, andei rumo ao portão com o buquê próximo ao nariz, sentindo aquela mistura de fragrâncias e eu querendo descobrir o perfume de qual delas se destacava.
      Chegando ao portão, logo percebi que o casal e a filha já se aproximavam tagarelando bem mais do que quando antes passaram, principalmente a mãe que, vez por outra, era interrompida pelo marido ou pela filha, porém agora bem mais descontraídos que antes.
      Já vinham bem próximos – quase passando em minha frente – quando vi o brilho forte daqueles olhos penetrantes, ainda que eu só os tenha visto raras vezes e fortuitamente e por entre os longos cabelos, porém indiscutivelmente penetrantes e inolvidáveis.
Ela, mais se dirigindo à mãe do que ao pai, sussurrou algo meneando a cabeça rumo ao jardim, de modo que
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quando passavam exatamente por mim ainda ouvi a mãe dizer – olhando para o jardim como se eu fosse transparente:
      – Parece ser bem cuidado, ainda que pareça que por alguém sem apurado gosto em se tratando de floricultura.
      Pararam as duas; o pai andou alguns passos, mas parou também, possivelmente para reclamar:
      – Vocês vão ficar aí, paradas, olhando sei lá o que ou quem?!
      A mãe – como se sequer tivesse ouvido o marido – disse, com certa desfeita:
      – Por exemplo: se fosse eu, plantaria na entrada alguns bem-me-queres e mal-me-queres; também algumas orquídeas e avencas dispersas por todo jardim.
      Virou-se lentamente e como se nem ao menos houvesse me visto (confesso – com profunda tristeza – que me senti transparente) e disse para a filha:
      – Vamos, antes que teu pai... – ela não completou a frase e se foi, seguida pela filha que ainda olhou para trás e o seu silêncio foi como se ela estivesse me dizendo:
      – Liga não; minha mãe é assim mesmo.
      Eu não encontrava explicação, mas eu tinha a sensação de que ouvia os pensamentos dela. Mas logo dando conta de mim, assustei-me com a dúvida:
      – Ou será que estou enlouquecendo?!
      Lembrei-me naquele momento das palavras de Horácio, pensador romano: Dulce est desipere in loco. (“É agradável perder o juízo no momento certo.”).
      Foi-se o sábado!
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      Minha colegial anônima não colheu suas flores e possivelmente no dia seguinte ela nem ao menos passaria, pois certamente no domingo não haveria aula. E pensando assim fui tomado por uma profunda melancolia; e quando eu estou “em crise” – como dizem os de casa – eu prefiro perambular pelas ruas ou pegar a estrada. Entregar-me ao acaso, como costumo dizer.
      Fiquei por alguns minutos – ou horas, talvez?! – vagando pelo quarteirão, porém na proporção em que as ruas iam ficando desertas eu ia me distanciando mais de casa, não como se eu preenchesse aquele vazio, mas como se aquele vazio me preenchesse. Como se aquele vazio fosse parte de mim mesmo.
      Pela madrugada, alguns casais que vinham de suas festas me saudavam ao passarem por mim – às vezes com uma observação:
      – Você não dorme mesmo, hein?!
      Eu seguia pensando:
      – Sou o mais noctívago dos noctívagos!
      E vagando pelas ruas, vi nascer mais um dia – era domingo. Um domingo como todos os outros: sem perspectivas; sem flores; sem beija-flor; sem risos; sem olhares expressivos (tão expressivos e tanto que prescindiam palavras). Um domingo sem ser desejado; sem ser pedido; sem ser querido; sem ser agradável. Intruso; inquietante; inoportuno... feito para os que querem folga e para os folgados, conforme dizia uma amiga minha. E assim são mesmo os domingos – uma lacuna na vida com hora prevista para iniciar e findar.
      Voltei para casa como sem querer voltar; chutando
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pedras pelo caminho. E até que era agradável aquilo, pois me dava a sensação de chutar para bem longe as mágoas; os dissabores; as amarguras; o ostracismo.
      Até chegar em casa eu respondi uns-sei-lá-quantos “bom dia!”; “bom domingo pra você” (e aqueles bom domingo pra você me soavam como uma provocação; uma ofensa)... Mas eu compreendia: eles não sabiam como são meus domingos.
      A ferrugem do portão dissolvida no orvalho da noite me lembrou sangue, e tanto que por vários segundos eu fiquei na dúvida: isto é sulfato ferroso ou sangue? Mas me lembrei de que as hemácias (glóbulos vermelhos) são vermelhas pelo sulfato de ferro, e murmurei como se falasse com o portão:
      – Sangue cheira a ferrugem!
      Destranquei o cadeado e entrei vagarosamente como sem querer entrar, e quando fui trancar o cadeado eu hesitei:
      – Ora!! Mas para que cadeado, se eu não vou aguentar
ficar em casa mesmo?!?!
      Passei pelo jardim imaginando caminhar por um corredor de bem-me-queres e mal-me-queres e assim quase esmago uma gata que – depois de se espreguiçar – veio me recepcionar, se entrelaçando em minhas pernas; buscando carinho; buscando companhia. Pensei alto, como se falando com a felina:
      – Somos bem parecidos...
      Passei-lhe a mão no dorso e entrei em casa, seguido pela gata que miava e se entrelaçava em minhas pernas.
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Foi aí que eu me lembrei que precisamos comer para viver. A gata estava com fome... Dei-lhe de comer... Pensei:
      – Eu também preciso de comida... – mas preferi tomar um banho.
      Ainda eram seis horas e trinta e sete minutos daquela manhã enfadonha e malemolente! E quão longo seria para mim aquele dia!
      Fui à biblioteca, que ficava no sótão da casa, e com as mãos para trás eu fui lendo os títulos dos livros – todos velhos conhecidos – porém sem tocá-los; eu lia somente o que estava escrito no dorso dos mesmos. Era tudo repetitivo para mim, naquele momento. Resolvi ir para o quintal, onde havia uma espécie de subsolo ou bunker ou casamata – como queiram – onde eram guardadas as armas do meu avô e vários livros censurados, já que estávamos nos primeiros anos da ditadura militar. Um cheiro forte de mofo me provocou uma crise de espirros, mas por nada eu iria perder a oportunidade de estar ali, sozinho, com toda liberdade de manusear qualquer arma daquelas que sempre despertaram em mim a mais profunda curiosidade – curiosidade alimentada pelo proibido – e, ao menos, folhear aqueles livros tão censurados e tidos como subversivos, pois de modo algum eu conseguiria retirar um livro daqueles para eu ler, pois mesmo que seus donos mos emprestassem, o risco de ser flagrado e delatado aos órgãos de repressão era grande.
      E o simples fato de ser flagrado com um livro daqueles pelos órgãos de repressão poderia significar desde as mais cruéis torturas até mesmo a própria morte, mas não me contive e folheei – lendo aleatoriamente alguns tex-
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tos – livros como PORQUE OS RICOS NÃO FAZEM GREVE, DE MARX A MAO TSE TUNG, MANIFESTO COMUNISTA, A MARCHA, GEOGRAGIA DA FOME e alguns outros mais.
      Dei-me conta de que já passava do meio dia – a manhã se fora sem eu perceber os segundos.
      – Menos mau. – pensei em voz alta, e saí com a sensação de que deixava um tesouro para trás.
      Fui ao portão para dar uma olhadela na rua, porém me lembrei de que havia cozinha na casa, e isto me deu uma leve sensação de fome. Entrei em casa como se a contragosto, fui até ao fruteiro e peguei algumas bananas para comer e saí para o jardim descascando automática e lentamente a fruta que eu nem decidira mesmo comer. Eu não sentia fome. Queria mesmo era andar a esmo pelas ruas, como se a buscar a mim mesmo.
      Detive-me no portão somente enquanto eu comia as bananas – agora, com avidez, pois eu queria era sair. Fui para a calçada ainda mastigando e procurando para um lado e outro da rua o que eu não perdera.
      Aquele domingo era definitivamente mais longo do que todos os outros; um dia sem fim. Um dia para eternizar todas as ânsias e sepultar todas as esperanças. Um daqueles dias em que se chover, queremos sol; se fizer sol, queremos que chova; se fizer frio, queremos calor; se fizer calor, queremos frio... e assim, nada nos satisfaz. De fato o que eu queria mesmo era que aquele domingo sem fim findasse!
      Fui ao ginásio – nem mesmo sei por que, mas fui – e ao chegar ouvi murmúrios:
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      – Olha só quem chegou!...
      – Ih! Maomé veio à montanha...
      Estavam alguns conversando, outros ensaiando jogadas de voleibol, outros correndo em volta da quadra, como se se aquecessem para uma grande contenda.
      Alguns vieram conversar comigo:
      – Entra aí. Vamos jogar...
      A contragosto ainda ensaiei algumas levantadas e cortadas. Fiz alguns passes. Bati alguns saques... Enfim, esqueci por alguns minutos o mundo lá fora, mas o mundo lá fora pulsava dentro de mim: como esquecer que ainda era domingo? Como esperar – com ansiedade e incerteza – que amanhã, talvez, a minha colegial anônima viesse entre as cinco e dez e as cinco e quinze da tarde colher suas flores?! Como expulsar de minhas entranhas a essência do que me fazia encontrar na vida uma razão de viver?! Como, principalmente naqueles dias sombrios de profundas incertezas semeadas pela ditadura militar, manter acesa alguma réstia de alegria senão no inimaginável: uma colegial que às tardes – na volta da escola para sua casa – parava em frente ao meu jardim para colher as flores que eu tão zelosamente cuidava para ela?!? E mais ainda: é que por aqueles dias eu fora expulso da escola por “atividades subversivas” e estava ali, na casa de parentes, esperando – se é que podia haver esperança naqueles sombrios dias – que “as coisas se acalmassem”, pois havia parentes influentes e poderiam – quem sabe? – até mesmo reverter a minha situação. E era até fácil argumentar:
      – Isso são coisas de adolescente... – conforme diziam alguns parentes mais consternados do que solidários.
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      Na casa, eu estava morando sozinho, ou mais exatamente com a gata e alguns outros bichos noctívagos: vez por outra, nas raríssimas vezes que eu parava em casa, eu via alguns morcegos comungando comigo os figos que adoro tanto. A gata, quando eu me demorava demasiadamente pelas ruas, ela era premida pela fome a caçar alguns ratos – talvez, habitantes do sótão, já com direito a usucapião.
      Saí do ginásio sem olhar para trás e acenando enquanto quase gritei um até mais inseguro; dúbio; sem convicção. E fazendo uma superficial análise da minha situação escolar (já quase no fim do período letivo, expulso de uma escola pública federal por subversão, possivelmente eu não conseguiria matrícula em nenhuma outra escola); e caminhei pelas ruas como quem vai a um encontro marcado, mas sem endereço certo. E de tanto vagar sem endereço certo aonde ir, por fim dei-me conta de que eu já ultrapassara os limites urbanos da cidade, seguindo a pé por uma estrada que eu não sabia aonde iria me levar.
      Subitamente senti um forte aroma de jasmim misturado com flor de laranjeira e somente então me lembrei de casa, da biblioteca, do meu jardim, das flores... da minha colhedora de flores! e descobri com surpresa que era possível esquecê-la, nem mesmo que fosse por alguns minutos. Localizei-me geograficamente, peguei uma rua quase sem iluminação pública – ali era mais evidente o descaso da administração pública com a periferia – , ruas esburacadas, esgotos a céu aberto, bocas-de-lobo sem tampas (eu ainda quase caí em um, sobrando-me disto leves arranhões na perna direita, à altura da panturrilha), crianças nas
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ruas sombrias brincando de brincar como qualquer criança do proletariado sem brinquedos industrializados e tampouco importados. Entrei em uma viela que me levou à avenida principal e somente aí eu tive certeza de que já estava perto de casa, mais perto do que eu supunha, pois já sentia o aroma dos jasmins; já vislumbrava as árvores do jardim que na proporção em que eu andava pareciam fantasmas dançando inebriados.
      Por fim, cheguei.
      Mais tateando o cadeado do portão do que vendo qualquer coisa naquela penumbra, apalpei juntamente com o cadeado algo macio, o que me fez puxar a mão com rapidez, porém eu tinha que abrir o cadeado; e o procurei novamente tateando na penumbra. Apalpei de leve e senti que na alça do cadeado havia um buquê de cravos. Saquei os cravos imaginando tudo que houvera em minha ausên-cia: certamente a minha colegial anônima passara – esbravejei comigo! pois como me perdoar por ter saído?! – e certamente aquilo era mais que um recado: uma advertência. A imaginação era fértil e suspirei (quase um gemido):
      – Cravos simbolizam punição.
Entrei em casa com os cravos nas mãos e indignado comigo por ter saído. E eu li os cravos como se lesse um bilhete. Estava escrito nos cravos que eu tinha nas mãos e que a colhedora de flores me deixara no cadeado do portão um recado tão legível como caligrafias em um pedaço de papel, observadas cuidadosamente todas as regras ortográficas e gramaticais, eu li nos cravos:
      – Estive aqui. Ainda te esperei, depois da surpresa inicial de – com tristeza e amargura – constatar que tu não
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estavas. Fiquei triste por isto, mas procurei entender: pelo fato de não haver aulas aos domingos, imaginavas que eu não passaria por aqui, hoje. Compreendo, apesar da tristeza provocada por tua falta. Nem mesmo tive ânimo para colher os jasmins, mas deixei os cravos para que soubesses que não te esqueci. É que depois das quatro horas da tarde eu saí para dar uma volta com o meu irmãozinho e fui me distanciando de casa e sem me dá conta eu já estava parada, diante do teu portão!... Era como se você estivesse me esperando!... A casa estava fechada, mas isso não significava que você não estivesse. Até aí, tudo bem, mas quando olhei para cada lugar do jardim e não te vi, e para com-pletar vi o cadeado no portão, só me restou a triste certeza de que você havia saído. Fiquei ali, parada, sem ação. Meu irmãozinho queria passear, enquanto que eu não sabia o que eu mesma queria. Peguei estes cravos que você logo terá nas mãos e saberá de mim. Depois, voltei para a minha casa, desconsolada – o que não deu para esconder – e minha mãe quis saber “o que houve”. Eu respondi apenas nada; estou bem. Ela ficou com cara de quem não acreditou. Eu fui para o meu quarto – disse que ia terminar um trabalho da escola. Deitei-me na cama e fiquei pensando em ti até adormecer.
      Boa noite e até amanhã.
P. S.: Senti tua falta.

      Nos cravos eu lia o dito e o não dito. Eu lia o que eu queria; o que me satisfazia; o que me confortava, mes-mo que nos cravos-bilhete estivesse escrito no domingo à noite o que teria acontecido na segunda-feira, o dia seguin-
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te! E era possível: bastava eu querer e ali estava escrito o que eu quisesse. Tudo é possível para um sonhador. Ela me dizia hoje, nos cravos, o que aconteceu amanhã! Era isto o que eu queria, e pronto.
      – Incrível! Estou delirando! – exclamei, mas com alegria por poder ter aquele delírio. Aquele delicioso delírio. Senti-me um poeta, capaz de criar um mundo onde tudo era possível, bastando para isto minha simples vontade. Eu substituía palavras; trocava frases; adaptava fatos... tudo conforme o meu interesse. E hoje eu penso: Quão bom se a vida fosse mesmo assim!
      Guardei as flores; acariciei os espinhos. Amarguei as horas (longas horas que até desconfio de que uma hora se divide em dez décadas – ou mais!) e afaguei a solidão até ver a segunda-feira raiar.
      A cidade voltou a ficar barulhenta; agressiva também aos meus ouvidos; aos meus pensamentos.
Fiquei na calçada por alguns minutos (talvez tenha sido horas, não sei precisar) observando a loucura do homo sapiens pela sobrevivência ou pela mera competição de poder consumir mais... Refleti sobre isto – profundamente refleti sobre isto – e murmurei com indignação:
      – Jamais serei assim!
      E eu disse isto com um suspiro de alívio, como quem tira de sobre si um imenso fardo. E suspirei aliviado.
      Fui até a esquina. Pensei em ir um pouco mais adiante: até a pracinha dos pombos, onde um poeta popular passava o dia tentando vender seus livretos e, quando conseguia vender um, jogava um punhado de milho para as aves.
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      Mas não: lembrei-me de que eu largara a casa aberta e ralhei comigo em voz alta:
      – Seu irresponsável! A casa de veraneio dos parentes, confiada a ti, com relíquias guardadas de valores histórico e sentimental inestimáveis, sem contar o risco do comprometimento de dar abrigo a um subversivo clandestino, e tu largas lá, de portas abertas, como se a ingratidão fosse teu prazer!
      Voltei com profundo sentimento de culpa, e tanto que pus comida e água para a gata, subi ao sótão para verificar os livros, desci ao subsolo para verificar também se estava tudo em ordem; tirei um pouco as teias de aranhas – a contragosto, mas tirei, me perguntando:
      – Por que não deixar as pobrezinhas na casa delas? Afinal de contas não estão fazendo mal nenhum a ninguém! A casa é grande; há lugar para todos, e além do mais eu não ocupo muito espaço e bem que elas poderiam ficar no lugar que eu ocuparia. Ademais, só estou aqui meio escondido; enquanto essa onda passa. Elas poderiam ficar para sempre.
      E pensando assim, tirei apenas as teias de aranha que literalmente davam na cara – mais da metade ficou, e eu fiquei como meio satisfeito; meio feliz.
      Por fim, saí de casa depois de certificar-me de que todas as portas e janelas estavam bem trancadas e fui à pracinha dos pombos; e lá cheguei quando o poeta popular jogava dois punhados de milho para as aves, o que me fez deduzir que ele vendera dois livretos a um mesmo leitor, o que já era um grande feito! Talvez gente de fora, pois o povo do lugar – ainda que acima da média nacional gostas-
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se de ler – não valorizava tanto os artistas do lugar.
      O comprador dos livros começou a folhear os livretos ali mesmo, lendo alguns textos como se estivesse balbuciando, e vez por outra olhava para o poeta. Depois de folhear os dois livretos ele se dirigiu ao poeta e fez alguns comentários (a meia voz e apontando especificamente para algumas páginas). O poeta balançava a cabeça como se concordasse com o que ouvia.
      Fiquei sabendo que o sujeito era do serviço de inteligência e dissera ao poeta que aqueles textos – em especial aqueles textos – deveriam ser borrados, se não quisesse que todos os demais exemplares fossem recolhidos e “outras consequências mais graves, isto é: na proporção da gravidade do conteúdo dos textos”. “E isto era a prova de que o regime era justo e tolerante” – salientara o agente da repressão.
      O poeta apenas concordou e já começou recolher os livretos para as devidas providências, pois até que era fácil borrar aquelas estrofes e além do mais conseguira vender dois livretos de uma só vez, pois era disso que sustentava a família: trocando os miolos da cabeça por miolos de pão.
Mandou chamar um dos filhos para ajudar borrar aquelas estrofes indesejadas e malditas por duas razões óbvias e compreensíveis: criar problema com aquela gente poderia significar o fim de tudo e, segundo, aquilo era mais do que seu ganha-pão: era seu oxigênio; era sua própria vida, enfim.
      Eu quis intervir. Eu era dominado pelo caráter rebelde e indomável, mas ponderei: primeiro, esses tiranos i-
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rão se vingar no poeta e, segundo, minhas condições de clandestino não são nada recomendáveis para essas impulsividades. E saí pela rua com cara de vencido sem direito a revanche.
      Com o Sol bem no horizonte ocidental, iluminando-me bem de frente o rosto, lembrei-me de ver a hora: quatro e cinquenta e quatro! Acelerei os passos no rumo de casa, e disse para mim mesmo – em voz alta, como se dissesse para todos da rua:
      – Ainda dá tempo de chegar em casa. – e desconfio de que algumas pessoas pensaram: “esse, deve está com uma dor de barriga muito forte!”.
      Mas continuei rumo de casa como se meio correndo. A ansiedade funcionava como molas nos meus pés. Cheguei quase ofegante, mas em poucos minutos – menos da metade do tempo que eu levava normalmente para fazer o percurso entre a pracinha dos pombos e a casa.
      Cinco horas e dois minutos!...
      – Ufa! Receei que não desse tempo... – suspirei aliviado e meio ufanoso.
      Destranquei o cadeado e parei por alguns segundos olhando em minha volta, paralisado pela dúvida de se eu deveria entrar em casa ou não. Passou um casal por mim, ali parado como se mumificado, e me saudou com um:
      – E aí?... Tudo bem? Sempre se exercitando, hein!?
      Os segundos voavam, até que me decidi.
      Entrei em casa e dei uma averiguada para conferir se estava tudo normal. Conferi a alimentação da gata, subi ao sótão, fui ao subsolo... e como tudo parecia bem à primeira vista, rapidamente eu tomei um banho e voltei para o
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jardim e lá fiquei dissimulando cuidar das plantas, porém mais cuidando da rua ou, exatamente, do rumo de onde vinha do colégio a minha colhedora de flores.
      Tentei calcular o tempo que já não a via (e quanto tempo!):
      – Foi sábado à tarde – comecei a refletir e calcular – quando ela passou com os pais, a última vez que a vi: quarenta e nove horas e trinta e sete minutos! Isto significa que são decorridos 2977 minutos! Que por sua vez totalizam 178620 segundos! É tempo demais!!!
      E os minutos pareciam eternidades e exclamei impaciente:
      – Atroz, triste e infindável é um minuto: um... dois... três... quatro... cinco... Sessenta segundos sem ti!!!

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CAPÍTULO II

      Caminhando por entre as roseiras do jardim (procurando recuperar o fôlego que perdera não tanto pela corrida, mas mais pela ansiedade de rever a minha colegial anônima) assustei-me quando bateram no portão chamando-me a atenção. Apressei-me em atender, e o sujeito estendeu-me a mão com um calhamaço de contas: água e esgotos, energia elétrica, telefone, taxa do asfaltamento da rua, IPTU... Como um cão raivoso, encarei o entregador de contas (e olha que eu não imaginava sequer que existisse tal profissão!) e em minha expressão de raiva estampada na minha cara estava escrito:
      – Se manca, meu! Vê se consegue uma profissão menos odienta.
      E ele ainda me disse, já me dando as costas:
      – Desculpa aí... é o meu ganha-pão e dos meus filhos. Se eu não fizer isto vou parar debaixo da ponte.
      Fiquei com as contas do mês nas mãos e o olhar na rua. Não queria correr o risco de entrar em casa para guardar os papeis (que chegam mensal e infalivelmente feito regra de mulher) e perder a passagem da minha colegial colhedora de flores que, por sinal, já estava atrasada ou, pior ainda, já passara. Esta possibilidade me apavorou. Aumentou minha ansiedade ou – sei lá – dosou minha ansiedade com pânico! Comecei a me culpar por ter saído de casa ou, vai lá que tivesse saído, mas que não me demorasse tanto, principalmente àquela hora da tarde. E ainda, como se não bastasse, fui me envolver (mesmo que à distância e sem intervenção direta) no caso do poeta e seus
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poemas censurados. Neste ponto lembrei-me do axioma: “Quem cuida da vida dos outros se esquece da sua.” Olhei as horas: cinco e vinte seis! Como desesperado, abri o portão e fui para a calçada com o calhamaço de contas nas mãos. Andei para um lado e outro, mas sempre com a atenção voltada para o rumo do colégio, onde estudava minha colhedora de flores atrasada. Parei. Mirando ao longe uma jovem que vinha parecendo vestida com o uniforme escolar eu exclamei: Parece que é ela! – Não. Não era. Não havia nada parecido naquela jovem com a minha colegial; foi o que constatei ao vê-la se aproximar. Aparência apenas criada pela minha imaginação; pelo meu desejo de que fosse. Esbafori extremamente decepcionado. Eu estava atônito e incrédulo... Especulei-me divagando como numa espécie de pânico sobre o que poderia ter acontecido. E como sempre – ou quase sempre – nestas circunstâncias eu só conseguia imaginar o pior; e o pior poderia ser um acidente; uma doença grave... quem sabe sarampo, catapora, caxumba... pois eram as doenças da época que poderiam impedir de que um bom aluno fosse à escola – e isto porque se tratava de doença contagiosa e colocaria a saúde (entenda-se frequência escolar) dos demais alunos em risco. Também cogitei da possibilidade – pelo fato de o pai dela ser funcionário público – ele ter sido transferido para outra cidade e levado de imediato toda a família. E foi neste ponto que eu fiquei indignado; revoltado; inconformado... e murmurei com profundo pesar: Puxa! Ela poderia ter ao menos me deixado algum sinal. Mas fui retomando a razão e ponderei: Vai ver que ela sequer teve tempo!!! Certo é que eu não conseguia pensar algo de bom
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– se é que eu conseguia pensar. Eu só imaginava que alguma tragédia ocorrera. E isto era uma tragédia para mim. Ocorreu-me de que seria possível que ela estivesse inter-nada em algum hospital (que não eram muitos – o que me fez pensar de pronto: É pra já!) e eu tinha ótima relação com os profissionais da área de saúde, portanto a encontraria com facilidade, caso ela estivesse mesmo hospitalizada. Saí de hospital em hospital com o calhamaço de contas nas mãos procurando por uma jovem que eu sequer sabia o nome. Mas discretamente e já que minhas visitas eram frequentes e até mesmo esperadas, a minha busca foi relativamente fácil; e visto que eu sempre me inteirava sobre quais eram as mais recentes internações, as últimas altas e os possíveis diagnósticos. Procurei especificamente se alguma jovem aparentando entre dezesseis e dezessete anos fora internada entre sexta-feira e até aquele momento (tomei o cuidado de procurar se desde sexta-feira, pois nunca se sabe...). Tentei explicar para a recepcionista que estava havendo “um surto de meningite” – conforme órgãos oficiosos – mas quando falavam de que se tratava mesmo de uma epidemia, os militares justificavam para as massas de que eram “boatos de subversivos querendo desestabilizar o regime”. Pois é... Aqui mesmo só se fala no assunto aos cochichos, e estamos todos com medo... mas de sexta-feira até hoje não deu entrada ninguém com essas características – concluiu a recepcionista, mudando de assunto com a aproximação de uma médica que veio me cumprimentar, dizendo:
      – Sempre preocupado com o povo, hein! Tem escrito muito, ultimamente? – ela procurou saber se os papéis
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que eu tinha nas mãos eram rascunhos do próximo livro, ao que eu disse que eram as contas do mês.
      Agradeci a uns e outros; despedi-me e disseram:
      – Não some não. Venha mais vezes.
      Voltei para casa com cara de vencido; com ânimo de desesperançado; com passos de indeciso; com jeito de inconformado; com voz de engasgado.
      Cheguei em casa lá pela meia noite. Por fim guardei os talões das contas.
      Desejei muito saber com exatidão o endereço da minha colegial anônima, pois eu apenas tinha imprecisa noção do setor onde ela morava, norteado pelo rumo que ela tomava quando passava pelo meu jardim. Porém não me encorajei ir à rua dela. E talvez eu nem mesmo fosse ainda que eu soubesse do endereço dela com precisão. A hora era inconveniente. Também aquele não era o meu setor favorito para o meu vagar noturno.
      Olhei as horas: uma hora e dezessete minutos de uma madrugada outonal!!! Ansiei que amanhecesse para eu ir à escola da minha colegial anônima, pois certamente alguém da direção ou alguma colega dela poderia me dar qualquer notícia dela. Mas ponderei: como procurar por alguém de quem nem mesmo eu sei o nome?!
      Às sete horas da manhã eu entrei na escola junto com as alunas (a escola não aceitava alunos – só matriculavam mulheres), e fui direto à diretoria. À diretora eu expus a minha preocupação (ou aflição), porém no franzir do cenho da diretora eu pude ler: Mas por que a preocupação? Você nem sabe o nome da aluna! Tampouco é parente da mesma! Eu expliquei que essa jovem passava to-
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das as tardes em frente a minha casa, mas estranhamente deixara de passar e me acorreu supor que algo grave lhe houvesse acontecido... Porém a diretora (meio desconfiada) disse-me que não estava sabendo de nada a respeito da mesma, mas que eu fosse à secretaria, pois certamente lá alguém me informaria algo sobre a mesma, até mesmo se houve algum pedido de transferência ou atestado médico. Também na secretaria ninguém sabia informar nada, exceto uma professora que, me olhando por sobre os óculos, disse secamente e como se falasse para ninguém:
      – Essa menina vem ultimamente irreconhecível. Mal presta atenção às aulas. E agora deu para faltar...
      Nada me restou senão agradecer e sair com cara de quem recebeu o resultado de um exame laboratorial que dava resultado positivo para uma doença incurável.
      Pensei em ir para casa, mas desisti: fazer o que lá se não havia ninguém para eu esperar?!
      Vaguei pelas ruas como quem planta silêncio e colhe solidão. Apenas caminhava, sem vontade de chegar a lugar algum. Talvez buscando a mim mesmo, pois eu já não sabia aonde ir procurar pela minha colegial anônima agora sumida!
E antes, já amanhecendo a terça-feira, quando cheguei em casa depois de uma madrugada de quase infinito vagar pelas ruas da cidade vazia, agora ainda mais vazia, dei-me conta de que eu já não tinha mais tanta convicção de que a minha felicidade eu não saio a buscá-la por aí, pois eu a levo comigo, cá dentro, aonde eu vá. Não: eu já não tinha mais esta convicção. Eu sentia que um imenso amargor e uma sensação de infelicidade ocupavam o espa-
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ço que ficara vazio em mim sem a minha colegial anônima e colhedora de flores, pois eu agora a imaginava semeadora de espinhos. E eu me sentia com cara de quem quebrou o jarro e despetalou a flor.

¿De donde saco flores
Si nadie las plantó?

      E suspirei umas-não-sei-quantas-vezes estes versos. Exaustivamente eu suspirei estes versos até ver que já era meio dia e quarenta e sete minutos. Corri para o portão na esperança de que – quem sabe? – a minha colegial passasse, indo para a sua escola. Ali fiquei quase imóvel por mais de uma hora. Ela não passou. Minha angústia não passou. Permaneceu a terrível interrogação: onde está minha colhedora de flores?
      Olhei para o chão do jardim: estava forrado de pétalas murchas, quase secas... Dei-me conta de que eu abandonara o jardim já havia três dias. Nada ali parecia como há três dias. Só então tive noção do tempo e esbravejei. Indignei-me com a minha impotência diante das horas.
      Quanto tempo sem a ver ou, pior, sem ao menos ter notícia dela. Refiz as contas de quanto tempo de buscas e esperas:
      – Sábado à tarde, às quatro horas e dezessete minutos, quando passou com os pais... Agora já são dezoito horas e trinta e quatro minutos de terça-feira... Setenta e quatro horas e dezessete minutos! O que somam 4450 mi-nutos e 20 segundos que, por conseguinte, perfazem 267012 segundos!!!
      Pensei sussurrando e esbravejando:
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      – É tempo demais!
      Em algum lugar do jardim, de espreita, a gata miou ou disse:
      – Demaaaaiiiiisss!!!!!!!!!!!!!! – garanto que ouvi isto; não ouvi um miado. Onomatopeia nada! A gata falou a minha língua!!! E fiquei intimamente feliz por ouvir uma voz solidária.
      Em seguida ouvi o barulho de um figo caindo – os morcegos também davam seu sinal de solidariedade. Ouvi também, vindo do sótão, aqueles gritinhos agudos de ratos e me alegrei mais ainda; e eu disse meio emocionado e quase gritando:
      – Obrigado, amigos, pela solidariedade.
      Com novo ânimo, procurei um rastelo e rapidamente dei uma geral no jardim e me assustei com o monte – quase montanha – de folhas e flores...
      Entrei em casa como se eu fosse visitar a mim mesmo – e tanto que quando cheguei à porta quase falei: Ó, de casa?! Eu buscava a mim mesmo; eu precisava me reencontrar; mas enfim entrei, ainda sem saber o que fazer naquela casa, como ainda não sei o que fazer em uma casa e tampouco para que serve uma casa. Ah! Já sei: para se tomar banho quando se está na zona urbana. Então, já que serve para isto, tomei banho... Fui à geladeira e peguei dois bifes – um para mim e outro para a gata. Peguei umas bananas também para mim: Macetadas com bife, ficam ainda mais deliciosas! (sussurrei).
      Surpreendi-me com o meu bom humor, o que atribuí à manifesta solidariedade dos meus convivas.
      Pensando assim, já fui fechando a casa e me dirigin-
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do para a rua, agora com transbordante alegria, pois já não havia mais a sensação de estar sozinho em uma causa. E tanto que logo que cheguei ao portão, ao primeiro que vi passando já fui desejando boa noite.
      Creio que estava estampada na minha cara a frase:
      RESSUSCITADO PELA SOLIDARIEDADE!
      E assim – mais uma vez! – perambulei a noite toda pelas ruas, mas não mais me sentindo só. Eu tinha a sensação de que a gata, os morcegos e todos os ratos do sótão estavam ao meu e do meu lado, passeando como em um grande parque de diversões. Mas acima de tudo companheiros; camaradas; solidários... e afinal passei uma noite pleno de contentamento como há muito não passava.
      Só faltava para completar minha alegria – e aí eu fiz questão de frisar: minha alegria e não a minha felicidade, pois não saio a buscar minha felicidade por aí, já que aonde quer que eu vá eu a levo comigo e não a busco em nada e em ninguém – então para completar a minha alegria só faltava que à tarde, lá pelas cinco e dez ou cinco e quinze, a minha colegial reaparecesse (ela desse ares de vida, como se diz), mas aonde eu iria encontrá-la senão dentro de mim mesmo?
      Não vi as ruas vazias; não vi a cidade vazia; eu não estava vazio... Eu e os meus fantasmas povoávamos a cidade – eu, pleno de mim mesmo e dos meus sonhos velados nos becos, nas praças, nas esquinas, nas vielas... na contramão e a viés do que determinavam as normas estabelecidas a toque de cornetas e por forças de coturnos amparados em baionetas e atos institucionais.
      Naquela madrugada eu levei meu bloco para a ave-
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nida sem máscaras, sem fantasias e sem serpentinas. Era tudo o que eu queria: uma razão para viver, já que a ideologia estava com baionetas goela abaixo. Agora eu encontrara nova motivação. Eu não teria – por forças das circunstâncias e atendendo a recomendações de amigos e familiares – que me refugiar nos porões. Não precisava me camuflar nas sombras da cidade noturna para não dar muito na cara. Eu não precisava posar de parente bonzinho passando uma temporada bem merecida na casa de familiares. Não!
      Eu tinha agora a minha colegial (anônima e desa-parecida – paradoxalmente desaparecida!) para buscar, e eu já não estava só. Acima de tudo eu me fazia acompanhar da esperança; dos meus fantasmas; dos meus sonhos... E fui madrugada afora povoando a cidade – não silenciosa, mas silenciada, calada, adormecida... E eu velando a minha quase-certeza de que tão logo e presto eu teria a minha colhedora de flores enfeitando o meu jardim; colhendo seus cravos e jasmins e me preenchendo aqueles dias de adolescência clandestina. De adolescência fora da escola compulsoriamente, o que fazia de mim – como o faz com qualquer adolescente – um ocioso; um desocupado; um deserdado de futuro e do futuro.
      Eu não sabia onde encontrá-la – ainda! – mas certamente nossos laços trançados em tão poucos minutos de uma semana de colheita de flores e plantio de amizade ou – sabe-se lá – de ardentes paixões e produtoras relações obstinavam-me a encontrá-la fosse onde fosse. Custasse o que custasse.

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CAPÍTULO III

      Naquela quarta-feira eu estava chegando em casa junto com o Sol. Cheio de planos; pleno de ideias; ideal para o que desse e viesse. E viesse de onde viesse eu traria minha colhedora de flores de volta para o meu jardim. Ela voltaria a colher seus cravos e jasmins e eu – por minha vez – voltaria a ter certeza de que o futuro será sempre melhor; de que nenhum toque de recolher e tão menos as praças sitiadas impedirão a juventude de colher suas flores, construir – mesmo com gestos vagos, discretos e tímidos – um mundo melhor, baseado na amizade, fraternidade, humanismo, justiça, verdade, companheirismo... No amor, enfim.
      Oh, como eu amanhecera transbordante de entusiasmo! E oh, como esse entusiasmo juvenil me abastecia de coragem, esperança, autoconfiança e até mesmo de afoite-za; atrevimento; destemor... Eu queria a minha colegial de volta e pronto. Nada de voluntarismo, mas eu a queria de volta e isto me parecia suficiente. Quase irracionalmente suficiente, pois que sem medir consequências; sem consi-derar circunstâncias. Sem aceitar meus limites. O meu querer parecia suficiente para remover qualquer obstáculo, e isto me parecia bastar. E isto sequer me permitia lembrar de que eu era por aqueles dias apenas um adolescente forçado a viver na clandestinidade para poder sobreviver.
Passei aquela manhã em casa e animei-me a arrumar alguns móveis quebrados; alguns eletrodomésticos queimados... Colei – ainda com goma arábica! – algumas folhas e capas de livros descoladas (eu sempre tive esta ma-
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nia – ou patologia? – de não poder ver um livro mal tratado); no sótão, me demorei mais, vendo minuciosamente se os ratos não haviam estragado nada; eu tirei, com um pano molhado, a poeira de todos os móveis, pois eu nunca concordei com o uso do espanador feito com penas de pavão, já que eu dizia sempre que em poeira e mulher nunca se deve bater: batendo no pó, ele vai para o pulmão; batendo em mulher, ela nos leva para a prisão... na melhor das hipóteses.
      Por volta do meio dia – envolvido com os afazeres que consegui com minha disposição motivada pela expectativa de reencontrar a minha colegial – ouvi voz de criança a me chamar no portão. Primeiro, um bater-de-palmas frágil; quase inaudível; depois, quase aos gritos agudos de criança:
      – Vizinho!? Ó, vizinho?!
      Fui a atender. Ela me disse que a sua avó estava pedindo para que eu fosse à casa dela, pois a mesma precisaria de um favor. E pedi para que a criança fosse adiante e disse que eu iria fechar a casa e em seguida iria atender...
      Ao chegar à casa, uma mulher – pálida e frágil fisicamente – me esperava na porta:
      – Meu filho... queira entrar, por favor...
      Houve um breve silêncio enquanto eu entrava, e a mesma apontou-me uma cadeira, dizendo-me:
      – Senta aqui... Estou muito debilitada... não sei se tenho mais dificuldade em andar ou falar... qualquer coisa me cansa... Dalvinha, traga um chá de canela para o moço... Você está que é uma só interrogação, não é?... Pois bem... Você me parece um bom menino, ainda que pessoas
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na sua situação despertem outras opiniões... O que para mim reforça a minha simpatia por você...
Ela fez uma pausa; uma quase-infindável pausa, ainda que tenha durado alguns segundos. E continuou:
      – Primeiro, estive internada nestes últimos cinco dias... Desculpe-me! Sequer lhe disse meu nome... Soledad... mas me chamam mesmo Soledade... por conta deles, acrescentaram o e... Sim, como eu ia lhe dizendo: estive internada por estes últimos cinco dias... Passaram-me umas injeções para tomar em casa e gostaria que você as aplicasse em mim... São só pelancas, mas você saberá dar um jeito...
      Ela tentou altear a voz se dirigindo para a neta, que estava no quarto ao lado:
      – Dalvinha? Traga a minha bolsa com meu medicamento.
      Olhei discretamente a medicação e prognostiquei de que se tratava de uma grave infecção e anemia profunda. Fiz as injeções e ela observou:
      – Mão suave... nem senti a picada da agulha... Você pode me fazer este favor amanhã, porém mais cedo? Sem querer abusar, claro...
      – Certamente... Só não digo que será um prazer nestas circunstâncias! Mas me sentirei extremamente útil.
      – Você é mesmo especial, até mais do que já ouvi de outrens sobre você.
      Ela se aproximou um pouco mais e me perguntou:
      – Não tem receio de se contagiar, não?
      – Claro que não! Pode ficar tranquila. – respondi.
      – Enquanto estive hospitalizada uma jovem (quase
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menina) foi internada às pressas... Ficamos no mesmo apartamento, se bem que por apenas umas seis horas... Tempo suficiente para conversarmos o bastante para que... – Soledad parou abruptamente com uma crise de tosse, mas logo retomou o assunto:
      – ... para que trocássemos valiosas informações... Ela me perguntou onde eu morava... Quando eu disse meu endereço, a jovem se reanimou... Disse-me que passava aqui em frente todos os dias que vinha do colégio... Perguntou-me se eu conheço você... Falei que só de vista e de histórias contadas pelos parentes e outros... Falou que o problema dela era grave e que a estavam encaminhando para a capital... mas que antes gostaria de escrever algo e me pediu que te entregasse... Dalvinha?!
      – Oi, vó?
      – Traga-me aquela sacola marrom, do zíper quebrado.
      A mulher mexeu e remexeu a sacola e não encontrou o que procurava. Insatisfeita, esvaziou a sacola em cima da mesa e foi conferindo papel por papel. Chamou outra vez pela neta...
      – O que é agora, vó?
      – Ajuda sua vozinha a encontrar um envelopinho...
Por fim encontraram uma espécie de envelope improvisado. Ela me passou o envelope – nada escrito por fora – e sublinhou o gesto com sua voz suave (não aquele suave de convalescente, mas suave natural) dizendo:
      – Ela me pediu para te entregar isto... Boa menina!... parecia mais triste do que doente... ou doente de tristeza... De fato, foi por insistência do pai dela que ela foi pa-
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ra a capital. Os médicos mesmo disseram que... não seria preciso... mas como a família dele é de lá, segundo ela, e ele é funcionário público, ele preferiu... levá-la para lá. Ele ganharia uma licença remunerada... e visitaria os parentes...
      Creio que empalideci, ou algo assim, pois a Soledad me perguntou:
      – Você está se sentindo bem, meu filho?!
      Eu disse que estava ótimo, principalmente por ter notícia da jovem doente e, mais ainda, por receber alguma coisa que viesse dela.
      Agradeci com o mais profundo sentimento de gratidão e disse que no dia seguinte eu voltaria para fazer-lhe a injeção. Porém, ela disse que ela é que ficava imensamente grata.
      Fui para casa – nunca tive tanta vontade de ir para uma casa – ansioso para ler o que estava naquele envelope.
      – Mas não preciso de uma casa para ver o que tem em um envelopinho deste tamanho! A calçada, a rua, a praça... qualquer lugar serve. – e pensando assim, antes de chegar ao portão eu já havia lido e relido o que estava escrito em uma folha de caderno, no verso e anverso. Fiquei na calçada, com a mão no portão, como anestesiado.
      Tentando me recompor, procurei entrar em casa entre exultante e ainda incrédulo. Sem largar a folha de caderno eu lia e relia algumas frases que me pareciam inacreditáveis. Eu procurava ler as entrelinhas. Eu procurava sentir as dores da minha colegial distante; doente; sem poder colher seus cravos e jasmins por forças e circunstâncias alheias a sua vontade.
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      O que eu queria mesmo naquele momento era ir à procura da minha colhedora de flores atendendo apenas aos impulsos; sem atender à razão; sem avaliar as circunstâncias; sem considerar a lógica. Mas era tudo o que eu queria naquele momento; e tanto e tanto que voltei à casa da Soledad para procurar se ela sabia para qual hospital a colegial fora encaminhada.
Não! Não sabia! Sabia apenas que ouviu o pai e a mãe da jovem falarem em hospital dos servidores públicos.
      – Ah!... Também me lembrei agora de que ela saiu chorando e disse-me que quando voltasse... me faria uma visita... Claro que aqui em casa, e não no hospital... Ela fez questão de deixar isto claro. – disse-me Soledad como se num misto de alegria e tristeza, olhando para o vazio do horizonte como se olhasse para o passado.
      Lembrei-me de que na carta, escrita singularmente numa folha de caderno, constava: domingo, 2:45h da tarde... Procurei ver as horas: 15:37h! Quarta-feira! Olhei para Soledad que, se apoiando com as mãos no encosto de uma cadeira, parecia ter o rosto de cera de tão anêmica. Aproximei-me mais dela e pedi-lhe para ver o local das injeções. Ela disse-me com um certo contentamento:
      – Nem parece que tomei injeção!
      Agradeci e lhe disse que no outro dia, por volta das oito e meia, ou se mais tardasse até as nove horas da manhã, eu voltaria. Ela me perguntou:
      – Mas você não está pensando em ir à procura da... Não desobedeça ao coração, não, meu filho... As injeções...
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      Ela parecia mais cansada; mais reticente; mais próxima de mim, como se algo (que eu ainda não sabia o que) nos ligasse. E continuou:
      – As injeções, eu vou ao ambulatório... Faça o melhor para vocês...
      Eu estava profundamente comovido. E decidi que era melhor eu me ir. Despedi-me mais uma vez e confirmei que no outro dia (com certeza – fiz questão de frisar) eu voltaria.
      Fui para casa quase correndo. Eu queria reler aquela carta; tocar aquele papel; saber que eu tinha nas mãos algo que me veio de minha colegial, já não mais desaparecida, pois eu tinha – além de um pouco dela comigo – notícias de onde eu poderia encontrá-la. O que me impedia era a minha condição de clandestino; de pária em minha pátria - minha própria pátria! Mas mesmo assim, era só uma questão de tempo, pois o que eu estava mesmo era arquitetando um plano de forjar um disfarce e ir ao encontro de minha colhedora anônima de flores. E até mesmo pensei em levar alguns cravos e jasmins para ela. Certamente eu levaria: era nosso ponto de união. Eu já imaginava as condições em que eu poderia encontrá-la... Excesso de autoconfiança vez por outra me ajuda, outras vezes me prejudica, mas eu estava extremamente autoconfiante; só pesava a possibilidade de encontrar os pais dela... O que eu iria dizer para eles? Mas nem mesmo isto seria empecilho. Para vê-la qualquer coisa valeria a pena – se é que houvesse alguma pena...
      Decidido: eu iria. Mas quando? Já?! E o compromisso com a Soledad? Eu não seria tão irresponsável assim!
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       Ou seria? Não! Não precisaria ser irresponsável. Encontrei uma solução: faria as injeções na Soledad aí pelas oito horas da manhã e logo embarcaria em um ônibus até a capital; lá, eu poderia ficar até as duas horas da madrugada do dia seguinte e viajaria de volta, chegando antes das nove da manhã para fazer as injeções em Soledad e – mais ainda – alegrá-la com a notícia de que fui visitar a nossa enferma de nostalgia.
      Reli pela enésima vez a carta! Detive-me onde estava escrito domingo, 2:45h da tarde... Estranhei que ela tivesse ido a minha casa depois de sair do hospital e ter deixado os cravos para mim, no cadeado. Quantas dúvidas! Quantas interrogações! Antes de viajar para ser internada com uma doença grave ela ainda conseguiu ir a minha casa e deixar os cravos?! Que jovem era aquela?!
      E eu era só interrogações. Sem nenhuma resposta. Sem norte mesmo. Creio que tenha sido mergulhado neste mar de dúvidas que eu cheguei a dormir por umas duas ou três horas debruçado sobre a mesa e com a carta na mão.
      A quinta-feira já amanhecia quando acordei de sobressalto. Eu precisava tomar algumas providências para a viagem...
      Tudo pronto, restou-me aguardar o lento passar das horas. Ainda teria que aplicar as injeções na Soledad. E a ansiedade não me deixou esperar muito. Às sete horas e vinte e cinco eu fui à casa dela, o que a surpreendeu, pois eu falara que iria lá pelas oito e meia...
      – Que bom que você já veio!... pois eu já ia pedir para minha neta ir lhe chamar...
      – O que houve? – fiquei preocupado, imaginando
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que ela não estivesse bem.
      – É que tenho uma surpresa para você... Entre, meu filho... Pode sentar aqui... – ela me falou isto me apontando um banquinho que ficava em um canto da sala, quase atrás da porta.
      Pediu-me que aguardasse um pouco enquanto ela ia buscar algo. Pensei que fosse o seu medicamento, mas vi que a sacola com o medicamento estava encima da mesa. Deduzi que ela fora buscar a seringa – ainda não havia seringa descartável; eram todas de vidro e tinham que ser esterilizadas em água fervente – mas a seringa estava sobre a mesa em seu estojo original, de metal inoxidável, pronta para uso.
      Soledad voltou e olhou-me longamente com seus olhos lânguidos e disse-me:
      – Parece estar com pressa...
      – Quero viajar tão logo eu faça as injeções. – eu disse.
      – Por que viajar?... Talvez o que buscamos esteja tão perto que não vemos, assim como o nosso próprio nariz... – ela fez uma pausa, aproximou-se mais de mim e continuou:
      – Adolescência não rima mesmo com paciência, não é?
      – Rima, sim. – respondi sem entender aonde ela queria chegar.
      – Ótimo! Pois apenas rima e nada mais em comum... A adolescência é a idade do coração... pode tudo: basta o impulso... Depois, com o tempo, os anos sobem à cabeça e vem a idade da razão... e aí, a cabeça manda mas
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o corpo não obedece... Viva, meu filho, viva. A vida é viver, principalmente viver o hoje... e mais ainda: viva o momento, cada momento... Nunca sabemos o que o próximo segundo nos reserva... Quanto à viagem, não tenha pressa... você nasceu para vencer; sou capaz de afirmar que se você se atrasar, o ônibus também se atrasa... Dê-me sua mão direita – ela riu seu riso franco e pálido e continuou – vou dar uma de cigana: vejo aqui na linha do destino que o seu já está traçado... Sei que você não crê nisto, mas eu creio e isto nos aproxima mais... Quero lhe confessar que lhe tenho como um filho; um filho que nunca me causou nenhuma dor, nem mesmo a dor do parto, e que nunca me causará. Tenho convicção...
      – Eu também te tenho como minha verdadeira mãe, com o privilégio e a vantagem de ter te escolhido. – eu a interrompi com profunda sensibilidade. Ela continuou, segurando-me a mão:
      – Acompanhe-me. Como um filho levado pela mão da mãe, vamos conhecer a nossa casa...
      Ao chegarmos à porta do longo corredor, ela voltou a falar:
      – Vamos beber o seu chá de canela...
      No início do corredor, no lado direito, a primeira porta era a do quarto da neta; aproximadamente no meio do corredor, à esquerda, outro quarto, e no fim do corredor uma pequena sala de mais ou menos oito metros quadrados – nove, no máximo. Na parede à nossa frente, quase no canto direito, outra porta que nos levou a uma área de serviços.
      Congelei! Não é que eu não sabia se gritava ou não:
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o que eu não sabia era o que gritar. Abracei Soledad. Beijei-lhe a mão e quedei-me mudo. Em nossa frente, sentada em um banquinho, com uma xícara na mão onde bebera chá, a minha colhedora de flores! A Minha Colegial já não tão anônima. Vestia um vestido que a deixava ainda mais adolescente – quase menina. Não me pareceu convalescente e tão menos doente. O rosto enrubescido e um largo sorriso fizeram-me vê-la diferente. Menos misteriosa. Soledad disse:
      – Fiquem à vontade... Deem-me licença que vou à cozinha...
      Olhei a jovem por inteira. Incrédulo! Olhei profundamente nos seus olhos e ela não desviou seu olhar do meu. Eu não sabia o que dizer. Aproximei-me mais dela e ela me acompanhou passo a passo com seu olhar de vida; de felicidade; de ternura; de quase-entrega!
      Abri os meus braços como a pedir-lhe um abraço. Ela se levantou de braços abertos – ainda com a xícara na mão – e nos abraçamos forte, profundamente forte como se a fundirmos nossos corpos. Senti o pulsar do seu coração em taquicardia a denunciar emoção. Não tenho certeza se lhe sussurrei ao ouvido senti imensamente tua falta, mas foi algo assim; ela apertou-me mais. Eu disse-lhe:
      – Você adoece e eu é que quase morro! Está melhor?!
      – Adoeci de saudades. Não te vi no domingo...
      – Sequer eu sei o teu nome!... – eu disse-lhe procurando olhar nos seus olhos, assim, bem de perto, meu corpo colado ao seu.
      – Não... não me olhe assim. Fique como está... Dei-
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xe as perguntas para outra hora. Quero sentir seu respirar no meu ouvido. Quero só me sentir protegida nos teus braços. Não me faça perguntas. Nós não precisamos de perguntas, pois nós nos sentimos mutuamente. Nós deciframos nosso silêncio; compreendemos nossos mais sutis gestos e olhares. Para que ferirmos a melodia do nosso respirar com perguntas ou palavras que nada dizem diante das expressivas batidas dos nossos corações?! Por favor: por enquanto apenas procure ouvir os meus pensamentos.
      Por alguns minutos – não sei precisar quantos – ficamos ali, parados, colado um ao outro. Algumas breves e suaves carícias que trocávamos e a vontade de eterni-zarmos aquele momento nos dominavam.
      Ficaríamos ali, naquele mundo só nosso e que acabáramos de criar, sem nos darmos conta de que um mundo menos sublime, menos aconchegante, menos humano, menos maravilhoso existia, não fosse a Soledad – o único ser com direito a nos interromper, pois fora ela quem nos proporcionou as condições de torná-lo possível – quando ela, com sua voz suave e doce, porém com um misto de satisfação e deboche, nos perguntou:
      – Meninos?!... vocês ainda estão vivos?
      Eu pigarreei como se faz em situações assim, de quase embaraço, e em coro – que nem mesmo se tivéssemos ensaiado – dissemos a uma só voz:
      – Estamos, claro. Você é que nos esqueceu.
      – Fiquem à vontade. Só mais um minutinho e eu vou para aí. Não se preocupem comigo, pois estou bem.
      De fato, tínhamos mesmo era esquecido da Soledad. E mais: tínhamos esquecido o mundo! Ali era o nosso
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mundo!
     – Já posso fazer algumas perguntas? – eu indaguei, com cuidado para não contrariá-la.
      – Ainda não. Por enquanto, nada de perguntas. Vou ao colégio levar meu atestado médico... Mas o que eu queria mesmo era te ver. Na volta, eu passo por aqui... Você me espera?
      Ela acariciou-me o rosto com suas mãos de veludo enquanto esperava a minha resposta. Mas diante do meu silêncio, pois eu estava numa espécie de êxtase, ela insistiu com sua voz que mais parecia uma carícia para os ouvidos:
      – Você me espera ou não?
      Dei-lhe um beijo na testa enquanto eu dizia:
      – Claro que te espero, mas não por muito tempo. Posso sair por aí, a tua procura outra vez...
      Rimos os dois e repetimos em uníssono:
      – Outra vez...
      Soledad chegou subtil e discretamente e nos acompanhou até à sala e Minha Colegial me advertiu:
      – É melhor que fique aí... Por enquanto não é bom que apareçamos juntos aqui. Bom, digo isto pela Soledad; vai que meus pais saibam que estamos nos encontrando aqui...
      Da calçada ela ainda disse, alteando a voz:
      – As injeções!... Não esquece...
      Eu olhei para Soledad com toda a minha admiração; com quase devoção. Ela permanecia calada, com aquele jeito de quem faz as coisas mais incríveis e fantásticas do mundo com a naturalidade de quem respira. Eu me
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perguntei como era possível uma mulher de compleição tão frágil, de saúde tão debilitada, de aparência tão singela ser tão gigantesca. Ser tão sábia. Ser tão sublime. Ser tão sobre-humana.
      Eu pouco sabia da vida – foi toda a minha conclusão naquele momento. E como se eu estivesse me despertando de um sonho, dirigi-me para ela:
      – Você é maravilhosa. Incrivelmente maravilhosa!
      Ela pareceu ignorar o que eu disse e apenas me estendeu o estojo com a seringa, agulhas e algodão com álcool. Nada mais precisava ser dito. Eu tinha apenas que lhe fazer as injeções, o que era, a meu ver, um gritante e cruel paradoxo: eu tinha que ferir uma pessoa que acabara de me curar feridas; de me estancar sangrias; de me sarar dores; de me acender um farol quando eu naufragado me debatia às escuras; de me devolver a vontade de continuar vivendo.
      Concluí as injeções, agradeci mais uma vez à Soledad e me despedi, dizendo que precisava ir para casa. Ela me perguntou:
      – E a menina? Você ficou de esperá-la!...
      – Preciso cuidar de algumas coisas em casa e depois eu volto.
      – Eu tenho certeza de que ela não demora, não.
      – Eu também não me demoro. – eu disse já chegando à calçada e indo rápido para casa extremamente eufórico.
      Mas mal acabei de chegar em casa e já fui me perguntando:
      – O que é que eu vim fazer aqui?
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      Peguei umas frutas para levar para Soledad, fechei a casa novamente, dei meia volta e fui para a casa dela. Lá, tinha o que fazer; eu tinha a quem esperar. Lá, eu me curava da minha crise de misantropia. Eu voltara a sonhar, pois descobri que a vida é feita de compensações: o eterno ganha-e-perde-perde-e-ganha. Foi desde então que aprendi que posso ser uma exceção nesse jogo nefasto: aprendi que ao invés de perder ou ganhar posso tão simplesmente substituir. E desde então sou mais feliz. Bem mais feliz!
      Cheguei à casa da Soledad pensando alto (como dizem: falando sozinho):
      – ... e assim sou bem mais feliz!
      A Minha Colegial já voltara e estava na sala conversando com a Soledad sobre a sua internação. Sobre a viagem.
      E eu fiquei meio sem jeito quando as duas riram e perguntaram-me:
      – Assim como, você é mais feliz?
Soledad – como sempre – aproveitou a deixa para filosofar:
– Eis a vida. Na adolescência, quando falamos sozinhos, é sinal de forte e dominante paixão. Na minha idade, é sinal de caduquice mesmo. Minha neta que o diga...
      A Minha Colegial ainda foi gentil:
      – Você ainda é nova, minha tia.
      – Fui, minha filha. Sou consciente disto, mas mesmo assim eu fico lisonjeada e grata com a sua bondade.
      Eu exclamei interrogante:
      – Vocês são parentas?! Mais exatamente tia e sobrinha?!
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      – Assim como você é meu filho... Não é, minha filha? – disse Soledad, dirigindo-se para a Minha Colegial, e depois acrescentou:
      – Por mim ela também me chamaria de Mãe Soledad, assim como você.
      Eu deixei a minha afoiteza aflorar; deixei meu atrevimento prevalecer; deixei minha impulsividade me dominar e disse com a cara mais sinicamente cênica:
      – Pois é... quando as sogras são boas, as noras as tratam por mãe e como a uma verdadeira mãe.
      As duas riram. Cada uma a seu modo; cada uma com seus motivos; cada uma com seu jeito próprio de rir. Eu, por minha vez, senti-me aliviado pensando que as duas haviam esquecido o meu ... e assim sou bem mais feliz! e a pergunta delas “Assim como, você é mais feliz?”. Mas não. Insistiram em que eu dissesse o que aquilo significava. As duas tinham interesses pessoais na resposta, pois cada uma supunha que fosse exatamente pelo fato de tê-las agora em minha vida. De tê-las como parte do meu restrito mundo. E estavam certas.
      Eu disse para elas que estava pensando o quanto eu estava me sentindo feliz por ter substituído minha atividade revolucionária, meu curso em uma escola pública federal, minha liberdade plena e outras coisas mais pela amizade, carinho, companhia, e tudo de bom que elas me proporcionavam. E enquanto eu falava isto elas se entreolhavam e tinham nos rostos um incontido riso de alegria íntima.
      Eu perguntei para as duas:
      – E eu precisaria de mais para ser feliz?! Claro que
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não. Seria exagero. Seria paroxismo. Agora são vocês duas tudo que eu tenho, e não preciso de mais. Portanto é assim que sou bem mais feliz.
      Eu disse isto e abracei a Minha Colegial. Abracei-a num abraço pleno e me senti como se abraçasse o mundo inteiro. Como se pudesse ter o mundo inteiro nos meus braços. E de fato ter aquela jovem em meus braços era tudo para mim que há poucos meses perdera quase tudo.

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CAPÍTULO IV

      A Soledad e a Minha Colegial já haviam combinado que ela passaria a manhã ali, conosco. Eu vibrei com a ideia. Sugeri que almoçássemos juntos e me ofereci para fazer o almoço, o que soou como um petardo:
      – Você sabe cozinhar?! – vibraram as duas.
      – Sim.
      – E o que é que você não sabe fazer? Já que é mais fácil dizer o que não sabe... – disse Soledad.
      Concordamos os três com minha sugestão e fomos para a cozinha, ainda que eu tenha insistido em ir fazer o almoço em minha casa; ideia que provocou várias objeções.
      A Soledad argumentou:
      – Não fica bem uma velha e uma adolescente sós na casa de um estranho, pois para muitos você ainda é um...
      A Minha Colegial se adiantou:
      – Não quero ser feliz somente hoje. Vamos com calma. Vai que algum conhecido passa e nos ver lá e conta para meus pais... a coisa complica. Eles ficaram no litoral e só vêm no próximo fim de semana. Eu vim com uma prima minha, pois ela veio para um congresso; por isto que estou com esta folga toda, mas não ao ponto de ir tão longe. Meus pais, quando me fizeram, não queriam uma filha, mas sim uma santa. Todos os dias (e várias vezes ao dia) eu tenho que ouvir os sermões deles de que eu devo fazer primeiro uma faculdade e nada de namoricos, conforme dizem eles. Parece até que eu não sou capaz de fazer
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duas coisas ao mesmo tempo ou que não tenho vontade própria.
      – Pais são assim mesmo. Quando você for mãe, você vai compreender. Não fazem por mal... é o que eles entendem que seja o melhor para a filhinha... – interveio Soledad.
      – Eu penso que os pais nunca confiam nos filhos e nunca veem que os filhos cresceram. É... é isto mesmo.
      As duas conversavam entusiasticamente enquanto eu cuidava do almoço, de modo que me sentia constrangido quando tinha que interrompê-las perguntando para a dona da casa onde estava isso e aquilo:
      – Olha eu novamente, gente, interrompendo a conversa de vocês! Agora é o orégano... onde está, Soledad? – perguntava eu já meio sem jeito.
      Quando anunciei que o almoço estava pronto, as duas exclamaram de uma só vez:
      – Já!!!!!!!!
      – Pois é... vocês se empolgaram tanto nas filosofias de vocês que até esqueceram de que havia um cozinheiro aqui. – disse eu com indisfarçável ciúme, ou inveja que seja.
      As duas fizeram estrênuo esforço para me consolar. Encontraram explicações sagazes. Algumas até dentro da lógica e, portanto, críveis. Mas o fato é que eu me senti mesmo meio que jogado de lado, tipo brinquedo de menor importância. E eu disse isto para elas, o que fez com que elas cressem que eu estava mesmo profundamente magoado.
      Que ótimo foi o resultado daquela minha reação, pois
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ganhei palavras doces, amáveis e confortantes da Soledad, tipo você sabe que nós te queremos muito bem; e da Minha Colegial eu ganhei um quase condolente abraço, mas com os afagos e um suave beijo no rosto o abraço se prolongou com carícias, elogios mútuos e, se não fosse a neta da Soledad que inoportunamente chegou, ficaríamos ali, colado um ao outro indefinidamente. Ficamos lado a lado, com os braços na cintura um do outro; ela – com a mão que ficara livre – puxou seus longos cabelos para o lado direito, de modo que os mesmos pareciam acariciar-me a cada movimento que ela fazia. Ela inclinou a cabeça e me olhou de soslaio, assim como se olha de lado, e com a mão esquerda que mantinha em minha cintura ela fez suaves movimentos em mim, enquanto o perfume dos seus cabelos me incendiava.
      Almoçamos os quatro (Soledad, sua neta, Minha Colegial e eu) como se fôssemos uma harmoniosa e exemplar família. Algumas exclamações “Hum! Está uma delícia” ou coisas assim, ditas de boca cheia (figurativa e literalmente), afagaram a minha vaidade; o meu orgulho.
      A Minha Colegial repentinamente parou de comer, pôs os talheres sobre o prato (deixando transparecer uma inesperada mudança de humor ou temperamento), esfregou uma mão na outra e estalou alguns dedos – o que sugeria nervosismo – olhou-nos um a um e fitou-me profundamente, e tão profundamente que me senti violado, radiografado. Fez um leve ar de sorriso e me perguntou:
      – E se eu não quisesse mais voltar para casa?
      Senti que todos deixaram os talheres caírem.
      Não! Não entendemos nada. Carecíamos de esclare-
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cimento. Como se eu não quisesse mais voltar para casa?? Que casa? Por que não querer voltar para casa?! Não! Não entendemos nada! Soledad, com todo seu equilíbrio (principalmente emocional) foi a primeira que se recuperou:
      – Que casa, minha filha?
      – Dos meus pais, ora!
      – Mas por quê? O que está havendo?...
      – Eu queria mesmo era morar aqui, com vocês. Aqui é tudo diferente. Não sou tratada como uma criança ou uma imbecil. Sinto que vocês gostam de mim. Não me cobram nada. Aceitam-me como sou, ou melhor: nem procuram saber como eu sou. Sinto-me gente de verdade e não um brinquedo; uma marionete. Meus pais fazem sentir-me como um investimento deles a curto e médio prazo. Querem concretizar os sonhos frustrados deles através de mim, como se eu não tivesse meus próprios sonhos. Sinto-me uma espécie de seguro de vida e garantia de uma gorda aposentadoria para eles. Eu adorava estudar, mas de tanto eles cobrarem de mim que eu faça uma faculdade para garantir meu futuro...
Soledad a interrompeu, com visível preocupação:
       – Ó, minha filha! Você é tão nova para ser tão amargurada assim! Confesso que estou surpresa, pois te vejo tão doce e amável.
      E tentando desconversar, a dona da casa perguntou:
      – Você não está gostando da comida do seu...
      – Claro que estou!
      – Então?... Vamos comer e repetir esta delícia.
      A magia da Soledad funcionou.
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      Lentamente a Minha Colegial pegou seus talheres e voltou a comer, o que nos induziu a fazermos o mesmo.
      Mas estávamos surpresos. Aquele desabafo de adolescente nos deixou a todos – e em particular a mim – estarrecidos. Eu estava desorientado; estonteado; nocauteado. Sem saber o que dizer ou fazer diante de tão grave inesperado.
      Mãe Soledad, com toda a sua experiência e sagacidade, para não deixar que a colhedora de flores ressuscitasse aquele inoportuno desabafo, disse:
      – Já estou pensando na janta... Todos aqui, novamente? Combinado? Só que já vou adiantando: não tenho dotes tão apurados para culinária, portanto sugiro que vocês dois tomem conta da cozinha... – ela disse isto olhando para mim e para a Minha Colegial, simultaneamente.
      De pronto e deixando transbordar todo meu entusiasmo eu disse que sim, mas a adolescente amargurada apenas nos olhou com um discreto sorriso que (sempre e em quaisquer circunstâncias) a deixava mais adorável. Nada disse com palavras, mas ficou pensativa e introspectiva, o que por si só já dizia tudo. Percebi que seus olhos começaram a brilhar bem mais do que o habitual, e logo vi que estavam úmidos, bem úmidos, como se uma lágrima se anunciasse. Eu acariciei seu rosto com o dorso da minha mão direita, de maneira que minha mão passou no canto esterno do seu olho esquerdo e eu pude constatar que de fato seus olhos estavam molhados. Sim, molhados! Sem dúvida, o prelúdio de uma lágrima; e aquela lágrima doeu-me em minhas entranhas como golpes de punhais. Ela olhou a mim e a Soledad como se quisesse fazer uma
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confissão. Como se quisesse nos arrancar um sim. Como se – no naufrágio – buscasse uma mão.
      Falando para nós dois, ela disse:
      – Quero vocês para toda minha vida.
      Depois, olhando bem fixamente para mim, seus olhos nos meus olhos, ela me disse:
      – Não quero mais... – quando ela disse “Não quero mais” eu gelei – Não quero mais teus cravos e jasmins (gelei novamente!) pelas grades. Eu queria mesmo era um pretexto para me aproximar de ti, mas é claro que eu quero também as flores, só que eu gostaria de recebê-las de ti. Cuidadas por ti, colhidas por ti e entregues a mim por ti. Por todos estes dias eu tenho sonhado com isto. Pode fazer isto por mim?
      Ela aproximou seu rosto ao meu e deslizou sua boca e nariz nos meus, vagarosamente; lentamente; calmamente; subtilmente; docemente...
      – Claro que sim! Além do mais, desde que te vi pela primeira vez eu não tenho feito nada se não por ti. E para que você tenha uma ideia do que estou te dizendo, basta que eu te diga que na sexta-feira, quando você deixou as flores enfiadas no ferrolho do portão eu as recolhi e saí quase correndo atrás de ti. Quase que te alcancei, mas como eu não sabia que as tinhas deixado para mim e você sequer olhou para trás, eu, depois de ficar alguns minutos no meio da rua feito um tonto, resolvi voltar em um misto de feliz pelas flores (que não tenho certeza de que eram para mim) e desgostoso da vida por não ter falado contigo. E além do mais, de domingo para cá tudo que tenho feito é te procurar, até mesmo nos hospitais, na tua escola, nas
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ruas... E Soledad pode muito bem te confirmar que eu, depois de aplicar as injeções nela, viajaria à tua procura!... sabendo eu apenas que haviam te levado para a capital e que, segundo Soledad, talvez você estivesse no hospital dos servidores públicos, pois foi tudo que ela pode ouvir e me informar... Na terça-feira, logo pela manhã cedo, eu fui à tua escola; falei com as alunas, a diretora (que me sugeriu ir à secretaria) procurando por ti, feito um louco, pois nem mesmo eu sabia (assim como ainda não sei) o teu nome. Contei horas, minutos e segundos que passei sem te ver... Aliás, agora são 11 horas e 43 minutos, o que somam 115 horas e 26 minutos que, por conseguinte, perfazem 6915 minutos e 6 segundos, totalizando 414936 segundos desde a última vez que te vi, que foi no sábado, às 4:17h daquela tarde!!! E, infelizmente, tantos números não dizem nada, não mensuram nada do que sofri sem ti... E para ser mais incisivo, eu nem mesmo creio que estou vivendo este momento, principalmente mais inimaginável por você ser tão misteriosa e inacessível e por saber que tinhas ido para a capital, para ser internada com uma “doença grave”.
      – Gravíssima! Raríssima! Aliás, único caso no mundo, pois eu adoeci porque não te vi no domingo. Foi uma febre repentina, com ânsias de vômito e síncopes... – a Minha Colegial me interrompeu como se quisesse me mostrar que o seu sofrimento fora maior que o meu.
      Oportunamente Soledad interveio:
      – Minhas crianças! Neste momento tão sublime, para que falarmos de coisas tristes? E que, além do mais, já passaram. Vamos aproveitar o agora, pois o amanhã é incerto.
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      A Minha Colegial disse que precisava ir à casa dos seus pais, pois assim ficara combinado, já que a prima poderia chegar para o almoço, visto que elas não sabiam se o Centro de Convenções iria oferecer as refeições; portanto era “menos problemático” que ela estivesse em casa quando a prima chegasse, considerando que a mesma era demais rigorosa e contaria tudo ao tio. Ela anunciou também que naquela tarde não iria à escola, pois não estava com a menor vontade.
      Eu disse:
      – Então vem colher flores comigo em nosso jardim.
      Soledad sugeriu:
      – Venham os dois passar a tarde aqui em casa. Será ótimo para todos.
      A Minha Colegial puxou sua cadeira para perto de mim e eu a abracei como se abraçasse a única chance de eu continuar vivendo. Como se aquele abraço fosse tudo que alguém necessitasse para ser plenamente feliz.
      Soledad, com toda a sua discrição, nos pediu licença, se levantou e, enquanto empurrava a cadeira para perto da mesa, ela disse:
      – Fiquem à vontade e considerem o meu convite... de virem os dois passar a tarde aqui em casa...
Ficamos sós pela segunda vez na vida e no mesmo dia. Minha Colegial me disse que apenas ia à sua casa e que não demoraria, mas me pediu que eu a esperasse no jardim de minha casa, pois ela “estava com saudades daqueles dias” de colhedora de flores e que, ainda segundo ela, guardaria para sempre em sua memória as lembranças
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daqueles momentos. E ela lembrou ainda:
      – Foi quando nos vimos pela primeira vez. Lembras?
      – Oh, se lembro! E quanto! – eu respondi, enquanto ela se levantava e me dizia:
      – Eu já vou. Passei a manhã toda aqui... Consegue perceber o que você fez comigo?
      Dirigimo-nos para a porta de saída e ela, alteando a voz, disse:
      – Mãe Soledad? Eu já vou. Obrigada por tudo. Mais tarde eu volto...
      Ela me abraçou forte – bem forte –, beijou-me no rosto e me fez confirmar que a esperaria no jardim, e me disse, ainda segurando a minha mão:
      – Não sai agora, não. E me espera mesmo, ‘tá?
      Eu agradeci a Soledad e fui para casa. Da calçada eu ainda vi a Minha Colegial já bem distante, quase sumindo no horizonte. Apenas um vulto. Fiquei no portão até ela sumir totalmente e permanecer apenas na minha mente, da qual ainda hoje ela faz parte inseparável. E tanto que ao escrever estas memórias às vezes eu me pergunto se são memórias ou se eu ainda não estou vivendo esses dias da adolescência que não querem passar e que jamais passarão.
      Entrei em casa, por fim. Agora eu tinha o que fazer naquela casa. Por via das dúvidas voltei e resolvi deixar o portão semiaberto.
      Era profundo o silêncio em casa. Estranho silêncio. O sótão que (possivelmente pelo barulho dos ratos) era famoso como mal-assombrado pelo constante barulho que
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metia medo em quase todos e ninguém se atrevia subir para passar a limpo qual a causa, contribuindo para que a lenda prevalecesse, estava inexplicavelmente silencioso. A gata – que dormia sobre uma cadeira – apenas me olhou como de espreita e continuou o seu sono. Eu me perguntei:
      – Isto será o silêncio da tão esperada e almejada – não sei se merecida – paz?!?!?!
      Mas aquele silêncio estava me estonteando e resolvi ir para o jardim, porém não sem antes, quase gritando, dizer para todos que por ali estivessem, mesmo que ocultamente:
      – Bem comportados e compreensivos vocês todos. Só porque estamos esperando visita especial... vocês estão ainda mais bem comportados.
      E saí, olhando meio que de lado para a gata, que novamente entreabriu os olhos, mudou de posição, disse lá alguma coisa que eu não compreendi muito bem, e continuou a dormir.
      Ao chegar à porta da frente já fui ouvindo:
      – ‘Tá acompanhado? Eu vou para a casa da Mãe Soledad e volto depois.
      Era a Minha Colegial que, confesso, me surpreendeu, pois eu não imaginava que ela voltaria tão logo.
      Corri ao seu encontro, peguei-lhe pela mão e disse que eu estava só:
      – Quero dizer: com meus amiguinhos. Por quê? – disse-lhe eu, convidando-a para entrar.
      – Só até aqui mesmo. – disse ela quando adentrou o jardim.
      – Já é muito para quem esperava tão pouco, pois con-
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fesso que eu não tinha muita esperança de que um dia tivesse o privilégio de estar do lado de cá das grades do jardim contigo. Não alimentei esperança (que diante dos teus mistérios poderia ser ilusão) de que um dia estaria aqui, conversando contigo; tão próximos; podendo te abraçar; sentir teu corpo no meu; acariciar-te, já que eu podia apenas acariciar as flores que você deixou no ferrolho na sexta-feira da semana passada, lembras?...
      – E como esquecer?! – ela me olhou sem nenhum sinal do seu característico sorriso; taciturna mesmo; e continuou:
      – ... Mas quem são os teus amiguinhos com quem você estava falando lá dentro?!
      – Pois é... Este momento era inimaginável para mim que vi em ti alguém inacessível; digamos assim: às vezes eu tinha dúvida se você existia mesmo; se não era apenas fruto de minha imaginação, principalmente por estes últimos meses que minha vida foi transformada em um pesadelo que, a partir de hoje, você (com a ajuda da Soledad) transformou em um delicioso sonho do qual eu quero jamais acordar.
      Eu a abracei forte. Ela me abraçou forte. Nossos corpos colados como geradores de energia quase em explosão aumentavam nossa transpiração de efervescência e nervosismo juvenis, acelerando a nossa produção de hormônios. E foi assim que nossos rostos colados foram deslizando!... de modo que nossos lábios se encontraram; nossas bocas se encontraram; nossas línguas se encontraram... ardentes; abrasivos; excitantes!... O cheiro da saliva dela assim friccionada nos nossos lábios deflorou-me as na-
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rinas e subiu-me rápido ao cérebro e acelerou o metabolismo da produção de todos os hormônios essenciais à libido, que por sua vez determinou a explosão de todas as excitações e desejos como somente se dá em adolescentes enamorados.
      Cravos, jasmins, flores, buquês, palavras (ditas e não ditas, engolidas a seco, retidas na garganta), gestos tímidos e não assumidos (como se disfarçados), acenos retidos no ar como se a reprimir sentimentos incontroláveis, olhares fortuitos, sorrisos encortinados pelos cabelos ou mãos, uma quase-indiferença para disfarçar o indisfarçável... Tudo que marcou nossos fortuitos encontros na semana que passara explodia ali no nosso jardim, à sombra das árvores, com pétalas caindo sobre nossas cabeças desprendidas pelo vento que, como num ato de atrevimento e indecência, rodopiou de modo que suspendeu a saia da Minha Colegial que, envolta em meus braços e na simbiose dos nossos beijos, sequer percebeu aquele ato quase obsceno do vento que também nos afagava; que parecia querer ser cúmplice. Ser partícipe.
      Percebemos que a rua voltava a ficar movimentada, com as pessoas retornando para o trabalho depois do intervalo proletariano para o almoço; e por segurança eu insisti para que entrássemos em casa, com toda a retórica de um adolescente apaixonado e com os hormônios à flor da pele. Ela mais uma vez se recusou a aceitar, dizendo que queria ficar mais um pouco, porém ali mesmo no jardim, mas sugeriu que mudássemos de lugar. Olhou em derredor e viu que ao fundo do jardim, lá num canto, as roseiras eram mais densas, e sugeriu que fôssemos para lá,
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mas fazendo questão de deixar claro que somente por mais alguns minutos e que depois iríamos para a casa da Mãe Soledad.
      Pela primeira vez a Minha Colegial estava pelo lado de dentro do meu jardim e não vestia o seu uniforme escolar: saia pinçada, sapatos pretos e meias e blusa brancas, nem prendia livros contra os seus seios como se denunciasse pudicice. Não! Ela agora apertava contra si o meu corpo febril de desejos. Invés de seu uniforme de colegial, o seu vestido de pano fino e leve que permitia que eu sentisse todos os detalhes da anatomia do seu corpo escultural no meu, como se nada houvesse entre nós.
      O seu hálito, a sua saliva, a meiguice da sua voz, seu corpo colado ao meu, suas suaves mãos deslizando meigamente pelo meu corpo... Tudo nela era uma total entrega. Um prelúdio à felicidade plena. E eu a abraçava e a beijava com sofreguidão; com todo o fervor da minha paixão juvenil.
      A pupila de Soledad, com os seus 16 anos e seu vestido florido, não me fez esperá-la entre as cinco e dez e cinco e quinze da tarde – com exceção dos domingos e feriados – no portão da minha casa. Ela agora era a flor mais bela do meu jardim. Ela ultrapassara o meu portão espontânea e inesperadamente para, sem palavras, anunciar que estava ali toda minha sem nada pedir; sem restrições a fazer; sem regras a impor; sem nada em troca a querer... E me beijava e me abraçava sem perguntas a fazer.
      Ela deslizou o seu corpo no meu em um movimento rotativo de cento e oitenta graus, de modo que ela ficou de costas para mim e eu a abracei e senti todo o seu corpo
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em minhas mãos. Seus seios rígidos e febris eram a medida certa de minhas mãos em conchas. Nossos corpos se encaixavam numa exatidão geométrica. Ela levou as mãos para trás de sua cabeça e suspendeu seus cabelos, sugerindo que eu a beijasse na sua nuca, e eu pegava seus pelos com os meus lábios e ela me mostrando um dos braços me disse:
      – Olha como você me deixa!... Toda arrepiada! Sensações que até agora eram desconhecidas por mim.
Minha Colegial, na plenitude da sua adolescência e criada na rigidez de quem estava sendo preparada apenas para o ingresso em uma universidade, mantida longe do universo tão comum aos demais jovens de sua idade, era só pureza – quase inocência e ingenuidade mesmo – e ali, naquele momento, era só instinto e emoções. Ela quase nada sabia sobre o sexo, a paixão e o amor, senão o que lera em romances clássicos. Mas agora ela estava vivendo e aprendendo tudo isto na prática.
      Ela estava naquele momento descobrindo o mundo das emoções e dos prazeres. Descobrindo os pontos mágicos do seu próprio corpo. Contagiando-se de rebeldia, subvertendo as ordens e os caprichos dos pais. Afrontando as regras do bom comportamento estabelecidas pela sociedade (principalmente pelos de sua categoria social).
      A Minha Colegial iniciava ali sua preparação ritualística para o dia em que ela se faria mulher sob os meus lençóis e inauguraria uma manchinha sobre a sua reputação.
      – Mas com água e sabão ninguém perceberá em casa. – dir-me-ia ela depois.
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CAPÍTULO V

      Já passava das quatro horas da tarde quando nos demos conta do tempo (mas o que se pode saber sobre tempo depois de uma tarde de beijos, abraços, carícias, toques intimamente íntimos, afagos, sussurros de prazer?...) e resolvemos (aliás, nos lembramos) ir à casa da Soledad (claro que um de cada vez: primeiro ela; depois, eu, pois não era nada prudente que saíssemos os dois juntos)...
      Ela, ao se aproximar do portão, olhou para trás, fitou-me languidamente, inclinou a cabeça e quase como um soluço, disse-me:
      – A vontade é de ficar...
      – A minha vontade é que você fique. – eu disse, dando alguns passos em direção dela, com vontade de prendê-la para sempre em meus braços.
      Ela me perguntou, andando em minha direção:
      – Você quer que eu fique?
      – Sim. E muito!
      – Então eu fico, e para sempre. – disse-me ela já me abraçando novamente e sorrindo o seu sorriso de quase-sedução.
      – Mas não é bem assim... Acima de tudo temos nosso compromisso com a Mãe Soledad; e depois...
      Eu não tinha o que dizer. Tudo que eu queria era que ela ficasse, e para sempre. Quase irracionalmente era tudo que eu queria. Mas num relampejo de racionalidade me passou pela cabeça a minha condição de clandestino (que, talvez, ela nem soubesse); nossas condições cíveis (e
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principalmente a dela) de menores de idade; a reação e a decepção dos seus pais; a minha condição de subversivo procurado pelos órgãos de repressão e quase-vivendo de favores em casa de parentes.
      O que eu poderia oferecer àquela jovem senão o meu-quase-eterno-amor?! A minha-quase-eterna-paixão?!
      Tudo o mais na minha vida, por aqueles dias, era incerto. Então, que certezas eu poderia dar àquela jovem? Que conforto, que vida eu poderia lhe dar?! Quando a minha própria vida era um pesadelo, que sonhos teria eu a oferecer?! Não seria amor tirá-la do bem-estar e aconchego do seu lar para transformá-la no que eu era. Não! Sextilhões, zilhões de vezes não! Isso não seria amor. E eu a amava, portanto naquele instante cheguei até mesmo a pensar em renúncia. Em contar para ela toda minha situação. Abrir o jogo, como se diz. E naquele impasse, restou-me dizer:
      – Vamos cumprir nosso compromisso com Soledad e aproveitaremos para falarmos sobre este assunto.
      Ela, com profunda tristeza na voz, me disse:
      – Então você não me quer. É isso... Pode dizer...
      – Não, não é nada disso...
      – E o que é, então? Você não se dá conta de que está me rejeitando? E amor para você é isso?
      Havia em sua voz um profundamente marcante tom de desgosto e revolta.
      Eu, com denodado esforço, tentei explicar:
      – Você não tem a menor ideia de quem sou eu; e eu sequer sei o seu nome! Há um pouco mais de uma semana que nos conhecemos... É possível que quando você souber
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por que estou aqui, você não queira nunca mais me ver...
      – Não! Não! E não! Não quero você agindo como meus pais: pensando por mim; falando por mim; decidindo por mim... Não! Por favor, não. E para o seu governo, fique sabendo que sei quase tudo sobre você. Ou você é tão ingênuo que não vê, ou não quer ver, que quando você passa na rua as pessoas ficam cochichando ao seu respeito? E lá na escola um dia houve uma reunião para a madre superiora contar-nos sobre o que está havendo... O perigo de o comunismo tomar conta do país... e nos disse o que você faz aqui, seu bobo. E sabe o que ela conseguiu? Deixar todas as alunas curiosas... ao seu respeito. Só não sei se foi comigo que a sua ficha mexeu mais, mas com certeza eu sou a mais atrevida. Você só teve olhos para mim, isto é fato, na semana passada, graças aos cravos e jasmins, quando eu decidi pegá-los pela primeira vez, e só peguei porque você estava aqui no jardim e eu queria ver você e sua reação. E eu fiquei furiosa porque você apenas me ignorou; eu esperava que você pelo menos dissesse: Ei, moleca! Não mexe aí não! Mas você apenas me ignorou! Faz quase um mês que eu passava aqui em frente, só que eu te vi duas vezes saindo. Foi somente na semana passada que eu consegui te encontrar em casa, aliás, no jardim; e que ótimo que foi no jardim. Bom... já nem sei se foi ótimo. Meus pais também sabem quem é você; eles comentaram em casa já várias vezes; parece até que querem meter medo em mim. Não querem que eu passe aqui em frente. Eu só respondo que é o meu caminho (mas eu digo meu caminho com duplo sentido e eu creio que eles percebem o sentido figurado).
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      – Vamos para a casa de Soledad. – eu a interrompi.
      – Primeiro, diz que me quer!
      – Mais do que a mim mesmo e mais do que a qualquer coisa neste mundo. Vamos. Lá, conversaremos melhor. Ou resolveu querer ser feliz somente hoje?! – eu fui sarcástico.
      – Você, hein? Quando quer, sabe ser...
      Ela deu-me um beijo e disse:
      – Eu já vou, e não demora não, tá? – disse ela, soltando vagarosamente a minha mão como quem sem querer soltar.
      Pôs antes a cabeça para fora e olhou para todos os lados da rua; voltou-se para mim e, lançando um beijo no ar em minha direção com sua mão delicada, disse:
      – Não demora. Estarei impacientemente te esperando. Te aammmoooo! Não se esquece disto, tá? Ah... quando você vier, traga umas flores para mim, pois estou com saudades...
      Não me demorei. E claro que levei as flores para a minha flor predileta: a mais recente flor brotada no meu jardim. Mal fechei o portão (a bem dizer, nem lembro mesmo se fechei o portão) e já corri para a casa da Soledad. As duas estavam na sala, sentadas bem próximas e conversando a meia voz. Ao perceberem a minha presença as duas se voltaram para a porta e Soledad convidou-me a entrar.
      Entreguei as flores para Minha Colegial e ela, amável e gentilmente, deu umas para Soledad, que disse:
      – Sabe, minha filha, que esta é a segunda vez em toda a minha vida que ganho flores!? Obrigada de coração.
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      A Minha Colegial voltou-se para a dona da casa e, como se se queixasse, me abraçou e disse:
      – Pois é, Mãe Soledad, como eu estava lhe dizendo, ele não gosta de mim.
      – Gosta sim, minha filha.
      – Como gosta se ele acabou de me dispensar? Deu-me um fora daqueles... Eu disse que queria ficar com ele (eu ia só em casa, pegar algumas coisas, e voltaria logo para ficar morando com ele já a partir de hoje).
      – Oh, minha filha! As coisas não são simples assim, não. Vocês devem se conhecer mais. Você já sabe mais ou menos a situação em que ele se encontra... Quando toda essa perseguição contra ele passar, aí sim, vocês podem assumir um compromisso com tranquilidade e paz; pois do jeito que o país está, ninguém tem segurança com nada, principalmente ele... E além do mais, acabam envolvendo você também. Aí, invés de um, serão dois clandestinos. Vocês continuam se encontrando aqui... Cá pra nós: o dia, hoje, não foi ótimo? Então? A continuar assim, vocês terão pelo menos um pouco de paz; mas se você foge de casa, complica tudo. Seus pais ficarão furiosos e irão te procurar... e sabendo que vocês estão juntos, pior ainda. Ele é caçado pelas forças armadas, como você já sabe, e certamente será cassado! E nem estudar o coitado já não pode mais...
      Soledad se referia a mim como se eu não estivesse presente, enquanto a Minha Colegial ouvia tudo calada e cabisbaixa, ao mesmo tempo em que me abraçava com mais e mais força; aquele abraço de criança com medo buscando proteção. Ela encostou seu rosto em meu peito e
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ficou encaracolando uma mecha do seu cabelo no dedo indicador direito, enquanto Soledad continuava o seu discurso:
      – O amor não se desespera quando a gente diz: espera! O amor não se esvai quando a gente diz: vai! Não, minha filha. O amor é a racionalidade, a prudência, o altruísmo, a paciência, a persistência e o carinho que dedicamos ao outro. Isto é que é o amor, meus filhos. Sendo que para tanto às vezes nos é exigida a própria renúncia.
      A Minha Colegial olhou para Soledad sem ao menos erguer a cabeça, assim meio que de viés, dando a entender que algo do que a Soledad falava não estava lhe agradando.
      – Quando eu digo que o amor não se desespera quando a gente diz: espera! é claro que eu não estou me referindo a vocês; principalmente a você, minha filha. Estou esclarecendo por que você me olhou assim, por baixo, meio que chateada. Mas pense comigo: se vocês continuam assim, como hoje (e ninguém precisa ficar sabendo), vai que as coisas se resolvem para o lado dele e ele volta a ter uma vida normal, aí vocês podem viver em paz; ele pode lhe dar a vida que você merece. Mas digamos que você foge de casa... Seus pais vão enlouquecer! Não vão se conformar... e é mais um motivo para caçarem ele... Tá compreendendo? Pois é... Põem tudo a perder. E por quê? Juízo vocês têm, mas também é preciso ter paciência.
      – Mas se ele for embora – sumir de repente – eu sei que nunca mais eu vou encontrá-lo. É adeus para sempre. A primeira coisa que ele faz é esquecer-se de mim!... Sei não... Claro que seu raciocínio tá certo, mas por mim eu ar-
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riscava...
      Senti-me isolado; como se ausente ou mesmo inexistente. Elas discutiam o meu presente e futuro (ante mim!), mas como se eu não tivesse capacidade e direito de participar ou, ao menos, de opinar; e reagi:
      – Pessoal! Eu estou aqui. Posso participar e opinar... Digamos que, ao final, vocês são quem decidem, mas tenho direito a voto. – eu disse, tentando quebrar aquele mal-estar.
      A Minha Colegial olhou-me sem o seu sorriso (algo que me doía, digamos assim, como uma punhalada no peito) e me sufocou com suas interrogações:
      – Não é mesmo? Se você for embora (sumir de repente) nunca mais eu vou te encontrar? É adeus para sempre, não é? Pode dizer... Mal dá tempo de você me virar as costas, já põe outra no meu lugar, não é mesmo? Vamos! Pode falar... Eu sei que você tem coragem suficiente para dizer a verdade... Portanto mesmo que me machuque, mas diga que é verdade o que estou falando... Pois eu sei que você não está nem aí para o que eu sinto por você! Foram quantos dias de gelo, eu (quando voltava do colégio) colhendo flores no teu jardim e você apenas me ignorava?! Você diz que saiu por aí, me procurando pelos hospitais, escola, ruas... Que hoje mesmo viajaria à minha procura! Sabe como se chama isso? Peso de consciência! Esse é o verdadeiro nome que se dá a isso!...
      – Não! Isto se chama amor, paixão, loucura... qualquer coisa assim, mas com certeza minha consciência (pelo menos a este respeito) está tranquila. Pode ficar certa disto. Mas se tudo for pouco, pode dizer o que você quer
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que eu farei, menos algo que te machuque; que te envolva com meus problemas; que te transforme em uma caça. Isso, jamais! E a tua revolta não se justifica. Além do mais, volto a repetir: nem ao menos eu sei o teu nome...
      A Minha Colegial rápida e impetuosamente ficou de pé, pôs as mãos nos quadris e me fitou como se fosse explodir de raivosa; de revoltada; de inconformada:
      – Não amamos os nomes e tão menos os dados pessoais, mas sim as pessoas naquilo que elas são na sua essência; no seu caráter; no seu humanismo; na sua sensibilidade; na sua capacidade de sentir o mundo em sua volta, principalmente o seu semelhante. Pelo menos foi isto o que os meus pais me ensinaram desde cedo. O respeito por tudo e por todos é o que conta... Que importância tem um nome, ainda mais o meu?! – ela disse isto como se desprezasse o próprio nome ou a si mesma, e continuou:
      – O que importa é o que sentimos. O que sentimos é mais importante do que o que somos (e nem se compara o que temos), pois nós somos apenas o que sentimos. E você não tem a menor ideia sobre os meus sentimentos, principalmente quanto a você. Eles me dominam, e não tenho o menor constrangimento em dizer isto; pelo contrário: tenho orgulho. Agora se você não acredita, não posso fazer nada senão ficar profundamente triste, profundamente sentida. Resta-me apenas lamentar...
      – Oh, minha filha! Sabe que estou demasiadamente preocupada com esse seu jeito amargo de ver a vida, principalmente uma menina tão nova como você, pois você ainda é praticamente uma criança... Tem boa educação... Parece ter um bom e bem estruturado lar... Coisas que não
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combinam com esse seu jeito (bom, eu não sou muito de rotular nada), mas esse seu jeito meio pessimista; meio derrotista... – disse Soledad, e depois de uma breve pausa continuou:
      – Paciência!... Paciência, meus filhos! Este é, talvez, o grande segredo da vida. Conhece aquele ditado que diz: “O apressado come cru”? – indagou Soledad, se dirigindo à colhedora de flores agora candidata a fugitiva, principalmente dos pais que, no seu modo de dizer, tratavam-na como tiranos.
      E isto para ela estava sendo insuportável, pois era transparente e clara sua neurose em ter que fazer os ditames e caprichos dos seus pais, principalmente no que se referia a ter que cursar uma universidade, ao ponto de ela nem ao menos querer mais estudar.
      Soledad continuou, mas não sem antes fazer um breve cerimonial, se levantando e caminhando vagarosamente em direção da Minha Colegial e a abraçando forte (com o seu abraço forte de uma mulher fisicamente fragilizada pelos tropeços na vida ao longo dos anos e agora com o complicador da enfermidade e a cruel luta pela sobrevivência) e acariciou os cabelos da sua pupila, e disse:
      – São lindos os seus cabelos! Muito bem cuidados. Parabéns. Bela menina você, por dentro e por fora...
      Fez uma pausa enquanto acariciava aqueles longos cabelos e continuou:
      – É... vocês me veem neste estado, mas é claro que já fui jovem também, assim como vocês... Tinha meus sonhos que, às vezes, se transformavam em pesadelos. E olhem que no meu tempo de juventude as coisas eram bem
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mais rigorosas. Tive grandes desilusões também, pois afinal de contas a vida não é apenas um mar de rosas (mas, por favor! Não pensem que estou fazendo nenhuma alusão às flores de vocês que, por sinal, eu fico encantada com esse gesto de vocês; esse ponto de união entre vocês criado e mantido pelas rosas!). Então... Como eu ia dizendo, eu já vivi o que hoje vocês estão vivendo. Já vivi o fulgor impulsivo da juventude, portanto sei de cátedra o que vocês estão passando. Mas aqui pra nós: espero que esse sentimento lindo que une vocês não arrefeça nunca. E mais (sem querer ser repetitiva) quero lembrar que tenho vocês como meus verdadeiros filhos, portanto quero o melhor para vocês e uma união plena de felicidades. Mas olhem aqui... Ouçam meu pedido: conversem mais, pois é da conversa que nasce a compreensão. Sem pressa e sem desesperança, procurem se entender. Vocês têm todo o futuro pela frente. A casa é de vocês. E eu gostaria que todos os dias vocês se encontrassem aqui, pois creio (com a experiência que os anos me trouxeram) que logo-logo tudo estará bem resolvido a favor de vocês. É só uma questão de tempo.
      A Minha Colegial deitou sua cabeça no ombro da Soledad, fechou os olhos, acariciou-lhe os seus cabelos de quase-algodão, beijou-lhe a face e estendeu-me a mão, como se a me convidar para participar daquele ato de quase-comunhão. Juntei-me às duas e não me contive:
      – Enfim, tenho uma família!
      Soledad retrucou:
      – Enfim, somos uma harmoniosa família!
      A Minha Colegial continuou meio amarga:
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      – E como eu gostaria que isto tudo fosse verdadeiro e para sempre! Que o amor fosse para sempre; que a felicidade fosse para sempre; que as amizades fossem para sempre; que a paz fosse para sempre! Que o ódio não existisse nem mesmo nos dicionários...
      Eu tive uma vontade quase incontrolável de dizer que nada é para sempre, mas preferi não complicar mais as coisas e tentei contornar:
      – Bom... cabe somente a nós mesmos fazermos com que os amanhãs sejam iguais ou melhores do que o hoje. Para isto, não podemos é ficar esperando que um manipulador de marionetes nos faça sempre dançar na vida; que um jogador de dados nos lance à sorte; que um jogador de cartas nos determine o destino. Façamos nós mesmos, segundo a nossa vontade, o nosso próprio destino.
      As duas apenas sorriram como-quem-sem-querer-sorrir. Um sorriso pálido, e tão pálido que creio que eu também empalideci.
      Procurei compreender por qual causa (ou causas) as duas não viram a menor graça no que eu falei. Não me atrevi a perguntar, mas bem que vontade é o que não faltou. Olhei para as duas. Elas fizeram seus olhos fugirem dos meus.
      Olhei para todos os cantos da sala. Ah! Somente aí eu comecei a compreender: em todas as paredes havia imagens de ícones católicos! Estava, pois, explicada a silenciosa reação da Soledad, que certamente cria em um ser supremo que determina tudo; que tudo pode; que tudo faz. Mas quanto à reação da Minha Colegial? Que explicação
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teria?
      Não! Não consegui descobrir sozinho. Apelei a ela:
      – O que houve? Falei mais do que devia?!
      Ninguém respondeu nada. Ninguém disse nada. Um profundo silêncio dominava o ambiente.
      Voltei a perguntar para a Minha Colegial, com um tom de quase-desespero:
      – Mas afinal, o que houve? O que foi que eu disse além da conta e da cota?!
      – Se você não está conseguindo perceber (quero dizer: ter a consciência de que desrespeitou a fé de nossa mãe), aí tá complicado. E além do mais, creia você ou não, nossos destinos já estão traçados; pré-determinados... O que tiver de acontecer, principalmente entre nós dois, acontecerá, queiramos ou não. – disse-me a Minha Colegial com um misto de convicção e rancor.
      – Não, minha filha! Não me ofende não. E creio que não foi essa a intenção dele, não. – disse Soledad, com toda a sua capacidade de compreender o seu semelhante, ainda que na diferença e na adversidade.
      Eu, para quebrar o mal-estar que gerei, olhei as horas e anunciei que já eram seis horas e quarenta e sete minutos da tarde-noite! Foi quando que, a uma só voz, exclamamos:
      – Já é noite! Nem mais um arrebol!
      Em seguida, lembrei para a Minha Colegial que a sua prima já estaria para chegar em casa e que, portanto, ela deveria ir para não criar problemas. Soledad preferiu não opinar, o que me fez deduzir que ela se magoara com minha filosofice dita há bem pouco.
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      Prevalecia agora um pesado silêncio; um intruso silêncio! Um intraduzível silêncio que, para meu desconforto e descontentamento, ninguém se dispunha a quebrar. Parecia mesmo ser algo sagrado: temerosamente intocável. Até se ouvia o respirar quase-ofegante da colhedora de flores, agora com cravos e jasmins murchos nas mãos. Cravos e jasmins que não foi preciso que ela colhesse por entre as grades de ferro do meu jardim, mas que já estavam murchos. E eu falei para ela:
      – As rosas murcharam.
      Ao que ela retrucou:
      – De tristeza com certeza! Saudade por antecipação é bem doído... Você nem imagina. As que eu colhia, eu as colocava em uma jarra com água. Nem mesmo as primeiras murcharam totalmente ainda. Aliás, estão bem mais vivas do que estas que, por sinal, já faz horas que estão sofrendo com o calor e o suor de minhas mãos (que nunca suaram tanto como hoje!).
      Fez uma pausa, passou as flores para uma só mão e secou o suor da mão vazia na saia do vestido; depois, trocou as flores de mão e também secou o suor da outra mão na saia do vestido, o qual, diferentemente da sua saia do uniforme colegial, destacava todas as linhas do seu corpo escultural, fazendo-a parecer mais ainda uma menina-mulher. Despretensiosamente sedutora. Sublimemente mulher-menina sendo apenas uma jovem adolescente, ainda que sua inteligência incomum a fizesse parecer bem mais adulta.
      Com o pretexto silencioso de lembrá-la ou mesmo de induzi-la a ir para sua casa, até mesmo pelo motivo de
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podermos (àquela altura das horas e termos tomado todo o dia da dona da casa) estar constrangendo a nossa adorável anfitriã, eu disse para ela enquanto a beijava:
      – Vamos... Deixe-me te levar até às proximidades de tua casa... Ninguém me conhece mesmo por aquelas ruas.
      – Você é quem pensa!
      Ela inclinou a cabeça para trás e eu a mantive próxima a mim com os meus braços em volta de sua delgada cintura. Ela olhou-me fixa e profundamente e disse:
      – Eu deixo, mas só se você deixar que eu volte contigo. Minha prima só vem em casa tomar banho e trocar de roupa, mas volta para o congresso; aí só volta lá pelas onze e quarenta... Combinado?! Mãe Soledad é testemunha, não é? – ela indagou, virando o rosto na direção da dona da casa, que disse um Pois é... sonolento.
      Eu aproveitei para dizer na forma mais apelativa que pude:
      – Ah, não! A pobre coitada está convalescendo e teve hoje um dia muito cansativo... Veja só como ela está!... Quase dormindo sentada...
      – Então vai na frente e fica no portão que eu passo já por lá.
      Beijamo-nos; eu agradeci a Soledad por tudo (aquele por tudo que não diz nada ou pouco diz do muito que se quer dizer); desejei-lhe uma boa noite e muita saúde, dei-lhe um abraço e me dirigi para a porta de saída. A Minha Colegial me acompanhou até a porta, acariciou-me a face e depois, com as duas mãos, pegou meu rosto e deu-me um beijo com sofreguidão. Separamo-nos como-quem-
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-sem-querer-separar e eu fui, mais uma vez, esperar no portão a passagem de minha colhedora de flores.

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CAPÍTULO VI

      – Vamos! Siga-me de perto... mas não tão perto. Deixa-me ir um pouco à frente, pois podemos encontrar algum conhecido dos meus pais. E quando for pra chegar à minha rua, bem na esquina, tem uma sorveteria... Você pede dois sorvetes: um para mim e outro para você, mas claro que você vai tomar os dois (mas pensando em mim, hein?!) enquanto eu vou à minha casa e quando a minha prima sair eu volto. Só que não vai na onda das meninas que frequentam a sorveteria, não; elas são muito atiradinhas e vão dar encima de você... Mas fica na calçada me olhando para você ficar sabendo onde é minha casa.
      Disse-me a Minha Colegial ao passar por mim e tendo diminuído os passos quando me viu quase pendurado no portão enquanto eu a esperava.
      A casa estava toda às escuras, pois eu não havia ligado nem mesmo as lâmpadas da área da frente, que serviam para iluminar o jardim, a entrada pelo portão e boa parte da calçada. O que havia era uma quase-nada claridade vinda dos postes da rua, o que nos favorecia uma penumbra que nos camuflava, diminuindo assim a possibilidade de sermos reconhecidos.
      Eu segui a minha colhedora de flores a uma distância de mais ou menos dois metros, de modo que seguimos conversando a meia voz quando não cruzávamos com nenhum transeunte, que eram raros àquela hora de início de aulas do turno noturno para uns e de janta e televisão para outros.
      Porém não demorou muito para que ela olhasse rá-
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pida e discretamente para trás (possivelmente não conseguindo me ver, mas somente o vulto que a escuridão da rua permitia) e me advertiu:
      – É na próxima esquina, à direita.
      Eu disse:
      – Espera por mim... pára aí... ou diminua os passos para que eu passe à frente e rapidamente te dê um abraço e um beijo para aguentar a espera.
      – Não pode!...
      – Pode sim.
      – Teimoso!
      Eu acelerei os passos para alcançá-la e quase-parando-mas-sem-parar eu a abracei e dei-lhe um beijo molhado. Nossos corpos colados caminhando a passos lentos no meio da noite de penumbra suburbana da adolescência sem amanhãs (ou pelo menos sem nenhuma certeza do porvir) sugeriam talvez um só vulto na noite dos que, já acostumados com a escuridão, ficam ofuscados na penumbra; ou aparições fantasmagóricas como murais andantes onde escritos estavam os direitos do homem e da mulher, na unificação sublime de corpos que ardem de desejos. E, no meio daquela noite, parecíamos colher o choro de todas as crianças humilhadas e ofendidas; os soluços abafados de todos os órfãos da Igualdade e da Justiça; a indignação de todos os deserdados da Liberdade; e compúnhamos ali mesmo, com os nossos corpos e sussurros, uma nova CANÇÃO DE LIBERDADE; o hino de amor e paixão dos que se reencontram consigo mesmos ao encontrar seu par.
      Sussurros intraduzíveis ecoados no silêncio dos be-
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cos noturnos pareciam cânticos de louvor à rebeldia exclusiva da adolescência indomável que nem mesmo os tambores de guerra silenciam ou sequer conseguem abafar.
      Que magnetismo, que magia, que mistério há em dois corpos que-quase-se-fundem e subvertem as ordens, quando simplesmente ignoram as regras do bom comportamento ditadas e estabelecidas por tiranos da ordem social?! Que sublimação mais eloquente, que êxtase mais supremo, que enlevo mais sobre-humano, que purificação mais cristalina para dois seres quando se dão mesmo a desprezar a bestial ameaça de arder no fogo eterno, se o que importa mesmo é o momento em que se arde de desejos e paixão?!
      Arder! Arder e arder até se consumir ou consumir seria loucura?! Seria amor? Seria paixão? Mas o que são o amor e a paixão senão os resultantes da doce loucura no momento certo com a pessoa certa?!?! E ali estava eu, no momento certo, com a pessoa certa à busca (talvez!) apenas do lugar certo. Ardíamos de paixão e desejos... e tanto que não nos enquadrávamos na racionalidade nem no temor. Queríamo-nos!!! E isto era tudo (ou o suficiente para tudo).
      E assim seguimos além da esquina (os apaixonados desconhecem esquinas; só conhecem a retidão) e nos atre-vemos a ir juntos até a calçada da casa dela.
      Fui para a sorveteria e fiquei a esperá-la como se esperar fosse o pior de todos os castigos. Foram (pelo relógio, que me pareceu enlouquecido no meu entender, porém eu não) trinta e seis minutos e vinte e sete segundos (isto, a partir do momento em que eu comecei a marcar o
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tempo de espera) até que ela apareceu atravessando a rua.
      Fui ao seu encontro já sem nenhuma discrição e tampouco ela demonstrou qualquer preocupação. O que transbordava ali era a nossa felicidade: dela, por constatar que eu estava esperando-a; de mim, por vê-la voltar. Abraçamo-nos e beijamo-nos já sem nada a temer. Como se ninguém mais houvesse no mundo além de nós dois.
      Seguimos o caminho de volta para minha casa e logo ela me desnorteou:
      – Não vou voltar para a casa dos meus pais!
      – Ah, não! Então não vamos daqui para lugar algum.
      – Você está confirmando que não me quer? Que não me ama?
      – Claro que te amo e te quero, mas assim é loucura!
      – Quanta contradição! Ou quanta amnesia?! Pois só hoje eu ouvi duas vezes você dizer que amar é fazer loucuras.
      – Vamos... Em casa conversaremos melhor. Ficarmos aqui, no meio da rua, também é loucura; só que existem vários tipos de loucura. E que sacola é essa?
      Ela nada respondeu. Apenas pegou minha mão e começamos a andar. Estávamos em silêncio; tensos, como se a querer um descobrir o que se passava pela cabeça do outro.
      Ela, quase gritando, disse, apontando para o imenso cosmo:
      – Uma estrela cadente!
      Depois de um breve silêncio, ela voltou-se para mim:
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      – Já fiz o meu pedido; você fez o seu? O meu nem precisa perguntar qual, pois você já sabe...
      – As rosas me dizem mais do que fragmentos de corpos celestes. – eu disse secamente, demonstrando tensão; aborrecimento, talvez.
      Ela disse, com a voz embargada, magoada mesmo:
      – Também, hein!?... não precisa tanto...
      Mantivêmo-nos em silêncio até chegarmos em casa. Mal abri o portão e ela já foi entrando e perguntando:
      – Você me ama?
      – Sim.
      – Sim é muito pouco.
      – Diz que me ama. – insistiu ela, abraçando-me forte, depois de uma breve pausa.
      – Se sim é muito pouco, então eu te amo feito um louco.
      – E se eu disser que ainda é pouco?
      – Aí eu precisaria de que você me dissesse quanto quer de amor.
      – Poderia ser a metade do meu?
      – Qual o tamanho do teu amor?
      – Do tamanho do mundo... Grandão assim!
      – Então é impossível...
      – Impossível?!?! Por quê?
      – Porque o meu não cabe no mundo.
      Falei isto quando já entrávamos na sala de minha casa (que não era minha) e ela se assustou com o barulho vindo do sótão, que teve seu efeito tenebroso potencializado pelo escuro total no interior da casa, com o qual eu já me acostumara.
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      Ela pediu que eu ligasse logo as lâmpadas, porém eu sugeri que melhor seria eu tentar encontrar uma vela para evitar chamar a atenção, visto que eu quase não usava a casa à noite, o que a deixou extremamente curiosa. Convidei-a para irmos para a área de serviço e sob a luz de um pedaço de vela tentei conversar com a Minha Colegial (agora tão minha!). Expliquei que se ela ficasse definitivamente comigo a partir daquele momento eu não poderia mais ficar na cidade; e que eu não tinha opção, pois todas as portas estavam fechadas para mim. Ali ainda era o único lugar que me oferecia um mínimo de segurança graças à cumplicidade de amigos de alguns parentes. Pedi-lhe um tempo para que eu pelo menos sondasse outro lugar para morarmos (um exílio, talvez, já que o comitê do Partido estava tratando deste assunto). Ela compreendeu e mostrou-me o que tinha em sua sacola, da qual não se desgrudava. Então eu pude ver que a Minha Colegial tinha corpo de adulta, responsabilidade e inteligência de gente grande, mas de uma pureza de quase-criança: em sua sacola-mala-de-fugir-de-casa havia uma fofolete (uma miniboneca muito em voga na época e que era sonho de consumo de crianças a adultos); um diário; uma caneta e algo parecido com um pedaço de trapo que, segundo ela, só conseguia dormir com ele, o que quase me fez perder o controle e rir de forma tão inconveniente que me senti desumano.
      – Então está ótimo. Vamos seguir os conselhos de mãe Soledad e dar tempo ao tempo. Mas quando for onze e quinze eu vou te levar em tua casa. Combinado? E me desculpa por eu ter rido de tua bagagem para fuga, tá? – eu disse, dando-lhe um beijo e um abraço.
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      – Como as coisas são fáceis para você, hein?!
      – Não... Não são nada fáceis. É a força que você me dá e a esperança de ter você em meus braços todos os dias, e definitivamente muito em breve.
      – É... Uma coisa eu quero te pedir: não me deixa acordar deste sonho, por favor! – disse-me a Minha Colegial se entregando totalmente em meus braços enquanto a vela acabava de emitir sua última luz, consumida até o fim; fato que passou quase despercebido se não fosse para observarmos quase que uníssonos:
      – Fica melhor assim!
      – Ah! Mas eu queria te mostrar o meu diário!
      – Hoje!?!?! Agora!!?!?!? Deixa-o comigo. Depois eu o devolvo. Agora eu só quero te amar, amar, amar, e amar... Amar como se nada mais eu tivesse para fazer. Como se nada mais eu soubesse fazer. Como se a ninguém mais eu pudesse amar. Antes de conhecer o diário, eu quero conhecer a dona do diário. Quero sentir teu corpo como parte inseparável do meu corpo. Quero sentir o teu corpo latejante como uma caldeira de hormônios em ebulição...
      – Antes, precisávamos bem menos de palavras para nos comunicar... Aliás, nem precisávamos de palavras. Agora eu quero só que me sintas e que eu te sinta. Que me ames e que eu te ame. – interrompeu-me ela e arrematou:
      – Agora eu quero apenas calar tua boca com a minha boca.
      Sob a claridade pálida e mortiça da Lua em quarto crescente esquecemos o mundo lá fora para construirmos o nosso próprio mundo. Um mundo sem limites; sem barreiras; sem modismos e regras; sem etiquetas ou moralismos e
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hipocrisias a nos velar.
      E, no tablado da noite, à luz mortiça daquele luar raquítico, sem partitura para executarmos; sem roteiros para seguirmos e sem ensaios prévios para o grande espetáculo de dois corpos em improvisos de loucuras, juramos amor eterno. Juramos que mesmo se uma tragédia nos separasse, jamais (jamais!) deixaríamos de nos amarmos.
       Creio que mais de duas horas se passaram em que a única linguagem que usáramos para nossa comunicação e entendimento fora a linguagem universal dos corpos de dois adolescentes no enlevo máximo dos desejos e da excitação. No paroxismo do amor e no arder incontrolável da paixão.
Nossos corpos colados como um só corpo; nossas bocas como uma só boca no linguajar dos desejos; nossas mãos irrequietas na carícia silenciosa dos que buscam na carne a sublimação dos sentimentos; nossos corações em taquicardia como tambores tribais; nossas salivas unificadas umedecendo nossos lábios para, na fricção labial dos beijos extasiantes, transformarem-se em afrodisíacos aromas... Tudo! Tudo ali entre nós clamava por eternidade; reivindicava pelo para-sempre.
      Eu tive que violar aquele estado de sublimação; violentar aquele silêncio; macular aquela entrega... pois de outro modo não poderia ser: já passavam das onze horas e a prima da Minha Colegial não poderia chegar em casa e não encontrá-la.
Suavemente eu deslizei minha boca na sua chegando até ao seu ouvido e aí aproveitei para sussurrar ternura:
      – Eu te amo! Acima de tudo eu te amo! Gostaria de
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poder eternizar esta noite...
      Fiz uma pausa e temeroso continuei:
      – Mas infelizmente temos que ir. Amanhã poderemos repetir estes doces momentos ao invés de estarmos sofrendo o pesadelo dos foragidos.
      – É... infelizmente parece que é melhor assim. Ah! Amanhã, às cinco horas da manhã, eu tenho educação física. Posso passar por aqui?
      – Eu te esperarei no jardim. O portão estará aberto: é só entrar. Vamos.
      – Sim...
      Ela disse um sim tão seco e amargo que não sei a que ela estava se referindo, mas abraçando-a por trás e beijando sua nuca por entre os cabelos, eu fui conduzindo-a até a sala da frente. Já na porta de saída nos abraçamos de frente e nos beijamos como se tudo fosse simplesmente continuar.
      – Agora, vamos! – insisti.
      Mas ela nada disse. Apenas ela fez aquela carinha de não-estou-indo-estão-me-levando. Eu tranquei a casa e saímos de mãos dadas como se fôssemos os donos da liberdade.
      A cidade esmaecida do corre-corre diário dos seus habitantes parecia já agonizar seus pesadelos: as ruas estavam desertas! Tive a sensação de que éramos os únicos habitantes daquela urbe fantasmagórica. E assim chegamos à rua da casa dela. Eu quis parar e disse:
      – Eu fico aqui te cuidando à distância até você entrar em casa.
      – Não! Vamos comigo até lá! – ela fez biquinho e
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bateu o pé e me puxou pela mão:
      – Vamos! Minha prima ainda não chegou...
      Restavam apenas alguns minutos para findar aquela quinta-feira que jamais saiu ou sairá do calendário de minhas reminiscências.
      Despedimo-nos com beijos e abraços e sem querer nos separarmos nos separamos, enquanto ela dizia:
      – Até amanhã de manhã, as dez para as cinco...
      – Te amo! – foi tudo o que eu consegui dizer.
      – Eu também te amo muitão! – ela disse e permaneceu de pé, na porta, me olhando até que eu sumi na penumbra das ruas de iluminação pública.

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CAPÍTULO VII

      Vivi cada fração de segundo daquela noite de quinta para sexta-feira como se renascido (não das cinzas) das brasas ardentes das últimas horas que convivi com a Minha Colegial (agora sem mistérios); agora totalmente entregue a mim; de amores confessos; de paixões dominantes e enlouquecedoras; de atitudes imprevisíveis; de vontades impulsivas! Enfim, desvendada; decifrada. Nos meus braços (como se diz: na palma da minha mão).
      Eu exultava pela felicidade vivida e compartilhada no dia anterior e sofria a ansiedade da espera pelo dia seguinte madrugada a dentro. Eu não me continha. A casa (que não era pequena) me parecia pequena; a rua me parecia pequena; a cidade me parecia pequena, e menor ainda era o meu país (tão pequenino que não me cabia com o meu amor! Tão pequenino que não cabia a minha rebeldia! Tão miseravelmente pequenino que não cabia a mim com a minha amada! Tão insignificantemente pequenino que sequer cabia os meus sonhos!). O mundo, também, certamente seria pequeno para a minha inquietude e minhas paixões inquietantes e irrequietas.
      Lembrei-me várias vezes naquela madrugada que há bem poucos dias eu precisava acariciar as pétalas das rosas para ter uma imaginária, imprecisa e delirante sensação da suavidade da pele da minha amada, mas agora não: eu ainda tinha o perfume do seu corpo em minhas mãos (docemente impregnado em minhas mãos e narinas!). Eu tinha inolvidável e marcantemente gravada em meu cérebro a maciez do corpo de Minha Colegial, sem precisar re-
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correr às pétalas das flores para imaginar esta doce (e tão exclusivamente minha) sensação.
      Fui ao jardim. Demorei-me, nem sei mesmo por quanto tempo, no exato lugar onde estivemos em total entrega na tarde anterior: revivi beijos ardentes, carícias enternecidas, afagos que se confundiam entre pueris e profanos, respirar arfante violando os ouvidos para acionar o cérebro a determinar e comandar excitações... E era tudo tão forte que tive a impressão de que a Minha Colegial estivesse ali, presente, participante, cúmplice, minha (apaixonadamente minha).
      Naquela madrugada, quase rompendo aquela noite de espera, diferentemente das minhas últimas noites que foram de desespero e desesperança, eu tinha agora uma convicção (quase-certeza!): a vida, simplesmente só pelo ato de existir e ter esperança, já vale a pena. Ou o simples fato de existir uma jovem tão sublimemente maravilhosa como aquela para amar e por ela ser amado, a vida já se prenunciava maravilhosamente sublime.
      Vaguei pelo jardim me demorando em cada lugar em que estivemos na última tarde e revivi todo o ardor de nossas paixões (pela primeira vez, desde que me refugiei naquela casa, sequer pensei em sair para a rua – o meu palco favorito!). Eu esperava que a qualquer hora a Minha Colegial aparecesse como um vendaval de desejos; como um rio caudaloso de amor. E eu deveria estar ali, de braços abertos, para recebê-la; para senti-la nos meus braços; para tocá-la como se a felicidade fosse feita de carne (de delicada e suave carne!).
      Eu comecei a colher alguns cravos e jasmins como se
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por acaso, mas logo me veio a ideia de entregá-los à Minha Colegial quando ela chegasse. E o que mais faltaria para que eu lhe entregasse?!
      – Oi! Bom dia!
      Eu vivia o meu devaneio (sem noção de nada, nem de mim mesmo!) quando ouvi aquela suave e doce voz. Fui às nuvens! Ela não esperou que eu falasse nada nem que nada eu fizesse, e foi entrando e caminhando com a mais jovial elegância em minha direção, de braços abertos. Eu me dirigi a ela tentando também lhe desejar um bom dia, mas a minha voz saiu como se meio-engasgada, enquanto eu estendia as mãos com o intuito de lhe oferecer as flores (pobres flores!) que resultaram esmagadas entre nós dois naquele abraço incontido e marcado de saudades depois de umas quase-eternas seis horas de separação.
Nada mais foi possível falar. Nossas bocas colaram e não se separavam por minutos a fio como se ávida uma da outra. Como se dependente uma da outra. Como se sedenta e faminta uma da outra. E mais uma vez o delicioso aroma de sua saliva assim a nos lambuzar me enlevava ao êxtase. Eu carecia daqueles beijos; daquele cheiro; daquele corpo; da maciez daquela pele; daquela saliva; daquele respirar que me era então meu único sopro de vida!
      Quando tudo se me anunciava perdido, eu me reencontrei naquela jovem que significava a minha própria vida; mesmo que fosse uma vida louca, aventureira, beirando a irresponsabilidade, mas era a minha própria vida. Meu único norte. Minha tábua de salvação com leme e remos, para que eu já não mais me sentisse o náufrago de âncoras no pescoço.
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      A Minha Colegial fez-que-ia-parar-mas-sem-parar e dando-me beijinhos intercalados por sílabas pronunciadas dentro de minha boca, disse-me:
      – Eu... não... vou... pa...ra... a... e...du...ca...ção... fí...si...ca... não... – ela pronunciou o ão meio aum, pois o fonema não pode ser articulado linguodental, já que nossas bocas estavam novamente coladas. Nada mais se podia dizer: éramos apenas sentidos.
      Já era dia. O sol sem discrição (intruso mesmo!) iluminava nossas faces, denunciando-nos a quem quer que passasse na rua. Já não nos importávamos mais com nada que não dissesse respeito única e exclusivamente a nós dois. Mas a loucura tem seus lapsos de lucidez. Tem seus descuidos. Naquele momento eu pensei não na Minha Colegial, mas na jovem estudante que era a garantia de um próspero futuro para seus pais. Que universidade ela cursaria ali comigo?! Que futuro eu poderia lhe dar a partir do meu jardim? (que nem mesmo era meu!).
      Num impulso, eu interrompi nosso momento de ternuras e lhe disse:
      – Sim!...
      – Sim o quê?
      – Você vai sim para a aula de Educação Física... e para as aulas a tarde, também.
      – Por favor! Não fala assim comigo! – pediu-me ela com carinho.
      – Assim como?
      – Como meus pais... Não me força a fazer o que eu não quero. Tenta me convencer, ao menos; se você me convencer eu faço tudo que você quiser... Mas assim não!
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      Ela me olhou com o seu olhar de tristeza, fez um biquinho, inclinou a cabeça (e eu adorava vê-la inclinar a cabeça, pois o seu volumoso cabelo pendia todo para um lado, deixando-a mais jovial, e eu não resistia; abraçava-a com entusiasmo) e, incontido, eu dizia:
      – Minha meninona!
      – Vamos. Diga-me o que seria mais interessante ou mais importante do que ficar aqui contigo.
      – Você continuar frequentando normal e regularmente as suas aulas. Isto nos dará as condições necessárias para continuarmos nos encontrando pelo menos duas vezes ao dia. Mas vai que você começa a faltar às aulas, isso logo chega ao conhecimento dos teus pais, e aí complica... Já tem professora preocupada com sua quase-dislexia em sala. Você vai para a Educação Física e volta por aqui. E assim vamos levando até que as coisas se resolvam para mim ou estourem para você, o que justificará uma tomada de atitude radical por nós dois, qualquer que seja...
      – Agora sim. Não é nada do que eu queria, mas você me convenceu.
      Ela deu-me um abraço e um beijo, pegou-me pelas mãos e disse:
      – Então, vamos comigo.
      – Não é nada prudente...
      – E eu ‘tou nem aí pra o que é ou não é prudente. Vamos. Leva-me até a escola.
      – Até próximo... na esquina. Está bem assim?
      – O que está bem pode sempre ser melhorado. Concorda comigo? Então vamos melhorar esta nossa situação. Você pode e sabe como. É só querer... Confio tanto em
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você.
      – Mas não é só querer, minha meninona! Querer é o que não falta, mas o meu querer conflita com sextilhões de outros quereres. É a vida: cruel com o indivíduo. E vamos, senão você fica com falta (aliás, mais uma falta, hein?!).
      – Vamos! – disse ela feliz da vida, e saímos abraçados pelas ruas da cidade ainda sonolenta; e nós dois a pincelarmos os desejados horizontes ainda imprecisos do nosso porvir.
Quando nos demos conta, já estávamos na esquina da rua do colégio e eu disse:
      – Eu fico por aqui.
      Ela me puxou pela mão, dizendo:
      – Nada disso! Já que estamos aqui, vamos até lá. Problema de quem se incomodar.
Fomos até o portão da quadra da escola e já não mais havia alunas do lado de fora. Eu disse que já começara a aula e que era possível ela ter ficado com falta, e tentei apressá-la (em vão!). Beijamo-nos e ela disse:
      – Então me espera aqui, pois se a professora pôs falta para mim eu volto contigo.
      Ela disse isto e saiu correndo. Em poucos segundos ela estava de volta com sua carinha de tristeza:
      – Pois é... a professora ainda não fez a chamada... Deixa-me voltar contigo; eu só respondo a chamada e digo que não estou passando bem. Ela me libera.
      – Não, minha teimosinha. Depois da aula você passa lá em casa. Certamente estarei te esperando. Mas larga de ser tão teimosa, tá?! Te amo... muitão! Vou te esperar...
      Eu fui falando e saindo, pois de outro modo ela não
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ficaria na escola. De outro modo ela sequer voltaria para a quadra para responder o seu presente, professora! mesmo estando tão ausente em pensamentos. De outro modo eu a levaria comigo como parte inseparável de mim mesmo.
      Voltei para casa, acompanhado das melhores lembranças de Minha Colegial que me marcariam para sempre. Lembranças que nos momentos mais críticos de minha vida (por toda a minha existência) me ajudaram a superar as amarguras e me mantêm vivas as convicções de que há pessoas melhores; superiores, melhor direi. Sublimes! Imprescindíveis e inesquecíveis!
      Em casa eu não consegui fazer nada! Foram uns-quese-infindáveis-quarenta-minutos de espera. De ansiedade fazendo o coração embalar o peito como um cavalo selvagem em doidivanas viagem.
Mas por fim ela chegou! Aparentando um discreto cansaço e algumas gotas de suor escorrendo pelo seu rosto, como se a me provocarem SOLVA-ME!; e foi o que eu fiz: solvi-lhe cada gota do seu agridoce suor.
Eu a convidei a ir comigo à casa da mãe Soledad, pois eu tinha as injeções a lhe fazer, e ademais eu argu-mentei:
      – Seria muita ingratidão se agora nos esquecêssemos daquela que foi e é a principal responsável pelo nosso primeiro encontro. Concorda?
      – Com certeza. Eu mesma jamais irei esquecer-me da mãe Soledad. E tampouco conseguirei retribuir o que ela fez por mim.
      – Por nós! – eu disse.
      Fomos para a casa da Soledad e antes de passarmos
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pelo portão ela foi logo me dizendo:
      – Eu vou passar o dia contigo. Ouviu bem? Se não, vou repetir: eu vou passar o dia contigo.
      – Onze e meia você vai para tua casa...
      – Não é minha casa.
      – Tudo bem. Onze e meia você vai para a casa dos teus pais, devido a tua prima. Quando ela sair você vai para a escola, mas passa lá por casa. E na volta da escola também. Fica bom assim?
      – E à noite também? Claro, né?
      Soledad ficou feliz em nos ver e eu perguntei:
      – Já pensava que eu havia me esquecido de você e de tuas injeções, não é? – eu disse, dando-lhe um abraço e o desejo de um bom dia.
      Ao abraço também se juntou a Minha Colegial, o que deixou a Soledad mais alegre, e eu percebi uma melhora considerável em seu aspecto geral e comentei com ela, ao que ela disse:
      – Também... com os cuidados e os carinhos de vocês!... E estou me sentindo bem melhor mesmo...
Quando eu ia fazer as injeções na Soledad, a Minha Colegial se aproximou e pediu:
      – Deixa-me aprender aplicar injeção. Deixa?
Soledad me olhou com um olhar de pavor e percebi claramente que ela empalideceu e lançou sobre mim uma imensa e silenciosa interrogação; um desesperado apelo. Era como se ela estivesse me pedindo: “Não me faz de cobaia não!”.
      – Não, mãe Soledad. Ela vai aprender só olhando. Depois ela pratica em mim. Pode ficar tranquila.
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      Demoramo-nos um pouco e eu, a meia voz, quase sussurrando, lembrei para a Minha Colegial que ela ainda estava em jejum e que já eram mais de dez horas da manhã. Sugeri-lhe que eu iria pegar algumas frutas para ela, em casa, de maneira discreta para que Soledad de nada desconfiasse e isto não lhe levasse preocupação. Porém, a minha meninona teimosa não quis perder a pose nem a fama e foi logo dizendo em voz alta:
      – Eu vou contigo.
      – Para aonde vocês já vão?! O que foi que aconteceu?! Eu disse alguma coisa que magoou vocês? Podem dizer. Se eu disse ou fiz, me desculpem...
      Não me deixou alternativa senão ser claro:
      – É que ela ainda está em jejum a esta hora, mãe Soledad! E quando eu disse que eu iria pegar algumas frutas em casa para comermos aqui, ela disse que quer ir comigo também.
      – Oh, meus filhos! Isso é uma desfeita. Tem comida aqui. Comida de pobre, isto é verdade, mas que alimenta e mata fome.
      – Então eu vou a minha casa pegar alguns-de-comer e volto logo. Juntaremos tudo e comeremos aqui mesmo, como uma boa e bem unida família.
      As duas concordaram e rápido eu estava de volta. E comemos com um comer de bom apetite.
      Conversamos um pouco; Soledad pareceu-me curiosa, ainda que contida, e perguntou como estávamos indo. Se a minha bem amada (conforme ela se referia à Minha Colegial quando conversava comigo) estava mais calma e se já havia compreendido as dificuldades da minha situação.
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      Respondemos que estávamos nos entendendo excelentemente em uns assuntos, mas que no mais estávamos tentando nos entender; conversando... E que tínhamos esperança (quase-certeza) de que nos entenderíamos, pois havia a base fundamental para este entendimento, e fizemos questão de deixar claro que base era esta, e dissemos para ela:
      – Amor e compreensão existem; o mais é mesmo como você diz: é questão de tempo. Só uma questão de tempo!
      – Vocês sabem muito bem que tudo o que eu mais quero é a felicidade de vocês. No que depender de mim... Não se acanhem. A casa é nossa, eu repito. Podem ficar à vontade... Aliás, já que a casa é de vocês, não tenho nem por que está dizendo quais os seus direitos, não é mesmo? Seria um contrassenso...
      Mas já passavam das onze horas da manhã, o que significava que em alguns minutos a prima da Minha Colegial chegaria em casa e deveria encontrá-la arrumada para, às quinze para as treze horas, ir para o colégio, o que no acertar-dos-ponteiros significava que as duas sairiam de casa juntas. Apressei a Minha Colegial para ir, mas como eu já havia aprendido, com argumentos e não com autoritarismo. Daí eu ter dito:
      – Se você puder sair uns cinco minutos antes, melhor. Desfrutaremos desses cinco minutos juntos, lá em casa, no nosso jardim.
      Claro que surtiu efeito: ela rapidamente se levantou, pegou minha mão, nos dirigimos até Soledad e lhe demos um grande e duplo abraço de agradecimento.
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      Saímos os dois já abraçados, sem nada a temer; nada que lembrasse o exagerado cuidado do dia anterior para que um só saísse depois do outro, para não sermos vistos juntos. Quando nos aproximamos do portão de minha casa ela fez birra e queria-porque-queria que eu fosse levá-la em sua casa. Tentei resistir; argumentei (desta vez em vão) que poderíamos ser vistos por sua prima (vai lá que ela tenha chegado mais cedo, pois nunca se sabe...) mas qual o quê?! Sem acordo.
      – Mas você, hein!? Não aprendeu mesmo a desistir nunca? Tudo bem... Eu vou contigo seja aonde for hoje e sempre. Vamos.
      Ela pulou (literalmente ela pulou!) em cima de mim e se pendurou no meu pescoço, quase cruzando suas pernas em volta da minha bacia pélvica e me beijando; quase gritando de alegria. Eu ainda consegui andar alguns metros com ela assim, como uma medalha pendurada em meu pescoço, mas por fim ela desceu de mim e caminhamos abraçados pelas ruas da cidade incandescente ao meio dia e fervilhante de pessoas que iam e vinham para seus postos de sobrevivência. Eu até pensei:
      – Eles não sabem amar?!
      – O que foi que você perguntou?
      – Só pensei alto. Nada importante.
      – Ah, não! Pode ir logo dizendo o que foi. Tudo é importante.
      – Eu só vi que as pessoas não vivem. Correm, correm... e é um corre-corre sem fim. Uma competição louca pela sobrevivência ou pela ganância de encher o saco-sem-fundo do egoísmo.
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      – Ah! – ela disse assim meio sem ver muita importância nisto e continuou:
      – Já chegamos!?!
      – Pois é... Já é quase hora de você ir para a tua escola. Vou te esperar passar... E tua prima deve ter chegado, pois a casa está aberta.
      – Tudo bem... No máximo em oito minutos eu chego lá. Aliás, por que você não me espera? Já vamos juntos. Vem. Entra em casa comigo, só assim eu te apresento à minha prima. – fez uma pausa, como se estivesse esperando alguma resposta minha, e continuou:
      – Exibida! Eu creio que ela ainda não descobriu que é feita de carne e osso. Aliás, se olhar bem parece ser de couro e osso. Coitada! Sonhava em ser modelo, só não sei de que. Passa até fome para não engordar... Mas vamos; entra em casa comigo. Vem?
      – Não gosta da prima. – eu observei.
      – Não gosto de gente metida.
      – Mas eu prefiro te esperar lá em casa. A ansiedade da espera; a incerteza; o contar os segundos deixam-me mais vivo. Já vou...
      – Cadê o beijo e o abraço?
Abraçamo-nos e beijamo-nos e eu me fui só para continuar esperando-a. Eu estava viciado naquela adrenalina da espera e da incerteza. Mas nem mesmo deu tempo para que eu colhesse algumas flores para ela quando a vi a uns cento e trinta metros, acompanhada por uma jovem de mais ou menos uns vinte e três anos. Fato que me chamou a atenção, enquanto corri para colher-lhes alguns cravos vermelhos, já que a única vez que eu a vi acompanhada foi
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com os seus pais, naquela tarde de sábado.
      As duas chegaram até ao portão e eu as convidei para entrar. A Minha Colegial entrou na frente e foi em minha direção me beijando e me abraçando, permanecendo com o braço direito em volta de minha cintura; a sua acompanhante entrou em seguida desejando-me um boa tarde! meio-que-aristocrático e agradecendo pelo convite que eu fizera para que entrassem. Entreguei os cravos para a Minha Colegial e a sua acompanhante exclamou:
      – Que romântico, hein?!
      Minha Colegial simulando descaso disse secamente:
      – Ah! Já ia me esquecendo: essa é a minha prima; prima, este é... Ah! Você já sabe... O congresso dela ter-mina hoje à noite e ela quer viajar amanhã cedo. Os meus pais só chegam depois de amanhã, lá pela tarde...
      – Não sobrou nem uma flor para mim?
      – Hum!!! Já vai aí?! Não sobrou, mas eu vou te dar uma das minhas. Pega. E guarda de lembrança da priminha querida, tá? – disse a Minha Colegial com incomum sarcasmo para a sua idade. E tanto que a sua prima ficou desnorteada e se apressou:
      – Vamos, Dry. Assim chegaremos atrasadas. – dirigindo-se para mim, abraçou-me e falou-me da satisfação em ter-me conhecido. Que gostaria de nos vermos antes dela viajar, e sugeriu que à noite eu fosse para a casa do tio dela, pois assim faria companhia à sua prima e eu esperaria até que ela chegasse.
      A Minha Colegial (Dry! Agora eu sabia pelo menos um apelido ou uma sílaba do seu nome pelo qual os seus
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familiares a chamavam; ou quem sabe fosse este o seu verdadeiro nome?) concordou-mas-sem-muito-concordar, cujos motivos-razões eu não consegui identificar.
      As duas se foram e a solidão voltou a me rondar. Solidão de hora marcada. Até me lembrei de algo que fora tão marcante para mim desde que vi a Minha Colegial (Dry o quê? Ou de quê?) pela primeira vez:
      Entre as cinco e dez e cinco e quinze da tarde – com exceção dos domingos e feriados – quase que pontualmente, passava por minha calçada com seu uniforme de colegial: saia pinçada, sapatos pretos e meias e blusa brancas, alguns livros contra os seios como se denunciasse pudicice, bem apertados contra si pelos braços cruzados sobre os mesmos; cabelos longos esvoaçando ao vento – o que a obrigava a fazer bruscos movimentos com a cabeça para reordenar os cabelos – uma jovem de passos firmes e lentos como se a nada temesse e tampouco tivesse pressa de chegar a lugar algum, pára diante das grades do meu jardim e por entre as hastes de ferro colhe um cravo e o põe no canto esquerdo da boca e prende-o com seus dentes brancos que me lembram teclados de pianos. Calma e altivamente por entre as hastes de ferro colhe também alguns ramalhetes de jasmim; dá meia volta olhando-me por entre os cabelos, cheira os jasmins e segue pela calçada como se somente ela existisse.
      Confesso que naquele momento bateu saudade de um passado tão recente, mas que parecia já tão distante! E comecei contar o tempo:
      – Quatro e cinquenta e três minutos da tarde! Ainda faltam mais ou menos vinte minutos para que eu reveja a
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Minha Colegial!
      O jardim já não era o mesmo. Os cravos já não eram os mesmos. Os jasmins já não eram os mesmos. Eu já não era o mesmo. A Minha Colegial já não era a mesma. Agora, as dúvidas, mistérios e incertezas deram lugar a prenúncios de alegria, felicidade, prazeres, desejos...
      – Oi! Posso colher alguns jasmins? – surpreendi-me com Dry (a minha eterna colegial) tentando se passar por outra pessoa.
      – Oh, engraçadinha! Vem logo me dar meu abraço antes que eu me dilacere de saudades, Dry.
      Abraçados, colhemos alguns cravos e jasmins e eu perguntei:
      – Dry o quê?
      – Hum! Deu muita atenção àquela exibida.
      – Dry o quê? – insisti.
      – Pergunta com carinho... que talvez eu diga. Ou pergunta para ela, à noite.
      – Sim, vida da minha vida: Dry o quê?
      – Deirdry. Horrível! Simplesmente não gosto do meu nome. Ainda bem que as pessoas têm preguiça até de falar e me chamam apenas assim...
      – Assim como?
      – Ai! Resolveu não deixar nenhuma pergunta para amanhã? – ela me surpreendia com pensamentos profundos sobre coisas aparentemente singelas.
      – Dry. – disse ela, depois de fazer um biquinho e receber uns carinhos.
      Como eu estava convidado pela prima de Deirdry a fazer companhia à Minha Colegial até que ela voltasse do con-
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gresso, eu convidei a Minha Colegial a irmos visitar Soledad e depois ela iria para a casa dos seus pais. Lá pelas dezenove horas eu iria para a casa dela até sua prima chegar – argumentando assim, tudo ficava fácil com a Deirdry. E assim fizemos.
      Atrasei-me um pouco (trouxeram-me notícias desagradáveis – ainda que não imprevisíveis – dando contas de que bombardeiros estadunidenses haviam destruído arrozais no Vietnam, com armas químicas; e que cartazes com fotos de subversivos procurados estavam sendo afixados em repartições públicas...).
      Quanto ao Vietnam, a notícia me abalou imensamente, mas as horas que se seguiram ao lado de Deirdry e depois somada a companhia de sua prima aliviaram-me o pesar, ainda que até hoje sinto remorso quando me lembro que enquanto eu me divertia meus camaradas morriam...
      Já na casa da Deirdry, ela me perguntou o que estava acontecendo, pois eu estava diferente; parecendo distante. Insisti em afirmar que era apenas impressão dela, no que creio que não a convenceu e ela desistiu de saber o que estava acontecendo e me pegou pela mão e me convidou:
      – Faz favor... Vamos lá dentro para eu te mostrar onde eu guardo as flores.
Lá dentro era o quarto dela.
      Logo na porta eu já senti um suave cheiro de talco e vi uma quantidade de flores que eu nem imaginava que fossem tantas dentro de uma espécie de ânfora grande feita de cerâmica em cima do seu criado-mudo.
      – Viu que eu guardo tudo que foi seu?
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      A casa era estranhamente silenciosa. Nada que me lembrasse a gata sempre miando quando não estava dormindo em algum lugar, os ratos do sótão e os morcegos comendo e derrubando meus figos. No quarto dela havia uma pequena estante com alguns livros e três bonecas. Sobre a penteadeira apenas um pente e uma escova para cabelos e dois cadernos.
      Ela ainda insistiu:
      – Você pode não querer dizer, mas você está diferente.
      E insinuou com um misto de malícia e ciúmes:
      – Ou será que já está triste porque a minha prima vai embora?
      – Estou encantado com a organização do teu quarto. Só você mesma.
      E falei isto e a abracei por trás e perguntei:
      – Podemos sentar em tua cama?
      – Precisa perguntar?
      Eu sentei com ela no colo e... não vimos quando a prima dela chegou senão o toc-toc dos saltos do seu calçado já corredor a dentro.
      Ficamos os três conversando ali mesmo até uma e quinze da madrugada de sábado. Aleguei que já estava perto de amanhecer o dia e que ela precisaria acordar cedo para viajar. Ela nos convidou para irmos com ela até a estação rodoviária, com o que concordamos.
      A Minha Colegial ainda me acompanhou até a saída e nos demoramos por mais alguns minutos nos amando.

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CAPÍTULO VIII

      Pareceu-me que queríamos mesmo era termos certeza de que a Lena, a prima da Minha Colegial, viajara de fato e que:
      – Enfim, sós!
      – Pelo menos até amanhã, quando teus pais chegarão. Aí...
      – Aí...? – perguntou-me Deirdry, quase pendurada no meu pescoço.
      – Aí, será impossível imaginarmos como será nossa vida; como serão nossos encontros; como será a tua convivência com eles...
      – Nossa vida será como nós dois quisermos! Não dependerá de mais ninguém. A não ser que você... tenha apenas se divertido comigo; no que eu não quero e não tenho motivos para crer.
      Falando assim, pendurada em meu pescoço, com seus olhos dentro dos meus, com sua boca roçando na minha, com o seu hálito deliciosamente excitante... eu fui tomado de um forte desejo de levá-la para minha casa e apenas sermos felizes. Mas eu não conseguia me desvencilhar dos fatos: eu nem mesmo tinha casa. Eu não sabia sequer o que seria o meu próximo minuto, principalmente nos dois últimos dias em que as notícias eram ainda mais desesperantes: publicação de mais um Ato Institucional (o que chamávamos de AI para expressarmos o quanto eles doíam); a invasão de mais uma célula resultando na morte de vários camaradas; a iminência do meu exílio... Tudo, nos momentos de lucidez, de razão pura, transformava meus
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sonhos com Deirdry (A minha COLEGIAL NO MEU JARDIM) em doídos e amargos pesadelos. Mas o bom da vida é viver cada momento, e o momento era de amor, paixões... Corpos febris de desejos. Aquela agradável (deliciosa mesmo) sensação de estarmos os dois sozinhos num mundo só nosso, sem a nada temermos.
      O ônibus com a Lena (a prima da Minha Colegial) já saíra fazia mais de meia hora, e nós dois ali, conjecturando, sonhando... nos saboreando, e por que não?! Por fim nos lembramos de ir para casa (a esta altura, qualquer casa: a dela, a minha...) e que diferença fazia? Apenas um lugar aconchegante para nossos corpos em frenesim.
      – Vou passar o dia todo contigo, seja onde for.
      – E a noite toda também. – eu acrescentei.
      – E por toda a vida, amém! – Deirdry gostava de quando e vez fazer umas rimas que, dependendo do assun-to e das circunstâncias, eram engraçadas.
      – Sim. E por que não? – concordei, acrescentando uma interrogação.
      – Porque você não quer.
      – Vamos para casa. – eu a chamei.
      – Qual?
      – Puxa! Como estamos bem de casa: até podemos escolher! – eu tentei ser otimista sem ser cômico.
      – Então escolha você.
      – Primeiro, para a tua...
      – Eu já disse que ali não é a minha casa.
      – Tudo bem: primeiro, para a casa dos teus pais, pois você já pega o uniforme e o material escolar, pois à tarde você tem aulas, e eu não gostaria que você faltasse.
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      – Sim, meu pai! – Deirdry foi irônica, o que me deixou meio desconcertado e tentei consertar:
      – Não custa nada. São apenas duas aulas no sábado. Logo você estará de volta, e aí fica comigo até amanhã. E ainda temos as injeções da Soledad...
      – É... Vamos. – ela disse, sem muito entusiasmo.
Já na casa dela, eu pedi para que somente ela entrasse e pegasse seu material para ir ao colégio, à tarde, pois devido ao adiantado da hora (eu argumentei) deveríamos nos apressar, pois já passava da hora da medicação da nossa mãe Soledad. E ela foi extremamente compreensiva.
Rápido, chegamos à casa da Soledad e ela nos recebeu com euforia:
      – Sabem que eu cheguei mesmo a pensar que vocês haviam fugido? Eu já tava torcendo para que tudo desse certo com vocês aonde quer que vocês fossem... Mais do que minha própria saúde eu quero que vocês sejam felizes. Que tudo dê certo entre vocês...
      E virando-se para Deirdry:
      – Oh, minha filha! Já faz um tempão que você está aí de pé e ainda mais com essa mochila pendurada na mão. Desculpa-me, por favor. Ponha-a aqui, em cima da mesa e sentem os dois. Aqui, pertinho de mim. Sabem que eu senti falta de vocês? Aquele vazio! Eu penso que foi por causa de eu está com uma intuição de que vocês haviam fugido. Mas era aquela falta misturada com alegria: a falta era egoísmo mesmo, a gente tá sempre pensando na gente; e a alegria era por pensar que vocês a essa altura dos acontecimentos já estavam em um lugar seguro, tranquilo; e felizes, o que é o mais importante.
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      Percebi que a Soledad já não falava mais com o seu cansaço reticente, o que dizia da sua grande melhora, e comentei com ela sobre isto com profunda alegria.
      A Minha Colegial (quase sussurrando em meu ouvido) me pediu:
      – Nós podemos levar as minhas coisas lá para sua casa?
      – Claro. Mas agora?
      A Soledad pôs a sua mão em cima da mão da Deirdry (que repousava sobre a mesa) e denotando preocupação ou zelo perguntou-nos:
      – O que é que está acontecendo? Minha filha não quer ficar aqui?
      Eu tentei logo de explicar para que não perdurasse a preocupação e a contrariedade da nossa anfitriã:
      – Está tudo bem, mãe Soledad. É que a Deirdry está me pedindo para deixar a mochila dela lá em casa, pois à tarde ela irá para a escola e já trouxe o uniforme e os livros.
      – Ah! Eu fiquei preocupada. Mas vocês vêm almoçar aqui, não é?
      – Não, mãe Soledad. Nós nos arrumaremos por lá. Chega de te dar tanto trabalho e preocupação. – eu tentei ser meio-que-diplomático.
      Nem bem terminei de falar e a Minha Colegial já estava de pé, com sua mochila a tiracolo e dando beijinhos de despedida na Soledad, enquanto pegava a minha mão e foi quase-que-me-puxando para irmos embora.
      Logo que entramos em casa a Deirdry foi me perguntando onde poria a sua mochila e dizendo que precisava
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retirar o uniforme de dentro da mesma, pois a essa altura já estava todo amarrotado.
      – No quarto. É todo seu.
      – E você não vai me acompanhar?
      – Claro. É que eu estou impressionado com a bagunça que virou isto que era uma casa. E antes, me faz um favor?
      – O que é?
     – Vem primeiro comigo por comida e água para a gata, a felina, que eu esqueci por causa da minha gatinha Dry. – eu disse isto abraçando a Minha Colegial (agora gata), e ela transbordou de felicidade e prontamente foi me ajudar.
      Depois, peguei sua mochila e abraçados fomos para o quarto, onde ela se acomodaria. E tudo com a mais profunda naturalidade que não me contive e comentei com ela – também com a mais profunda naturalidade:
      – Parecemos até um casalzinho que faz isto rotineiramente, não é?
      – Que somos um casalzinho, não parece: somos. E que fazemos isto rotineiramente... Quem sabe? Talvez façamos, só que mentalmente. Não é?
      Devo admitir (ou confessar?) que era a inteligência incomum daquela jovem o que mais me fascinava nela. E era uma inteligência sábia, o que quer dizer singela, sem arrogância e sem frieza. Uma inteligência humana e humanista e não aquela inteligência das máquinas e dos pedantes. E foi somente aí que eu compreendi por que ela não precisava de muito falar (ou quase nenhum falar!): para compreender o mundo em sua volta e até mesmo para
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se comunicar ela precisava apenas sentir e ser sentida.
Estaria ela em um estágio superior da Evolução? Foi o que eu me perguntei. E isto me deu, ou me facilitou, a compreensão por que ela reclamava de que eu falava demais; que melhor era senti-la...
Eu disse isto para ela, mas simplesmente ela disse tão pouco quando eu esperava que, envaidecida, ela se desmanchasse em palavras:
      – Para você me amar ou para eu te amar não é preciso que você me diga eu te amo e tampouco que eu te peça que você me ame: basta amar. Sentir.
Fiquei tão desnorteado que rapidamente mudei de assunto:
      – Ih! Já são doze e quarenta e seis. Vamos comer algum-de-comer para você não ir ao colégio com fome.
      – Liga pra isso não. Dá-me só um abraço... é tudo o que eu quero no momento. Aproveita enquanto eu estiver na escola e lê o meu diário e, se for interessante, comenta.
Percebi que o que ela queria mesmo era me dar uma ocupação para que eu ficasse em casa esperando por ela, e pensando assim eu concluí que a Minha Colegial era muito insegura em relação aos meus sentimentos. Ela foi para seu colégio e enquanto isso eu reli o seu diário e escrevi alguns parágrafos em que eu comentava sobre o mesmo. Quando ela chegou eu a esperava no jardim com um cravo vermelho na mão para ela e de braços estendidos para recebê-la com um grande e efusivo abraço.
Ela foi logo perguntando:
      – Você saiu?
      – Não. Reli teu diário. Escrevi algo... está dentro...
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      Ela gritou:
      – Que ótimo! Vamos entrar... Eu quero ler... – eu estranhei tanta euforia nela, mas creio que foi mais pelo fato de eu não ter saído do que pela notícia de que eu reli seu diário e o comentei por escrito.
Ganhei tantos beijos, abraços e carinhos que até pensei que a vida fosse só um mar de rosas.
Lá pelas nove horas da noite é que ela se sentiu no mundo dos fatos, postergando assim o mundo dos sonhos, fantasias e desejos:
      – Quero tomar um banho. Posso usar qual banheiro?
      – O que você quiser. Não quer antes comer algo?
      – Obrigada. Depois...
E foi naquela noite ímpar que a Minha Colegial (de pureza e ternura que jamais vi nem antes e tampouco depois dela) se fez mulher sob os meus lençóis e se fez perpétua em minhas melhores reminiscências!

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EPÍLOGO

      Depois de tanto tempo, bem por estes dias, remexendo meus guardados, encontrei algumas flores desidratadas entre meus papéis amarelados – antigos confidentes silenciosos! – e vi ante mim, escultural e misteriosa, a minha colhedora de flores, como se o tempo não houvesse passado. Aliás, como se tempo só existisse no presente. Ou como se nada do que vemos existisse além de nossas imaginações e desejos.
Não me atrevi a ler nada do que ali estava escrito. Continuei contemplando as flores desidratadas, como se eu estivesse no meu jardim contemplando a Minha Colegial colhendo os seus cravos e jasmins.
      Não vi o voar das horas. Já era madrugada. A luz da rua iluminava o sobrado inumano em que eu passava meus monótonos dias, sem roseiras para regar; sem flores para oferecer; sem beija-flores para me visitar; sem uma colegial sequer para contemplar... E sussurrei como quem dá o último suspiro:
      – O que faremos das cinzas dos nossos sonhos?!

      Deirdry, eu não quero ficar esperando que aquele teu desejo de ao cair uma estrela, se cumpra. Não quero descansar sobre os lauréis da espera. E não é verdade que o tempo nos dará a razão: vou buscar a razão, gastar o meu tempo, viajar sem destino, encharcar-me na chuva, molhar a roupa, enlamear os sapatos... porque assim me sentirei mais humano, mais gente. Eu quero é sair por aí, andar, descobrir o infinito, e no infinito reencontrar o teu corpo, assim como recentemente tenho voltado à adolescência para reencontrar-me em teus braços.
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      Da Minha Colegial no Meu Jardim permaneceu apenas nas minhas reminiscências e permanecerá sempre em mim – e principalmente nos momentos das melhores lembranças – A COLEGIAL, não mais minha e nem mais no meu jardim. Mas esta que trago cá dentro será só e sempre MINHA.

***

Um dia, eu caminhava por entre os cactos e para onde eu olhava só via espinhos; até que olhei bem para frente, rumo à outra extremidade do campo, e vislumbrei uma flor. Daí em diante eu não mais vi os espinhos.

Para Soledad, minha única e verdadeira mãe, que nos adotamos mutuamente a partir da minha adolescência marcada pela rebeldia e a subversão.

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AUTORIZAÇÃO:

Por não reconhecer a autoridade do Estado burguês;
Por crer que o conhecimento, a cultura e a Ciência são patrimônios de toda a humanidade;
Por condenar visceralmente a propriedade privada;
Por ignorar as fronteiras – principalmente geográficas;
Por não reconhecer a legitimidade dos governantes serviçais;
Por entender que a verdadeira pirataria é estudar em uma escola pública, frequentar bibliotecas públicas, acumular conhecimentos e bens materiais e intelectuais oriundos do povo e se arvorar proprietário desses bens;
Por crer na inalienável liberdade de pensar e no poder da escrita:
eu, F. Antenor Gonsalves, in fine assinado, autorizo a todo cidadão de qualquer parte do mundo a reproduzir e divulgar este livro por todos e quaisquer meios.

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Contatos:




Retrato do escritor aos doze anos de idade.



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Como podemos nós mesmos governar o mundo sem delegarmos poder a corruptos?

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