quinta-feira, 29 de novembro de 2012


O CACHIMBO DE MINHA’VÓ
OU:
(O ÚLTIMO CORONEL)
ROMANCE
F. ANTENOR GONSALVES 

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Venezuelana do Livro, Caracas, Venezuela)
Gonsalves, F. Antenor
G626c     O Cachimbo de Minha’vó ou: (O Último Coronel)
F. Antenor Gonsalves.
Caracas: ISKRA, 2012.
1. Literatura Latinoamericana I. Título.
10-6132
CDD-869.915
Índice para catálogo sistemático:
1. Romance: Século 21 – Literatura Latinoamericana 869.915
2. Século 21: Romance – Literatura Latinoamericana 869.915 
Todos os direitos reservados de acordo
com a legislação em vigor
Hecho en Venezuela.
Revisão, diagramação, editoração, paginação, digitação, capa, arte final:
F. Antenor Gonsalves.
 
Ref.: 8.692.             ISKRA EDITORA
& DISTRIBUIDORA
            A reputação dos coronéis, assim como a dos grandes médicos, mede-se pelo número de mortos que fizeram.
            O coronelismo foi o ressurgimento das mazelas do feudalismo em pleno século XX.

 “... não quero que eles aprendam nas
minhas costas a espancar os outros.”
Máximo Gorki.
Este livro é minha tentativa frustrada de reescrever
O CACHIMBO DE MINHA’VÓ,
um dos meus livros recolhidos pela ditadura militar.
Escrevo porque, de letra em letra, eu vomito toda
a minha indignação com qualquer forma de injustiça.
Resumo de minha ficha no SNI com referência a O CACHIMBO DE MINHA'VÓ
APRESENTAÇÃO
            Quero – pela terceira vez – gritar pela honra e glória de MARIA DA GLÓRIA (Maria Cacheado), não que ela necessite de resgate, assim como outras tantas marias violentadas pelos coronéis e, como se não bastasse, difamadas pelos familiares desses barões feudais do século XX, como se os delinquentes fossem vítimas e as suas vítimas fossem “seres endemoniados”.
            Na primeira vez, ao me decidir escrever a história de Maria Cacheado, ainda na minha adolescência, encontrei a resistência de parentes; depois, ao publicar o livro em sua primeira edição, provoquei a fúria insana dos militares... Agora, me senti como meio que contagiado por essas vis reações e tive que lutar contra o monstro do censor que há em cada um de nós.
            Maria da Glória foi violentada, mas a violência sofrida não a fez violenta; foi discriminada por todo o resto de sua vida, mas ainda assim ela ensinou a outros seres olharem seus algozes de cima para baixo, mesmo que caídos – e eu tento, a meu modo, ser um deles.
            Giróvago e supérstite eu sou. Derramei meu sangue e meu suor por um mundo melhor – sem nada querer em troca; sem buscar benesses pessoais. Vi outros povos com os seus mesmíssimos problemas universais: exploração, miséria, injustiça, abandono, marginalização, medo... mas também em comum têm os mesmos sonhos e esperanças: de uma vida digna e de um mundo melhor, pleno de paz, dignidade, justiça...
            Por longo tempo dos meus primeiros anos de existência fui o companheiro predileto de Maria Cacheado; seu confidente; seu cúmplice; seu “perpetuador da espécie”, como de quando e vez ela me definia. Seu “poetinha de meia tigela”. E se poeta eu sou – mau ou bom versejador pouco me importa – quero apenas fazer os versos que ela quis fazer e os coronéis os rasgaram no silêncio das noites dos malfeitores de patentes; e as maledicências daqueles que só têm olhos para o próprio umbigo turvaram através dos tempos com suas estórias contadas no primor das inverdades dos que carecem de glórias, aplausos e afagos.
            Cada personagem do que escrevo é um pouco de mim: o que eu sou, o que eu gostaria de ser e o que jamais quero ser. E assim, personagem de mim mesmo, tento viver o papel do homem completo que quero ser. Nada além disto.
            Aqui, registro tão-somente fatos, não como romanceiro, mas como pretenso historiador. O repassador da história de Maria da Glória Dias e Bragança e de tantas outras marias que se perderam no anonimato funesto imposto pelos que cantam loas aos que viveram do crime.
            Fizemos um pacto – eu e Maria da Glória – de que um dia eu escreveria o seu livro: a sua HISTÓRIA! Não para a vaidade de quem já não mais existe senão em mim; em minhas entranhas; nos meus mais grandiosos e profundos pensamentos e sentimentos, mas pela redenção de vítimas e qualificação de tiranos – cada um no seu devido lugar. Pela justaposição dos fatos e dos valores.
Antenor.
O CACHIMBO DE MINHA’VÓ ou: O ÚLTIMO CORONEL
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CAPÍTULO I
            Escureceu sem que houvesse nenhuma expectativa de que naquela noite tivéssemos energia elétrica. E nós tínhamos esse desagradável privilégio de sabermos disto bem antes do que os demais habitantes do lugar, pois o meu pai era o responsável pela única usina de eletricidade daquela cidadezinha onde morávamos, com os seus 1826 habitantes (e eu desconfio de que contaram três vezes comigo, pois Porcina afirmava peremptoriamente que me declarara ao censo como sendo eu seu filho, o que Maria Cacheado também afirmava ter feito), fatos que me levaram a propalar que quando eu saí de Lastro aquela cidadezinha perdera seus dois únicos filhos ilustres e um subversivo. Porém, a saída dos dois filhos ilustres de nada foi sentida dentre tantos ilustres; e tampouco a saída do subversivo, já que os lastrenses criam que o “lugar tão bem protegido pelo seu santo padroeiro não comportava esse tipo de gente”. Tipo que além de inimigo da ordem social ainda diziam ser o mesmo um ateu. E até escarneciam, fazendo um jogo pífio de palavras:
            – Ateu ou à toa?
            E outros, na tentativa estrênua de superar a mediocridade uns dos outros e outros de uns, retrucavam:
            – Ateu e à toa.
            Escureceu sem que houvesse nenhuma expectativa naquela noite de lua em quarto minguante. Mas logo tudo se iluminou como se relampagueasse. Como se do nada surgisse a luz num mágico fiat lux. Vimos então uma silhueta desenhar-se na porta segurando um palito de fósforo
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aceso na mão direita e na mão esquerda uma espécie de bastão com uma matula presa em uma de suas extremidades, cuja matula continha sua alimentação para viagem; e a tiracolo um embornal com vestuário; cascas, folhas e raízes de árvores medicinais e outros pertences daquele vulto viajante. Preso à barra da longa saia de cambraia florida com estampas em flor de maracujá, seu cachimbo e um pedaço de fumo de corda. E, a cada meticuloso gesto seu, nós todos (crianças e adultos) vibrávamos como se erguêssemos um troféu, exceto minha mãe, que tinha lá suas objeções quanto àquela visita que sempre aparecia inesperadamente, e resmungava torcendo o nariz:
           – Não tinha uma hora mais inconveniente pra essa mulher chegar, Alenor?
            – É minha mãe, Regina. Pra você, qualquer hora que ela chegue é inconveniente. – e, dirigindo-se ao rumo da porta, Alenor disse, alteando a voz:
            – A bênção, mãe!
            – Deus te dê juízo. – ela disse isto e cantando com o ritmo marcado na batida dos pés, prosseguiu, já se aproximando de mim:
       “Estou chegando lá da Barra
       Trazendo alegria pra vocês
       E vamos fazer a nossa farra.
       Eu disse meu verso e agora é sua vez.”
            Como eu nada disse, ela continuou:
       “Vamos, ó menino cabeçudo!
       É a sua vez de versejar.
       Me diz por que está tão sisudo
       Quando devia de se alegrar!”.
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            – Mas eu estou alegre, vó Cacheado. Feliz assim como só quando você chega. – isto soou como uma ofensa para minha mãe.
            – Não! Não me responda assim. Responda-me em versos, seu poetinha de meia-tigela. – disse Maria Cacheado, já me abraçando e suspendendo-me do solo, uns vinte centímetros do piso da casa. E, depois de beijar-me várias vezes no rosto, ela colocou-me ao seu lado e me indagou:
            – Como é, seu poetinha? Não faz mais versos? – e, de forma provocativa, dirigiu-se para minha mãe:
            – E você, Regina?... Agora está melhor, não é? Vê como as coisas desandam quando eu me demoro vir aqui? Quem me traz uma lamparina? – disse, sustenindo a voz.
            – Eu! – gritamos todos, exceto minha mãe e meu pai.
            – Mamãe! Eu vim só jantar. Estou terminando de consertar o dínamo, pois como pode ver estamos sem energia.
            – Sem energia você, pois eu tenho de sobra. – Maria Cacheado irreverentemente interrompeu o seu filho Alenor.
            – Ah, mamãe! Você sabe que estou falando de energia elétrica. Já vou. Até mais para todos. – disse Alenor já pegando o seu chapéu panamá (que não é panamenho, mas sim equatoriano) que estava no segundo cabide do porta-chapéus e, depois de arrumar-lhe a aba, pondo-o na cabeça, com ares de galanteador.
            Maria Cacheado acendeu a lamparina e a pôs no cen-
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tro da mesa. Automaticamente todos nós tomamos assento à mesa, em volta da lamparina; e ali ficamos até ser servida a janta, onde também permanecemos depois da sobremesa, e por horas seguidas, até que enfim as lâmpadas elétricas se acenderam, fato seguido por um “ah!” coletivo. Sim, pois quando Maria da Glória Dias e Bragança estava em nossa casa não precisávamos de outra luz. Foi quando minha mãe disse, com ar solene:
            – Agora, é hora de conversa de adultos. As crianças vão brincar.
            Seguiu-se outro “ah!” coletivo e prolongado denunciando insatisfação geral, mas fomos assim mesmo feito crianças – como crianças que éramos – mais que divididos entre ficarmos nos deliciando com as histórias de Maria Cacheado e as diversões pueris, pois não demoraria minha mãe anunciar:
            – Tá na hora de tomarem banho para irem dormir.
            Maria da Glória Dias Cacheado e Bragança solenemente apoiou as mãos sobre a mesa e disse:
            – Está vendo, Regina? A luz natural exerce uma força extraordinária sobre tudo e todos. Se desligarmos as lâmpadas elétricas e acendermos um archote ou uma tocha toda a família se reúne em torno do archote ou da tocha, mas quando acendemos as lâmpadas elétricas toda a família é esfacelada. Todos se dispersam. A família não discute seus problemas nem compartilha seus sonhos e esperanças. E me diga você: há vida sem sonhos e esperanças? E que melhor eu te diga: sonho e esperança para mim são sinônimos, pois sonhar significa ter esperança em algo, assim como ter esperança significa sonhar com algo.
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            A cada frase-provocação de Maria Cacheado, minha mãe esfregava o nariz com o dedo indicador direito e inspirava impetuosamente, mais parecendo um fungado.
            Maria Cacheado não se satisfazia, e quis provocar mais e ainda mais:
            – Como é, Regina? Tá usando rapé, agora!?
 
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CAPÍTULO II
            Maria da Glória Dias e Bragança, quando adolescente ainda – dizem que nem moça feita não era, portanto menina virgem – o coronel Manzoel Gonçalo desejou aquela brônzea carne de cabelo cacheado (o que a fez merecer o apelido – quase sobrenome). Mas aquela novilhota não era do curral do coronel Manzoel Gonçalo Alves, homem acostumado a dispor de gado e gente como todo coronel; a vender os votos dos seus meeiros e deflorar suas mulheres e filhas com a mesma naturalidade com que vendia seu gado. Não! Maria Cacheado era filha de um fazendeiro que nunca comprou patente; homem que valorizava as letras, os livros e a caneta, e não a carabina e o punhal. E assim era o professor Justiniano Justus Dias, formador de cidadãos nas entranhas dos sertões onde o Estado se fazia representar no despotismo e na tirania de um coronelismo então ascendente. Homem que expressava sua valentia, sua moral e sua honradez com atitudes e palavras – faladas a viva voz ou escritas como registro documental – como o fez no dia em que soube que o coronel Manzoel Gonçalo lhe traíra a confiança, já que sua pequena cacheada Maria da Glória Dias fora abusada, violentada, estuprada, seviciada na cama da própria filha mais velha do coronel, dois anos mais velha do que sua inocente e indefensa vítima.
            Frauzina, de 14 para 15 anos de idade, filha primogênita do coronel Manzoel, a rogos do seu pai, foi à Bolandeira num domingo, mais exatamente no dia 13 de janeiro de 1929, início das novenas do padroeiro do lugar, que
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tem seu dia festivo em 20 de janeiro do calendário católico (ou gregoriano), dia de feira livre, e pediu ao professor Justiniano que deixasse sua pequena Maria Cacheado passar uns dias com ela, na casa do seu – até então – amigo coronel Manzoel Gonçalo. Depois de muitas consultas e recomendações o professor Justiniano assentou, não sem antes consultar sua aristocrática esposa e companheira Dona Floresbela de Albuquerque Lima e Bragança Dias, com quem se casara quando fora estudar na capital do império.
            Necessárias providências tomadas e entendidos os dois – professor Justiniano e Dona Floresbela – ambos assentaram que a pequena Maria da Glória passaria aquela semana em casa do coronel Manzoel, longe de pensarem os pais da pequena Maria da Glória que o coronel era um ideia-fixa da primae noctis.
            Por sugestão-ordem do coronel Manzoel Gonçalo, sua filha Frauzina foi dormir no quarto de sua mãe, para que assim Maria Cacheado dormisse na cama de Frauzina, de modo que assim sendo o coronel poria em prática o seu inominável plano, como de fato o fez, mesmo tendo encontrado na pequena Maria Cacheado – apesar de sua aparente fragilidade física – heroica resistência até o desfalecimento.
            O professor Justiniano Justus Dias sempre teve suas ressalvas quanto à amizade do coronel Manzoel, porém sendo o professor Justiniano um homem de bons costumes e de boa educação nunca deixou de prestar seus auxílios e gentilezas para ninguém, mesmo tendo que fazer isto nos parâmetros do “confiar desconfiando” e para a-
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queles que viam nas amizades meras oportunidades de tirarem vantagens espúrias e escusas; e foi por isto mesmo que o professor foi traído em sua boa-fé. Ele tinha exemplos, mas o seu excesso de confiança nos outros não lhe deixou ver: Mundica, Iraci, Beatriz, Mocinha de João da Paz, Madalena, Das Dores de Dona Lica, Monquinha, Marizinha... e quantas outras vítimas do coronel Manzoel que inelutável seria tentar enumerá-las aqui; mas o professor Justiniano ignorou todos esses antecedentes do coronel em sua plenitude de senhor da vida e da honra dos outros... E por isto mesmo pagou caro – caríssimo!
            A notícia correu aos cochichos e bochichos, gerando uma expectativa nunca dantes vista, pois se tratava de dois extremos em seus extremados gestos e atitudes: o professor tomaria satisfações com certeza, já que era do seu caráter e gênio dirimir dúvidas e passar a limpo as coisas sujas; pois se tratava, não apenas da honra de sua pequena, indefensa e pura Maria Cacheado, mas de sua própria honra, dignidade e reputação. E ademais, o professor era um homem exemplar, em quem muitos se espelhavam, portanto tinha – acima de tudo – responsabilidades sociais.
            E que armas o professor usaria? – era o que todos se indagavam.
            Já o coronel, todos sabiam quais as suas armas: a carabina calibre 44, o parabellum e o punhal – armas que lhe serviam até de travesseiro, já que a sua própria cama fora adaptada para isto, pelo marceneiro João Furtado.
            Logo de início o professor Justiniano escreveu uma carta aberta aos filhos de Lastro relatando os ignominiosos
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fatos e comungando com todos – que de uma forma ou de outra haviam sido vítimas das tiranias do coronel Manzoel a sua indignação. Deixou claro também que iria ater-se com o coronel, mas como o homem civilizado que era, e não à altura de um “covarde, crápula e traidor”.
            E mais: o professor Justiniano acolheu sua filha, apoiando-a com toda compreensão; consolando-a; conversando o que ele entendia ser o necessário para o conforto de sua filha cobarde e brutalmente ferida. Até a mandou passar uns dias na casa de uns parentes que moravam no litoral, para ver se a sua pequena Maria Cacheado superava o trauma, e como era período de férias escolares, recomendou-lhe que comprasse alguns livros para ler, e até fez uma lista de sugestões de autores e títulos com a ajuda de Dona Floresbela. Mas deixou claro para todos: se daquela ignominiosa cobardia do coronel Manzoel fosse gerado um ser, ele mesmo o levaria à porta do coronel para que ele (o coronel) o assumisse; ele o criasse e fosse homem para assumir o próprio filho (por bem ou por mal!), coisa que o coronel nunca fez e jamais cogitou em fazer, ou alguém (de muitas de suas vítimas) jamais se atreveu sequer demonstrar a mais subtil insatisfação diante das taras e tiranias de um coronel de patente comprada; proprietário de muitas terras e muito gado (ele incluía como parte do seu curral os moradores de suas terras), que custaram algumas vidas e muitas balas, pois o coronel Manzoel nunca trabalhou e tampouco foi herdeiro de qualquer bem material, mas fez vultosa fortuna e a manteve com o pátio e o alpendre de sua casa abarrotados de capangas bem armados e prontos para saquear, extorquir e matar – principalmen
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te os fazendeiros seus vizinhos que lhe sonegassem “contribuições” ou contrariassem seus desígnios. Desígnios de um homem que desconhecia outros meios de resolver divergências senão as armas. Desígnios de um coronel de patente comprada que outros meios não conhecia para o enriquecimento senão os da violência; da extorsão; do saque e dos serviços do crime onde era ele o juiz dos que pagavam mais e sentenciava com sua assinatura e de seus capangas feitas com sangue a perfurações de carabinas, parabelluns (parabella) e punhais traiçoeiros e assassinos.
            Frequentemente o coronel Manzoel era convidado a ser juiz (não de martelo e caneta em punho, mas de carabina na mão, punhal na cinta e cartucheiras cruzadas no peito e “assessorado” por suas dezenas e dezenas de capangas igualmente armados) a dirimir questões de limites de latifúndios, quando grandes fazendeiros queriam ampliar suas terras alargando suas cercas, invadindo terras de seus vizinhos.
            Gerado o litígio, o coronel latifundiarista de ganâncias sem limites se valia dos préstimos do coronel Manzoel que, infalivelmente, decidia a questão sempre a favor do mais forte – aquele que lhe pagasse mais. E tanto que sua fama ultrapassou fronteiras de três províncias, onde ainda persistem referências a “marco do coronel Manzoel Gonçalo”. Esses marcos nada mais eram do que seixos alongados enterrados pela metade na terra invadida, cujo perdedor era obrigado a (ele próprio!) enterrar no que até então eram terras suas (como se ele mesmo lhe cravasse um punhal no próprio peito) como forma de punição e humilhação impostas pelo coronel Manzoel.
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CAPÍTULO III
            Um mês e meio se passaram – já era meado de março de 1929 – e o ano letivo estava previsto para iniciar-se na segunda-feira, dia 18 daquele mês – quando o professor Justiniano Justos Dias foi buscar a sua filha logo na sexta-feira anterior, portanto no dia quinze de março.
            Lá, encontrou uma adolescente-quase-criança brincando de bonecas com as primas, e aquilo foi como uma punhalada em seu peito – já ferido – desferida traiçoeiramente pelo coronel Manzoel, ainda mesmo que distante naquele momento a mais de quinhentos quilômetros! E o professor Justiniano não era homem choramingueiro; mas diante daquela cena ele sentiu “um nó na garganta”; um aperto no peito; um grito de revolta e indignação sufocando-o e os olhos embaciados. Era a dignidade ferida; a honra agredida; a confiança traída... e que pai não sentiria o mesmo?
            A pequena Maria Cacheado pressentiu o pai e, largando tudo, correu para os seus braços feito criança – como criança que era!
            Seu pai a suspendeu do solo (era tão pequena a sua Maria! Mas era tão grande a sua dor! dor de pai ferido no que lhe havia de mais amado e sensível! – em proporções inversas até se pareciam), em silêncio a beijou e a abraçou mais e ainda mais forte e sua pequenina, franzina, delicada Maria da Glória dos cabelos cacheados o beijou no rosto de barba por fazer e disse em tom profundo:
            – Oh, meu pai!... Eu estava com saudade...
            O professor se sentiu frágil muito frágil; muito pe-
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queno; muito indigno da vida – pois para que servia sua vida se não para proteger a sua indefensa e frágil Maria?! O professor tentou dominar suas emoções para não reavivar as chagas da filha e desconversou:
            – Tua mãe terminou de bordar um vestido para ti, Maria. Ela queria que eu o trouxesse, mas sugeri que, como tu irás voltar comigo logo, ela deixasse a surpresa para quando tu chegares em casa.
            Fez uma longa pausa e suspirou:
            – Parece muito contigo!... – e completou:
            – Ah! Estraguei a surpresa de tua mãe para ti.
            – Por que se parece comigo, meu pai?
            – Não sei... É que quando tua mãe estava bordando-o, nós o estendíamos sobre a tua cama e ficávamos olhando... olhando em silêncio, os dois, e sempre quebrávamos aquele silêncio nos abraçando e concluindo que parecia muito contigo. Por isto...
            – Ah! Já sei o que era, meu pai: vocês também sentiram saudades, não foi? Eu quero ir para casa. – Maria Cacheado abraçou e beijou seu pai novamente e interrogou:
            – E minha mãe?... por que não veio?
            – Vim somente te buscar, Maria. Segunda-feira recomeçam tuas aulas, e não poderíamos sair os dois. Você sabe como é...
            – Então eu quero ir agora! Vamos?!
            – ... mas… Minha Maria... o pai acaba de chegar! Precisamos agradecer aos tios e primos e primas! Por sinal, leste alguns livros? Quais? Conta-me.
            Fomos muitas vezes à biblioteca municipal... Quan-
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do chegarmos em casa eu conto para você e minha mãe algumas histórias que li.
            Naquele instante, o professor Justus Dias sentiu uma mão pesada sobre seu ombro esquerdo, e quando ia se virando para ver quem era, sua pequena Maria exclamou:
            – Tio Dionísius!
            Imediatamente o professor se virou:
            – Oh, Dionísius, irmão querido! Quanto tempo que não nos vemos! Os vieses da vida fizeram-me cair no lugar comum do “unidos pela tragédia”! Transmito-te as felicitações da Floresbela, extensivas a todos, e adianto-te os meus mais profundos agradecimentos por tua mão estendida em uma hora tão atroz e cruel para nossa família.
            – Justus...! Não te esperava em nossa casa por tais circunstâncias, mas alegra-nos em te ver. – Dionísius disse isto abraçando demoradamente seu irmão.
            As filhas e a esposa se juntaram ao pequeno grupo e um misto de alegria limitada por tristeza e dor pairou no ar, provocando um longo abraço coletivo e silencioso. Aquele silêncio que por si só diz tudo.
            Dionísius pediu para que as filhas fossem brincar na outra sala com a prima Maria. Queria Dionísius deixar o irmão à vontade para que ele desabafasse algumas dores e mágoas, e ao mesmo tempo proteger a sobrinha, não deixando que ela ouvisse e visse as dores do pai dilacerado. De um pai vil e ignominiosamente ferido.
            Dona Virtudes, esposa do Dionísius, quebrou o silêncio, convidando o cunhado:
            – Vamos acabar de chegar, professor. Talvez queira tomar um banho, pois imagino o quanto essas estradas es-
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tão lamacentas nesta época, e ademais um banho frio ajuda a descansar o corpo. – talvez ela quisesse dizer “esfriar a cabeça”.
            As primas obedeceram ao pai e foram para a outra sala, mas não sem antes saírem catando os brinquedos dispersos; porém, Maria da Glória não quis sequer largar a mão do seu pai, o que levou Dionísius a olhar para sua esposa – Dona Virtudes – meneando a cabeça de modo a sugerir que ela tomasse a iniciativa de induzir a pequena Maria a fazer companhia às primas, porém Maria relutou até que seu pai interveio:
            – Maria, minha filha! Obedeça a tua tia, por favor.
            O professor aceitou a sugestão do banho e enquanto isto seu irmão e sua cunhada consideraram, sendo que Dona Virtudes iniciou:
            – Pobre do professor Justus! Um homem tão íntegro e irrepreensível como ele não merecia passar pelo que está passando, não!
            – Oh, Virtudes! Claro que ninguém merece uma tragédia dessa. Mas eu prefiro crer que os grandes golpes somente são desferidos contra os gigantes. Aos pequenos, um piparote basta. É, de fato, minha querida esposa, um elevadíssimo preço a ser pago, mas creio que somente o Justiniano tem estruturas para frear as tiranias desses coronéis. A seu modo; do seu jeito; a seu tempo... eu tenho certeza que Justus tomará todas as providências cabíveis e necessárias... Não para recuperar o que foi cobardemente arrebatado de minha sobrinha, pois é simplesmente impossível, mas mais grandioso ainda: para que se dê um basta a essas tiranias e que outras vítimas não se repitam. Basta! E que
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seja Maria da Glória a glória e redenção de tantas outras vítimas desse coronelzinho desqualificado. E mais: que ela seja a última vítima do coronelismo. Fique certa de que com minha sobrinha será diferente. Não que eu creia em martírios, mas o sacrifício que for necessário para que o coronel não continue impune, nós faremos. Já conversei com todos os meus outros sete irmãos. Estamos todos unidos e dispostos para o que der e vier.
            Neste ponto da conversa, o professor saiu do banheiro e seu irmão observou:
            – Justus... você não se barbeou! Se for porque não trouxe a sua navalha, pode usar a minha, meu irmão. Vá se afeiçoar. Não temos pressa.
            O professor olhou para a cunhada e o irmão em silêncio, meio cabisbaixo, parecendo ponderar se faria a barba ou não e em silêncio voltou para o banheiro, desta vez para barbear-se.
            Dona Virtudes – a meia voz – disse, se aproximando do marido:
            – Dionísius! Você ainda não me falara sobre isto...
            – “Isto” o quê?
            – Que você e seus irmãos já discutiram sobre o caso da Maria da Glória.
            – Virtudes... não há mais “caso de Maria da Glória”, não. O caso já repercute na capital do país. Justiniano deixou grandes amizades quando estudou lá, ainda capital do império em seus últimos anos, e ele era ativista republicano. E o Justus já telegrafou até para os seus amigos do jornal A GAZETA, e o fato já foi noticiado; tendo grande repercussão na capital do país, levando a outros jor-
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nais das províncias reproduzirem a matéria. O caso já repercute em todo o país, Virtudes.
            O professor reapareceu na sala, mas desta vez com a barba feita e parecendo menos introspectivo e menos tenso. Talvez o fazer a barba o tenha descontraído, fato que logo foi percebido e comentado pelo irmão e pela cunhada:
            – Você remoçou uns vinte anos, Justus! – disse Dionísius, exagerando um pouco, talvez.
            – Barba sempre dá um ar de sisudez. Fica bem melhor assim... Certamente está com fome... Aceita a janta agora, professor? – perguntou Dona Virtudes.
            – Sabem? Ultimamente eu ando meio anorexo... Quase não sinto fome.
            – Compreendo... – disse Dona Virtudes.
            Dionísius e a esposa se entreolharam discretamente, como se dissessem “nós sabemos por que”. Neste ponto – como se a dissimular – Dionísius aproveitou para pedir:
            – Virtudes! Tenha a gentileza de nos servir o jantar, por favor. Justus jamais nos dirá que está com fome.
            Quando Dona Virtudes saiu para a cozinha, Dionísius se aproximou do irmão:
            – Compreendo, meu irmão, que sua fome sempre foi de justiça, principalmente social. Pelo fato de você ser o mais velho dos nove irmãos...
            – O mais idoso ou o menos moço. Fica melhor assim... – o professor Justiniano, com um suave riso esboçado no rosto, interrompeu o irmão, que prosseguiu:
            – Justus! Você é mais que meu irmão!... Dispensa-me de repetirfalar de minha admiração por ti... Mas como eu
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ia dizendo: pelo fato de você ser o menos moço dos nove irmãos e eu ser o penúltimo e ter te conhecido somente quando você já era homem feito e estudava na capital da província, indo logo depois para a então capital do império, vindo somente doutorado e casado com a Dona Floresbela – diga-se de passagem: uma pessoa bem educada e de caráter exemplar, fazendo-a assim uma esposa à sua altura – então, todos nós teus irmãos e até mesmo nosso pai (que me perdoe a ausência: sistemático como só ele mesmo) sempre vimos em ti um homem irrepreensível. Tua educação e tua honestidade, meu irmão, abrem portas!
            – Dionísius! A janta está posta. Chama o professor Justiniano. – anunciou Dona Virtudes, indo a seguir em direção da outra sala, onde brincavam as crianças:
            – Venham jantar, crianças.
            Maria da Glória aproveitou o ensejo para correr até o pai e dar-lhe um forte abraço e fazer-lhe algumas perguntas pueris:
            – Ó, meu pai!...Vamos para casa?
            O professor a acariciou e, como se ignorasse o que a filha falava, disse apenas:
            – Vamos jantar, minha filha.
            Maria da Glória seguiu o pai, levada pela mão, mas voltou a lembrar de casa:
            – E o Mimi sentiu minha falta? – Mimi era o seu gato de estimação.
            – Todos nós, Maria, sentimos a tua falta. E nem me perguntes quem mais sentiu e quem sentiu mais, pois seria impossível te dizer. – se adiantou o professor Justiniano Justus Dias, antes que a filha protelasse a janta de todos.
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            – Justus! Sem formalidades. É como você nos ensinou: a casa é nossa, pois o que é de um é de todos. Sirva-se. – disse Dionísius, tomando assento à mesa.
            Sem muito cerimonial, porém como se ali ninguém se sentisse à vontade, todos comeram sem mais palavras que senão alguns “passa-me isso... passa-me aquilo, por favor...”, e não mais se falaram durante a refeição, senão quando Dona Virtudes sugeriu:
            – Para sobremesa, eu fiz uma limonada com gelo, mas temos um pudim de leite...
            – Por favor, Virtudes! Pode mandar servir os dois. – disse Dionísius, já se dirigindo para o irmão:
            – Você comeu tão pouco, meu irmão! Aliás, você e minha sobrinha...
            – Dizer que tudo estava delicioso é mesmice, pois que minha cunhada tem além do próprio nome, muitas virtudes, inclusive a da culinária; mas estou saciado. Obrigado, Dionísius!
            – Maria, minha querida sobrinha! Você não comeu quase nada!
            Observou Dionísius, já se dirigindo para Maria Cacheado. E isto foi como uma deixa para que Maria da Glória voltasse a insistir:
            – Eu quero ir para minha casa.
            – Amanhã, minha filha... Amanhã cedo viajaremos.
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CAPÍTULO IV
            Com um dia e meio de atraso o professor Justiniano chegou à vila Barra, trazendo consigo a sua filha Maria Cacheado (talvez já não mais tão da glória, pois teria que enfrentar a partir daí preconceitos e discriminações). E possivelmente fossem os olhares maledicentes e de viés o que mais lhe torturasse. Era como se ela fosse a culpada por sua própria tragédia. Como se ela fosse a causadora de sua própria desgraça. Como se ela mesma fosse a personificação do mal e das tentações, cujas tentações por si sós isentariam o coronel Manzoel de qualquer dolo – ou mais: o transformariam em vítima.
            Maria Cacheado foi às aulas somente a partir do terceiro dia que havia começado o ano letivo, e mesmo assim acompanhada dos pais, pois os mesmos decidiram que deveriam acompanhar a filha até a escola e, aí, conversarem com a diretora madre superiora do Colégio Nossa Senhora de Lourdes (Colégio das Dorotheias) na cidade de Cajaraneiras, para que deste modo fizessem algumas recomendações sobre a filha.
            Lerdo engano do professor Justus e de sua cônjuge, Dona Floresbela! Atroz ilusão!
            Sequer os três foram recebidos pela madre superiora, que dias antes estivera com o bispo D. Cartaxo Rolim tratando do assunto, de quem recebera ordens expressas para não mais aceitar naquele educandário Maria da Glória Dias e Bragança:
            – ... Nem mesmo como penitente, santo bispo Dom Cartaxo? – quis a madre superiora ter certeza do que ouvira
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do bispo em relação à Maria Cacheado.
            – E borre de todos os livros de registros o nome dessa... possuída pelo Demo. E cuide que as filhas de Maria não comentem nada a respeito, para que não constranjam a nossa boa e santa aluna filha do coronel Manzoel... Como é mesmo o nome dela? – completou o bispo depois de uma breve pausa.
            – Maria da Glória, santo bispo. – respondeu a freira, num misto de temente e íntima do seu superior.
            – Não! Não! – disse o bispo, persignando-se; e acrescentou:
            – Não me pronuncie esse nome aqui. Esqueceste que pisas um lugar santo? Eu te perguntei qual o nome da filha do coronel Manzoel... – o bispo foi falando e se aproximando da madre superiora, que o fitava nos olhos, como hipnotizada.
            – Frauzina, meu santo bispo... Frauzina...
            – Vosso dever, minha angelical evangelizadora! Minha quase santa e pura filha... é cuidar das boas ovelhas. As perdidas já se perderam. Não perca, pois, tempo com elas.
            Enquanto o bispo dizia “Minha quase santa e pura filha...” pousou sua mão fina e delicada no ombro de sua subordinada, de modo que somente o punho ficou sobre o ombro e os seus dedos compridos roçavam subtilmente o hábito da freira, à altura do seio direito. A freira se encolheu vagarosamente enquanto murmurava (balbuciava, talvez) um “ui!” de satisfação.
            Dom Cartaxo Rolim sentiu-se mais empolgado e eloquente na admoestação da prioresa:
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            – Filha! É da vontade de Deus que tu venhas aqui mais vezes.
            – Sim, meu santo bispo. Virei sim, Dom Cartaxo. Juro que virei. Ui! – a madre superiora transpirava e vez por outra interrompia a Dom Cartaxo Rolim com o seu “ui!” misto de gozo e desfaçatez a cada vez que os dedos longos e delgados e esbranquiçados do bispo roçavam no hábito sobre o seu seio.
            Rito somente interrompido por uma beata que sequer foi percebida pelos dois, até que ela se curvou em reverência e arrebatou a mão de Dom Cartaxo Rolim e a beijou, pedindo ao bispo a sua bênção, ao que o bispo respondeu, enquanto limpava a mão suja de saliva na batina:
            – Que a virgem e santa mãe Maria te cubra e proteja com o seu sagrado manto, filha.
            Sim, a madre superiora tinha ordens expressas do bispo Dom Cartaxo Rolim para nem mesmo ter contato direto com aquela “encarnação do Demo”! E assim o fez: mandou que avisassem ao professor Justus de que sua filha não mais seria aceita naquele “educandário”; e aproveitou os três dias de atraso de Maria Cacheado como desculpa (talvez uma “providência de Deus” para que a desculpa tivesse a conotação de um libelo de culpa para a vítima).
            Restou ao professor Justiniano Justus Dias, à sua compreensiva companheira Dona Floresbela de Albuquerque Lima e Bragança Dias e à filha dos dois Maria da Glória Dias e Bragança (Maria Cacheado), a indignação diante da injustiça; o desconsolo diante da tragédia; o inconformismo diante dos destratos; a revolta diante da impotên-
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cia... Restou também ao professor Justiniano voltar para casa levando consigo a desonra anunciada, e ao seu lado levada pela mão a filha que os deuses escolheram para sofrer e se divertirem com as tragédias dela.
            Já em casa, na Barra, nas suas terras tão inúteis como a palavra de muitos homens, o professor Justiniano e Dona Floresbela se entreolharam com lágrimas nos olhos, mas tentando os dois disfarçar para que a filha não os visse em tais condições. Foi quando Dona Floresbela sugeriu ao marido que fosse beber um refresco enquanto ela experimentaria em Maria Cacheado o vestido que lhe bordara, mas que o pai “estragou a surpresa”.
            Em sua inocência; na plenitude de sua pureza; entregue à candura, Maria da Glória pulou eufórica com o presente como se desconhecesse a tragédia dos pais e a sua própria desgraça. Abraçou a mãe com o seu abraço frágil e de pura inocência. E beijando sua mãe quase descontroladamente, sussurrou com doçura:
            – Obrigada, minha boa mãe. Agora eu sei que vocês também sentiram saudades...
            Maria Cacheado, na sua inocência e pureza, não tinha a menor noção da sua desgraça. Da sua condenação a ser discriminada para todo o resto de sua vida. E creio que por toda a sua existência ela fez questão de ignorar todos os males da vida e dos homens. As vezes que a vi parecendo amarga ou amargurada, ainda assim suas palavras, seus atos e gestos eram mais doces do que os mais doces favos de mel!
            Nem mesmo as tiranias de um coronel com todos os preconceitos e discriminações, que perseguiram Maria da
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Glória por todo o seu viver, tiraram dela a sua bondade; a sua pureza; a sua inocência de criança que jamais deixou de ser.
            – Sim, minha Maria! Claro que todos nós sentimos saudades de ti. Já viste como o teu Mimi emagreceu? Pois o veja tu mesma. Se ele comeu por todos esses dias em que estavas na casa do teu tio Dionísius, eu não vi... Mas claro que deve ter comido, pois de outro modo não sobreviveria. – disse Dona Floresbela amavelmente e passando as mãos nos cabelos cacheados de Maria. Maria da Glória!
            Maria da Glória pegou a mão de sua genitora com suas duas mãozinhas delicadas e, fitando em seus olhos:
            – Então, minha mãe, vamos comigo procurar o Mimi? Será que ele irá comer comigo?
            – Maria, minha filha! Mas assim...? Procuraremos o Mimi depois. Primeiro, vamos procurar teu pai, para que ele te veja com o vestido que... praticamente nós dois fizemos juntos para ti... Incontáveis foram as vezes que o contemplamos como se olhássemos a ti mesma... Nem sabes das saudades que sentimos de ti, minha pequena Maria! Nem imaginas as... as...
            – Mas por que choras, minha boa mãe?! Eu já estou aqui.
            – Talvez por isto mesmo, minha pequena cacheada... Talvez de alegria de que estejas aqui, entre nós. – disfarçou Dona Floresbela e prosseguiu:
            – Melhor irmos ao encontro do teu pai, para que ele te veja vestida assim... Certamente ele irá se alegrar, pois o Justus anda tão sorumbático por estes dias... – sem querer, Dona Floresbela deixou escapar esta confissão.
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            – Mas por que o meu pai anda sorumbático por estes dias, minha mãe? Eu pensei que ele apenas sofria de saudades...
            – É... talvez... Pode ser isso mesmo, Maria.
            – E você, minha mãe?
            – Eu, Maria da Glória... estou feliz por estares novamente conosco.
            – Muito feliz, minha mãe? Então, meu pai já deve estar muito feliz também, e não mais sorumbático... Não é, minha mãezinha querida?
            – Pode ser, minha pequena Maria. Pode ser...
            – Vamos procurá-lo, então? – disse Maria da Glória, quase puxando a sua mãe pela mão.
            Saíram as duas – Maria Cacheado à frente, sem largar a mão quase-aristocrática de sua mãe – e foram ao encontro do professor Justiniano Justus Dias, a quem encontraram sentado à mesa da cozinha com uma jarra de porcelana chinesa, toda branca com alguns detalhes em azul turquesa, contendo limonada, e uma caneca de porcelana do mesmo conjunto da jarra entre suas duas mãos, como se (num esforço estrênuo) não quisesse soltá-la, com os olhos fixos em algo invisível; em algo que, fisicamente, não estava ali; em algo – talvez – apenas do seu imaginário. E como anestesiado, mal percebeu a aproximação das duas – companheira e filha – e continuou em sua quase-contemplação, até que Dona Floresbela exclamou e interrogou:
            – Justus! Há quanto tempo você está sentado, aí?
            O professor apenas se arrumou na cadeira lentamente e, lentamente, sem erguer a cabeça, apenas olhou para
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a companheira e para a filha.
            – Mas Justus! O refresco está intocado! Você não bebeu...!
            Olhar sempre fixo em seu ponto invisível – ou visível somente para ele, pois para ver não precisamos dos olhos – o professor Justus sussurrou o nome pelo qual somente ele chamava a sua esposa:
            – Flores...!
            – Estou aqui, Justus! De que precisas? Estou aqui... Onde sempre estive e sempre estarei: ao teu lado, sempre!
            – Onde está a nossa pequena Maria?
            – Bem aqui, ao teu lado; entre nós dois.
            Houve uns quase-eternos dois minutos de silêncio. Infindáveis dois minutos!
            Lentamente o professor Justus pôs a caneca sobre a mesa e, ainda segurando a caneca com uma das mãos, foi se virando vagarosamente para o lado em que se encontrava a sua pequena Maria e, com a mão que largara da caneca, puxou sua filha para si, apertando-a contra si, como se temesse largá-la. Dona Floresbela acariciou os cabelos do marido e se aproximou mais, premendo a filha entre os dois, como se assim a filha ficasse protegida até mesmo dos males do passado. O professor apertou ainda mais a filha contra si, e mais e ainda mais! Inclinou a cabeça – que lhe parecia demasiadamente pesada – e beijou os cabelos cacheados de sua inocente filha, num beijo longo; demorado; sem pressa; profundo... E tudo era silêncio! Ouvia-se o respirar acelerado do professor, como se lhe faltasse o próprio oxigênio. Como se a própria vida se lhe esvaísse. Como se o cheiro da filha de sua pequenina fi-
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lha tão brutalmente ferida – lhe fosse a única razão para respirar. Para continuar vivendo – ou apenas existindo, pois, como ele mesmo dizia, era “um homem morto em vida”! “Aquele a quem a morte errou de endereço, mas a tragédia foi infalível”.
            Sem queixumes; sem contagiar aos demais com sua dor íntima; sem admitir que o seu rosto fosse o espelho do seu sofrimento dilacerante... Estava ali um homem à busca de uma réstia de luz que o guiasse pela melhor senda. E ele tinha consciência de que “tragédia não se resolve com tragédia, e que tampouco se contrapõe uma comédia a uma tragédia”.
            O professor tomou a filha nos braços e a olhou fixa e profundamente, beijando-a na face, e em seguida repôs a filha no lugar onde ela estava:
            – Fica aqui, Maria da Glória! Fica aqui... entre mim e a tua boa mãe. É bem melhor que tu fiques entre nós dois, pois assim tu és nosso maior traço de união. Entre nós dois tu não nos separas, mas sim nos une ainda mais. Precisamos desta união, ela nos fortalece ainda mais e mais.
            Depois disto, o silêncio voltou a imperar. Mas logo o professor esboçou um sorriso. E ensaiou um gracejo. E se atreveu a violentar aquele silêncio! E se animou a dizer para a filha e para sua companheira que as amava. E as convidou a irem voltear pelo quintal. Ver a natureza. Sentir a brisa do aracati acariciar-lhes as faces. Ouvir a sinfonia do passaredo. Degustar o fruto agridoce do tamarineiro. E por que não aproveitar para regarem, juntos, as roseiras que pareciam esquecidas?! Murchas... desfloradas... de
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flores despetaladas... de folhas já retorcidas... de galhos contorcidos... como solidários na mesma dor. Como se ali, todos comungassem do mesmo sofrimento e da mesma tragédia!
            Sob a sombra dos jasmins, o Mimi da Maria da Glória indolentemente dormia; o que inspirou ao professor filosofar:
            – Gato que dorme não mia.
            E Dona Floresbela quis incrementar aquela iniciativa de diálogo do professor, tão rara nos últimos dias e única nas últimas horas:
            – Também não come, não é, minha querida Maria?
            – Mas se não comer, ele morre...! – ponderou Maria Cacheado, logo interrompida pelo pai:
            – Minha Cacheada...! Faz um favor para o pai? Busca o regador para nós. Vamos juntos – você, tua mãe e eu – reavivar estas rosas. Reanimar estas roseiras. Revivificar este roseiral. Revitalizar o aroma de nossas vidas; o colorido dos nossos sonhos; o esplendor de nossas esperanças; a magia do nosso viver... Vamos, minha Maria! Vamos, minha querida Flores: junta-te às demais flores do teu jardim e reacende a elas com toda a tua energia de viver e, todos nós, juntos sempre, ajudemos aos outros homens a acenderem o Sol! Pois que um cavaleiro de sombras não poderá – jamais! – esmagar um roseiral. Vamos, minha Maria, dar vida outra vez a estas rosas que, talvez, tenham murchado de saudades de ti. Ou quem sabe... É... ou quem sabe, algum cavaleiro de sombras e de terrores tenha ousado pisoteá-las feito um cavalo selvagem à sorrelfa na noite dos horrores buscando no despetalar das rosas
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o seu prazer de cobarde e tirano. Eia, minha querida Floresbela! Eia! Nossa Maria já nos trouxe o regador... vamos, agora, juntos, regar as nossas roseiras; reacender o nosso Sol. Fazermos – juntos – brotar a sementeira da própria vida. Da nossa felicidade que andou retorcida como esses pobres bem-me-queres e margaridas que não foram regados por estes últimos dias. Vem, minha pequenina Maria! Vem, minha querida Flores! Todas belas! Vamos – juntos – regar o canteiro do amor e da felicidade! E anunciemos aos outros homens e mulheres; e crianças e adolescentes e jovens e anciões; e vítimas e algozes; e loucos e gênios; e inebriados de vinho e de amores; e mendigos de pão e de alegria; e deserdados de terra e de justiça... e – enfim – anunciemos a todos os seres nos quais lateja e pulsa um arfar de vida que a felicidade é um bem comum e inalienável! Façamos pulular em todos os seres os germens da esperança.
            Maria Cacheado, segurando com suas duas mãozinhas o regador à altura do ventre, estatuamente contemplava o pai, como se a querer decifrar aquelas palavras; enquanto Dona Floresbela segurava firme no antebraço do marido, ao tempo que duas lágrimas rolavam pelo seu rosto róseo.
            O Professor Justiniano Justus Dias estendeu a mão, pedindo o regador à filha e dirigindo-se para as duas, as convidou:
            – Vamos! Quem tem sede não espera...
            As duas – mulher e filha – responderam uníssonas:
            – Vamos!
            E, juntos, foram regar as roseiras, da vida também.
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CAPÍTULO V
            Passaram-se mais de três meses desde que Maria da Glória conhecera o lado mais vil e ignominioso do ser humano. O lado mais infame, cobarde, repugnante e degradante de um ser.
            Durante esses noventa e oito dias decorridos da tragédia que inundou a vida do professor Justus e de toda a sua família, o coronel Manzoel não mais foi visto pela região, e tão menos pelas bandas da fazenda Misericórdia. Dizem que ele estava homiziado na província vizinha, do Rio Grande, em terras de fazendeiros a quem ele mesmo ajudara grilar e manter tais terras sub-repticiamente, com o seu bando de capangas sempre bem armados de carabina 44, punhal, parabellum, muita munição e disposição para matar quem quer que lhe contrariasse os interesses; e proteger seus asseclas em troca de benesses pessoais.
            E foi assim que o coronel Manzoel Gonçalo Alves evitou um encontro seu com o professor Justiniano Justus Dias, desde o meado de janeiro de 1929. Mas ele não haveria de se demorar mais foragido nas terras que antes ajudara seus protegidos – agora, seus protetores – a grilar e saquear (muitas das vezes até mesmo matando seus antigos proprietários); “serviços” pelos quais o coronel Manzoel sempre recebia boa paga, além de manter seus favorecidos sob permanente extorsão – do que dizem ter ele iniciado sua vultosa riqueza material, completada depois com a aquisição espúria da fazenda Lastro.
            Por fim, boatos correram dando conta de que um grupo de aproximadamente uma dezena de homens armados
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fora visto na divisa das províncias do Rio Grande com a Pindaíba, indo em direção à Casa de Varanda, sede da fazenda Misericórdia, cuja casa (estrategicamente) fora construída em cima da divisa das duas províncias, pois se chegassem volantes (assim eram chamados os grupos de policiais que as províncias incumbiam de perseguirem os cangaceiros e outros grupos criminosos) do Rio Grande, os foragidos e procurados naquela província passavam para o lado da casa construído na província contígua, e vice-versa.
            O caso da Maria da Glória até que andava meio que “em banho-maria”, mas nunca esquecido. Vez por outra alguém trazia um jornal de uma capital de província e até mesmo da capital da República, cobrando providências das autoridades pindaibanas. E ademais, os lastrenses em particular, todo povo da região alimentava um quase-incontido anseio de justiça a ser feita pelo professor Justiniano Justus Dias. E como esquecer aquela cobardia feita com uma indefensa criança?! Pois Maria da Glória não era mais do que uma inocente e pura e boa e educada e cândida menina de um pouco mais de doze anos de idade! Que a todos encantava com sua meiguice e pureza. E como não ser solidário – e até mesmo sentir a própria dor de um pai tão profundamente ferido? E mais ainda quando esse pai tão brutalmente ferido era um homem do quilate, da grandeza, do caráter, da honestidade e do companheirismo de um professor Justiniano!
            Uma solidariedade silenciosa – porém, não menos solidária. Uma ansiedade por justiça velada – porém, não menos justa e solidária! E era o que todos queriam: justiça!
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            Dois dias depois dos boatos de que o grupo de capangas do coronel Manzoel fora visto rumo à fazenda Misericórdia, o professor Justiniano Justus Dias atravessava a vila Lastro a meio galope em seu cavalo alazão, rumo Serrote do Cruzeiro, atalho entre a vila e a Casa de Varanda – sede da fazenda Misericórdia. O trotear do cavalo, talvez, tenha rompido o silêncio daquele misterioso lugar, onde quase tudo era feito em silêncio, e assim a maioria da população saiu para os seus terreiros e raras calçadas, movidos por curiosidade tamanha que mulheres saíram de camisolas; outras, de colher-de-pau em mãos como empunhando um tacape; outras, com filhos a tiracolo; homens com foices, martelos e espingardas em punho... e foi quando Nobelino, um antigo morador da vila, agilmente montou em um poldro que pastava no quintal e saiu em disparada até alcançar o professor Justus. Em ato contínuo a multidão estava em volta do professor: uns, a prestar-lhe condolências; outros, a sugerir melhor estratagema; outros mais a se oferecerem e até insistirem em acompanhar o professor Justus, até que uma mulher que amamentava a sua filhinha raquítica no colo gritou:
            – Queremos justiça! JUSTIÇA!!!!!
            A multidão irrompeu em coro:
            – JUSTIÇA! JUSTIÇA! JUSTIÇA! JUSTIÇA!!!
            O professor quis falar, mas àquela altura qualquer voz seria abafada. Silenciada, talvez. Gesticulou com as mãos, pedindo calma. Gritou, em vão:
            – Um minutinho só, pessoal...
            Talvez tenha sido isso, nunca se soube ao certo. Apenas conjecturas; traduções dos gestos,talvez... O certo
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é que nunca se soube ao certo o que o professor disse naquele momento. Mas percebendo que alternativa não havia, ergueu o punho esquerdo, gritou algo que se fez inaudível pelo clangor da multidão e gesticulou como a dizer:
            – Sigam-me!
            Se não foi isto, foi isto que a multidão quis entender, e “o povo é como um rio em fúria.”
            Nobelino – com dificuldades – aproximou-se do professor Justus:
            – Cadê as armas, professor?
            – Como...?
            – Cadê as armas? – desta vez Nobelino gritou a plenos pulmões.
            Como resposta, o professor tão-somente apontou para a própria cabeça, em silêncio; firme como um monumento; feições intrépidas; poucos gestos; leves movimentos; poucas – raríssimas! – palavras... E ia assim seguindo aquela marcha de voluntários da justiça.
            O professor seguia à frente da caravana (depois, chamada de “Levante pela Justiça”), ladeado de perto por Nobelino, montado em seu poldro, no flanco esquerdo; e no flanco direito seguia a pé um jovem de nome Horácius, de feições e porte helênicos, de quem pouco se sabia, e desse pouco se sabia que descendia de russos e que era um jovem de muito boa educação, porém extremamente introvertido e de pouco falar e de muita leitura e de pouco opinar e de muito agir e de pouco recuar e de muito persistir. Ia Horácius em silêncio, como se fosse um maratonista, enquanto os demais cantavam-gritavam palavras de ordem e – vez por outra – um “VIVA O PROFESSOR JUSTUS!”
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            Já no alto do Serrote do Cruzeiro o professor ergueu o braço direito, com a mão espalmada, e com a mão esquerda puxou a rédea do seu cavalo, parando a marcha e – lentamente – virou-se para trás e foi quando ele se deu conta da multidão que se arrastava atrás de si, pois no curso da caminhada muitos (homens e mulheres das mais variadas idades) o seguiam. Somente aí é que se viu pela primeira vez alguma alteração nas feições do professor Justus: pesou-lhe demasiadamente sua responsabilidade com aquela multidão revôlta que o acompanhava. Franziu levemente o cenho e tentou falar para a multidão:
            – Pessoal! Pessoal!
            Ninguém ouviu nada, mas pelo fato do professor parar, virar-se para trás e mover os lábios, todos compreenderam que ele estava falando algo, e como uma onda que se retrai a multidão foi silenciando e parando pronta para ouvir.
            – Pessoal! O mais perigoso dos indivíduos é um covarde, e mais ainda quando ele está armado.
            O professor Justus foi interrompido pelo burburinho da multidão, de vozes em eco:
            – É verdade... é verdade... é verdade...
            – É um covarde... é um covarde... é um covarde...
            A turba repetia cada verve do professor, que se mostrava ainda mais preocupado:
            – Peço encarecidamente a todos vocês que fiquem por aqui. Eu irei sozinho. Não quero violência e tão menos sacrifícios. E temos muitas crianças e mulheres nos acompanhando. Todos nós sabemos que a descida é íngreme e pedregoso é o caminho. Não quero confronto de armas...
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            Um murmúrio de vozes dispersas na multidão se fez ouvir:
            – Ninguém retrocede. Ninguém recua.
            Outros gritaram:
            – Iremos com o professor até as Cochinchinas!
            Nobelino volteou em seu poldro e andou em volta da multidão, gesticulando com as mãos como a pedir calma; como a pedir silêncio, enquanto gritava:
            – Pessoal! O professor precisa falar. Vamos ouvir o que o professor tem a dizer.
            Parecia que o apelo por calma de Nobelino à multidão tinha efeito contrário, e mais e mais a turba revôlta gritava de punhos cerrados a socar o imenso vazio:
            – JUSTIÇA! JUSTIÇA! JUSTIÇA!...
            O professor ergueu-se nos estribos e gritou em Latim clássico:
            – Dreptatea e cum fac domnii.
            Horácius se agigantou em si mesmo e traduziu para os demais:
            – “A justiça é aquilo que os governantes decretam que ela é”.
            O professor Justus continuou solenemente:
            – Não quero justiça feita com nossas próprias mãos, e tampouco quero vingança.
            Seguiu-se um sonoro murmúrio coletivo, somente interrompido por Horácius que resolveu intervir:
            – A vingança é a justiça feita pela própria vítima! E aqui todos nós somos – de uma forma ou de outra – vítimas; e como vítimas haveremos de fazer a justiça que o Estado se omite de fazer. Façamo-la, pois, nós mesmos!
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            A multidão não se continha em sua sede de justiça; em sua revolta contra tantos casos iguais ao de Maria da Glória Dias e Bragança (Maria Cacheado), abafados pelos estampidos das armas de fogo; outros, silenciados pela cumplicidade mesmo da família que via em tudo aquilo uma perspectiva de melhorar de vida; de desfrutar da simpatia e proteção do coronel Manzoel e seus capangas; outros mais silenciavam, pois já haviam vivido terrores e horrores piores. Consentiam-se outros tantos na banalidade dos estupros, assassinatos, apropriações indébitas, chibatadas nos lombos e tapas na cara desferidas pelos coronéis com a mesma naturalidade com que estes tratavam seus animais de montaria... Poucos – pouquíssimos! – se atreviam a gemer! 
            O professor ergueu-se mais em seus estribos, de modo que ficou de pé e não mais sentado na sela do seu cavalo e foi alteando a voz:
            – Sei que esta dor não é só minha, assim como sei que em muitas das famílias dos que aqui estão há várias Marias da Glória... Sei que em todos que aqui estão há uma revolta íntima silenciosa e silenciada... Sei que todos que aqui estão têm sede e fome de justiça... mas sei também, meus camaradas, os parâmetros da prudência e da insanidade. Olhemos em nossa volta e vejamos quantas crianças! quantas mulheres com filhos no colo! quantos jovens que deveriam a esta hora estar em uma sala de aula! E não podemos expor essas vidas ao sacrifício. Eu irei sozinho e desarmado, pois em minha contenda terei como armas as palavras e a retidão do meu caráter. Um indivíduo sem razão e sem caráter está perdido em si mesmo...
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            O professor foi interrompido por gritos, assobios, burburinhos de vozes ininteligíveis e até mesmo por um discreto e tímido princípio de vai. Ali, ninguém se dispunha a desperdiçar aquela chance de ir à vindita. E o professor era o emblema dessa chance, mas como – com que direito – ele agora queria tirar das mãos das vítimas o látego do algoz?! Era um incompreensível gesto do professor; e por mais que ele fosse tido como um homem sábio, culto, douto, bem educado, comedido em seus atos e gestos, tal atitude estarreceu a todos. Era – em uma palavra – decepcionante. Quem, ali, naquela turba revôlta, não guardava no seu âmago – por mais subtil que fosse – uma marca física ou moral de um coronel que, tal qual os “senhores feudais”, era proprietário dos servos e de suas vidas?!
            – Ouçam-me primeiro, por favor! – o professor Justus tentou – mais uma vez – ser ouvido, mas apenas os que estavam mais próximos conseguiram entender o que ele falou.
            – Pessoal! – insistiu o professor.
            Aqueles que ouviram foram transmitindo para os demais:
            – Olha aí, pessoal! Vamos fazer silêncio e ouvir primeiro o que o Mestre Justiniano tem a dizer.
            A multidão foi se contendo em si mesma e silenciou de tal forma que se ouvia apenas o choro de algumas crianças, o que deu tema para o professor Justus retomar a sua fala:
            – Deixei em minha casa a minha companheira e a minha pequenina Maria que – não faz lá muito tempo – era decolo como muitas que aqui estão a se alimentarem nos
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seios de suas zelosas mães. E com semelhante zelo nós – Floresbela e eu – criamos a nossa filha. Sei que aqui, entre nós, são muitos os pais e mães que sentiram no mais profundo de si o que minha família está passando. E sei também que por tal muitos compreendem como pais e mães o que estamos passando agora.
            – É verdade! – gritou a multidão.
            – Sei também que a vida de Manzoel não vale a honra de minha filha; e ainda que valesse, são muitas filhas cujos pais estão aqui a quem aquele indivíduo deve mais do que a honra de nossas filhas, de modo que se ele tivesse centenas de vidas ainda assim sobrariam honras a serem lavadas. Não vale a pena... um morto não sente o castigo e nada aprende. Deixemos que ele viva e por todo o resto de sua vida possa amargar e gemer suas desgraças.
            – Ele continuará matando, desonrando e desvirginando crianças, Mestre Justiniano! – gritou alguém, no meio da multidão.
            – Veremos! – retrucou o professor Justiniano, e continuou, impondo sua voz ao clangor da turba revôlta:
            – Por estes últimos três meses tudo que sabemos é que ele vegetou escondido como uma lebre assustada, mesmo com a proteção dos seus capangas e comparsas. E muito provável é que ele se esconda em si mesmo pelo resto dos seus dias. Hoje eu quero tão-somente dizer para ele algumas verdades que sufocam a todos que aqui estamos e a muitos outros nestas redondezas, e a mim em particular. Como ninguém jamais ousou lhe dizer o que pensa e sente, frente a frente, olhando em sua cara e em meio dos seus jagunços, eu quero mesmo desarmado de quaisquer
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armas letais – eu quero dizer-lhe verdades e mais verdades que ele se sentirá impotente e humilhado diante dos seus familiares e jagunços. Com a presença de todos vocês ele se sentirá ameaçado e certamente mandará seus capangas dispararem contra a multidão, o que seria uma tragédia, e eu não posso sequer imaginar que isso aconteça...
            – Professor Justiniano! Permita-me que eu o acompanhe para, em qualquer eventualidade, eu testemunhar depois. – interveio Nobelino, inflando a decepção dos demais.
            Uma voz grave, com acentuado sotaque russo, se fez ouvir na vanguarda:
            – Iremos nós três: o professor, Nobelino e eu. Deve haver por lá alguns jagunços (uma dezena, talvez) que, de tão medrosos, se lhes tirar as armas sequer conseguirão correr.
            – É verdade! Pois desarmados eles não são mais que uns borra-botas. – a multidão interrompeu Horácius. E este continuou sua fala – aos gritos – de modo que abafou e silenciou o burburinho da multidão:
            – Iremos apenas nós três. Os demais podem aguardar aqui ou voltar para suas casas. O professor está com a razão. Pior que um covarde armado somente um covarde armado se sentindo ameaçado. O professor sabe o que quer e sabe falar como ninguém; e com suas sábias e convictas palavras ele desarma qualquer valentão.
            E dirigindo-se para Nobelino:
            – Neste caso é conveniente que deixes tuas armas com alguém; nós três iremos desarmados...
            – E se por acaso a fera meter-se a besta, a gente vai
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pegá-la a mão. – Horácius foi interrompido por Nobelino, que entregava sua espingarda e uma faca para um morador da Vila Lastro, aparentado seu – ali, quase todos tinham algum grau de parentesco.
            – Vamos, professor. Estaremos ao teu lado para o que der e vier. Estou pronto. – disse Horácius ao professor; e dirigindo-se para a multidão:
            – Compreensível é a decepção de vocês, mas fiquem certos de que o professor Justus está com a razão. E tenham a certeza de que vocês serão mais úteis na retaguarda, nos apoiando em suas casas e nas ruas de Lastro. Organizem-se. Protestem. Façam uma passeata de protesto, pois nós voltaremos sãos e salvos.
            Ainda relutante o professor – por fim – aceitou a companhia de Nobelino e Horácius, mas mais convencido e confortado pela solidariedade destes do que por qualquer receio de ir sozinho.
            Um silêncio de cemitérios! E ali no Serrote do Cruzeiro havia dois, sobre os quais ninguém sabia nada, senão especulações e lendas que davam conta de que eram dos invasores europeus abatidos pelos povos originários; outros diziam que os primeiros colonizadores da região haviam morrido de uma enfermidade altamente contagiosa e fulminante; murados de pedras e cujos túmulos eram cobertos por rochedos como a garantir que os mortos ali sepultados não ressuscitariam. Mas o fato é que era demais intrigante uma região com 1826 habitantes tivesse cinco cemitérios, contando com um em uma caverna, pertencente aos povos originários.
            Tudo ali lembrava morte, violência, tragédia...
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            – Agradeço a todos pela solidariedade e compreensão. Iremos nós três, mas ainda estou convicto de que mais prudente seria eu ir sozinho. Mas vamos nós! Horácius... venha comigo... monta aqui. Você não pode caminhar tanto assim, a pé. Chegará cansado, ainda que saibamos o quão você é forte e resistente (fisicamente e de caráter, é bom que se diga, pois de outro modo não estaria ao meu lado).
            O professor Justiniano estendeu a mão para ajudar Horácius montar, mas este dispensou, alegando que preferia seguir a pé. Sem insistência o professor deu marcha em seu cavalo e em quatro ou cinco passos parou e virou-se para trás, acenando para a multidão que parecia engasgada; funérea; silente; cismagórica talvez. E assim permaneceu até que o professor, Nobelino e Horácius desapareceram no descambar do serrote – Serrote do Cruzeiro, que mais apropriadamente seria Serrote dos Cemitérios, ou algo assim.
            Os três seguiram calados: Horácius à frente, como a ditar a marcha, seguido do professor Justus e Nobelino na retaguarda. Dir-se-ia um grande exército de infantaria e cavalaria de tão agigantados aqueles três homens decididos e resolutos pareciam. Altivos! Agigantados em suas razões; em suas atitudes; no caráter de cada um deles; na retidão e honestidade que cada um era e exemplo diário que aqueles três destemidos simbolizavam para todo o povo daquela região e quilômetros e mais quilômetros em derredor. Sabia-se do convívio que os três tinham muito em comum – isto era notório – porém comentavam a bocas pequenas que os três pertenciam a uma sociedade secre-
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ta, ou algo do gênero. Diziam que os três se comunicavam por senhas, sinais e toques. Que os três faziam parte de uma irmandade, algo secreto e envolto em muito mistério. Muitos falavam em Maçonaria, mas Maçonaria é uma sociedade que tem segredos, porém não é secreta...
            Mas até onde se pode dar crédito ao que diz o povo? Boatos, talvez. É como dizem: Em lugar pequeno, grande só a língua do povo. Talvez fosse verdade, quem sabe? Também dizem que O povo aumenta, mas não inventa. De certo é que ali tudo era envolto em mistério. Pairava sempre um aspecto sombrio no ar naquela vilazinha e arredores.
            O exército de três entreviu por entre as árvores a Casa de Varanda. Via-se no pátio algum gado e circulando por toda extensão da varanda vultos inidentificáveis, mas parecendo pessoas agitadas; irrequietas; em constante movimento.
            Horácius diminuiu a marcha e fez sinal para que os demais assim o fizessem. Os três pararam e Horácius se virou para os dois, que a essa altura já o haviam alcançado:
            – Tem algum plano de abordagem, meu irmão Justus?
            – Somos três... Eu não queria o envolvimento da Irmandade, mas cá estamos. Confesso que saí de casa sem planos traçados. Não sou nenhum especialista em estratégias. A vida até aqui não me impusera esta necessidade – mãe da criatividade – e agora vejo que devemos aprender de tudo e tudo. O irmão Nobelino – considerando que somos três – tem a palavra.
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            – Teu plano é de paz, meu irmão. Em paz iremos. Se por desventura o profanador não te receber em paz, tu sabes o que a Irmandade já deliberou sobre o caso de nossa sobrinha Maria da Glória. Na última reunião tu deixaste claro por onde queres começar. A ti já estão em socorro os filhos daquela que perdeu o pai do seu filho. Estamos contigo sob juramento. Eia!
            Cada um levou a mão direita espalmada à garganta e disseram a uma só voz:
            – Sob juramento!!!
            Abraçaram-se entre si os três de modo que, ao se abraçarem, eles começaram o primeiro abraço pelo lado esquerdo como a quererem aproximar ao máximo os corações; em seguida mudavam para o lado direito no segundo abraço e, dando-se as mãos direitas, deram um terceiro e último abraço, até que este ritual foi repetido por três vezes três... quando ouviram o trotear de cavalgadura se aproximando por entre a mata.
            – Possivelmente já fomos vistos. – disse Nobelino, com o zelo de quem guarda algum segredo.
            – Não! Ainda não nos viram. Apenas nós sabemos da aproximação de alguém graças ao sentido auditivo. Ninguém à vista. Nem vimos nem tampouco fomos vistos, mas sabemos que alguém se aproxima. Estamos em vantagem. E vêm de várias direções. – disse Horácius com toda a calma de quem domina uma situação.
            – Já posso ver o irmão Hiram com mais outros três que não consigo identificar. Eles vêm pela mata. Vêm – pelo que posso entrever – em duas colunas; e entre as duas vem o nosso venerável irmão Arquimedes.
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            – Sim, irmão Justus! Tu tens ótima visão! – Nobelino confirmou o que o professor Justus acabara de dizer.
            – Conhecendo o irmão Justus assim como a Irmandade o conhece – esteja ele em Loja, de avental, ou não – estávamos de sobreaviso, pois sabíamos que o irmão haveria de querer dispensar a nossa fraternidade e fazer tudo a seu modo. Pensando assim foi que nos reunimos enquanto o irmão esteve ausente, pois fora buscar nossa sobrinha que passava férias em casa do irmão Dionísius, e deliberado ficou que eu e o irmão Nobelino faríamos o corredor por onde sabíamos que o irmão Justus passaria – daí o fato de o irmão Nobelino manter seu poldro no quintal. E cá estamos, irmão! Como podeis ver, eis a Irmandade pronta para cumprir seu juramento.
            Horácius terminou de falar isto quando trinta cavaleiros se dispuseram em forma de triângulo em torno dos três que ali já estavam.
            O professor Justiniano – com todo o seu equilíbrio emocional e sapiência – não conteve a emoção e por um instante ficou sem palavras. Somente depois de olhar para o rosto de cada um que ali estava é que ele se recompôs:
            – Meus irmãos!!! Veneráveis Cavaleiros!!! De onde vindes?
            – De uma senda do Oriente, perfeita porque é justa!!! – todos responderam a uma só voz, inclusive Nobelino e Horácius.
            – E o que trazeis?
            – Nossa fraternidade e nossas vidas pela Ordem dos Cavaleiros e pela vida dos nossos irmãos!!!
            – Quantos somos?
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            – Trinta e três, contando com o venerável Cavaleiro!!!
            – Tomai vossos lugares, irmãos!!!
            Todos apearam de suas montarias e se cumprimentaram. Foi quando o professor Justiniano – já refeito e um pouco descontraído – observou:
            – Agora entendo por que o irmão Grande Cavaleiro Horácius dispensou quando eu o convidei para montar comigo; não por acaso que ele atingiu o mais alto grau da Ordem: aquele que deu sua montaria ao irmão que mais necessitava dela e seguiu sua marcha a pé pelo Sendero que leva a todas as virtudes.
            Houve uma bateria de estalar de dedos por três vezes e se formaram duas colunas, cada uma composta por dezesseis cavaleiros que, em um ato sincronizado, sacaram seus espadins e os ergueram para o ar, formando algo como um teto de espadins, sob o qual Horácius passou de olhos fechados em uma marcha cujos pés se dispunham de forma tal que lembravam um esquadro.
            Ao fim da cobertura de espadins Horácius abriu os olhos; e de calcanhares juntos, mas mantendo os pés na mesma disposição da marcha, ele pôs a mão direita sobre o peito esquerdo e disse, em tom solene:
            – Irmãos!!! A partir daqui somos apenas um corpo que se ergue contra o mal causado a um de seus membros. Irmão Justus! Entre colunas, siga-me à minha esquerda, em tua montaria. Irmandade da Ordem dos Cavaleiros: avante, sempre!
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CAPÍTULO VI
            O professor Justiniano – ainda que parecendo discordar de tudo aquilo – apenas obedeceu. E aqueles cavalheiros seguiram rumo à casa-sede da fazenda Misericórdia. 
            Antes de terminar a mata e começar um grande descampado em volta daquela casa, as duas colunas se dividiram cada uma em duas, perfazendo um total de quatro colunas formadas por oito Cavaleiros cada, sendo que Horácius ficou no meio do quadrado que agora as quatro colunas formavam. Em seguida ele deu alguns comandos ao grupo através de toques, sinais e gestos, porém todos em absoluto silêncio. Isto feito, ele se juntou à coluna em que se encontrava o professor Justiniano, Nobelino, Arquimedes e mais cinco outros Cavaleiros, no que resultou em três colunas formadas por oito Cavaleiros e uma formada por nove Cavaleiros.
            Três colunas se deslocaram pela mata rumo à casa, sendo que uma abordaria os fundos; duas, as laterais; e a coluna formada por nove Cavaleiros, na qual Horácius ia à frente, rumou para a abordagem da frente da Casa de Varanda, em marcha mais lenta para dar tempo a que as demais se adiantassem.
            Quando estavam a mais ou menos duzentos metros da casa, ouviram-se disparos – de advertência, talvez, pois ninguém foi atingido – e gritos:
            – Alto lá!
            E novos disparos seguidos de:
            – Quem vem aí?
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            E mais disparos!
            Os nove Cavaleiros seguiram em frente com Horácius a pé, na vanguarda. Inabaláveis!
            A um sinal de Horácius, a coluna se dispôs como um triângulo, cujo vértice e o pináculo (Horácius) apontavam para a porta principal da frente da Casa de Varanda.
            Mais disparos e desta vez os projéteis levantaram terra a alguns centímetros dos pés de Horácius, e mais vozes vindas da casa:
            – Se identifiquem ou a gente atiramo pra matá!
            E inabaláveis aqueles cavalheiros seguiam em silêncio; olhar fixo na Casa de Varanda e em tudo que lá se mexia.
            Por fim, nem mais um disparo e nem mais uma voz vinda daquela sombria e tenebrosa casa. Foi quando a aproximadamente duas dezenas de metros do portão de acesso à varanda, Horácius e seus oito companheiros viram doze jagunços imobilizados, cada um com dois espadins encostados em seu pescoço, cujos espadins eram empunhados pelos membros da Irmandade que, como surgidos do nada, ali estavam:
            – Não mais um movimento sequer, e façam apenas o que mandarmos. Cada um de nós ficará com o espadim em vossas gargantas e um de nós que está ao vosso lado direito irá recolher as armas de vocês, mas ao primeiro movimento as lâminas de nossas espadas transfixarão vossas gargantas e uma segunda se embainhará em vossos corações.
            Um dos capangas do coronel Manzoel quis falar algo; foi quando Horácius e os demais já estavam dentro da
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varanda e Horácius disse, chamando para si o comando daquela operação:
            – Apenas obedeçam. Não movimentem nem mesmo a língua, a não ser quando forem indagados.
            Ele olhou a cada um dos doze capangas do coronel Manzoel e se dirigiu ao que mais transfigurado de medo aparentava:
            – Responda-me apenas o que eu perguntar!
            – Inhô sim!
            – Como você se chama?
            – Paturi, à disposição de vosmicê.
            – Fica calmo... queremos apenas que você nos diga a verdade.
            – Juro qui digo só a verdade, inhô.
            – Onde está o chefe de vocês?
            – Inhô! Nois num sabe. Juro pelas cinco chaga do nosso sinhô qui nois num sabe! Nois mermo não, mas a patroa tá lá dentro e deve de saber. Nois ficô só de sigurança pra casa.
            – Paturi! Você jurou dizer só a verdade; e dizer só a verdade quer dizer não mentir! – advertiu Horácius, mais vermelho do que o habitual.
            – Só recebemo orde pra guarnecê a casa. O coroné entrô pra falá com a familha – isso a ternontonte, quando cheguemo do Rio Grande – e despois num vimo mais o coroné. Nem siná... mas a patroa hoje cedim tava dando de comê pra bicharada. Aqui da banda de fora, só nois mermo e sinhá Zefinha quando vem trazer a bóia de nois.
            – Tem criança dentro da casa? – indagou o professor Justiniano.
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            – Inhô, sim. Muinta criança.
            – E o teu chefe...?
            – É cuma já disse pra vosmicês: o coroné entrô pra falá com a familha – isso a ternontonte, quando cheguemo do Rio Grande – e despois num vimo mais...
            O professor fez alguns sinais para os demais membros da Irmandade; em seguida o grupo se dividiu novamente tomando a mesma disposição em que havia chegado à casa. O professor bateu firme na porta da frente e gritou:
            – Manzoel! Vim, a princípio, falar contigo. Conversa de um homem para um traidor.
            Tudo era silêncio! Nem mais uma voz humana. Até o gado no terreiro parecia paralisado, como se assustado, de modo que se ouvia apenas o respirar ofegante dos capangas do coronel Manzoel empalidecidos de medo: estrategicamente surpreendidos, desarmados... impotentes – covardemente inúteis!
            – Manzoel! – insistiu o professor; e nada!
            Horácius fez alguns sinais para o professor Justiniano e os outros sete companheiros, tendo eles interagido com sinais também; e, em ato contínuo, três deles se acercaram dos doze capangas que se encontravam aglutinados em um canto da varanda e de costas para a casa. Após isto, Horácius deu uma volta em torno da casa, fazendo alguns sinais para os demais Cavaleiros e voltou para a porta da frente:
            – Manzoel! Abra a porta ou irei arrombá-la!
            A resposta foi um intrigante silêncio.
            Horácius repetiu por mais duas vezes e obteve o mesmo silêncio como resposta. Ele deu três passos para trás
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e já ia se projetando contra a porta quando o professor Justiniano fez um sinal com a mão e Horácius – com os seus quase dois metros de altura e cento e seis quilos compostos por excelente massa muscular – teve dificuldades em frear o próprio corpo.
            O professor Justiniano aproximou-se dos capangas do coronel Manzoel e perguntou:
            – Respondam-nos com meneios da cabeça – sim ou não –, mas sem mentiras: há mais jagunços dentro da casa, além de Manzoel?
            Todos sacudiram a cabeça de um lado para o outro, dizendo que não. O professor os advertiu sobre a gravidade de estarem mentindo; em seguida fez um sinal para Horácius e este se projetou contra a porta, golpeando-a com o ombro direito com tal ímpeto que ele foi parar dentro da casa com porta e tudo.
            Naquela sala não havia ninguém! Nada que sugerisse vida, qualquer que fosse o tipo de vida. A única claridade ali entrou com Horácius, pela mesma porta por onde este entrou. Tudo arrumado, como sem uso há alguns dias. Não pelo fato de está tudo empoeirado, mas é que em uma casa com “muinta criança” ali deveria – era o lógico de se esperar – que nos móveis empoeirados houvesse ao menos marcas deixadas por crianças. Mas não! Intrigantemente não!
            O professor Justiniano e Nobelino já estavam ao lado de Horácius e se entreolharam com ares interrogativos e desconfiados. Horácius fez sinal para os dois apurarem mais a audição e, quase automaticamente, suspenderam a respiração e projetaram os ouvidos, como a quererem
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ouvir o silêncio.
            Ouviram-se sussurros de voz feminina vindos de um compartimento vizinho à sala:
            – Fica quieto! – ou algo assim: eram quase inaudíveis aqueles sussurros.
            Pé ante pé, como se pisassem em ovos, os três se dirigiram para o interior da casa, até ouvirem o tossir de uma criança, no compartimento da segunda porta à direita no sentido de quem ia da sala para a cozinha. A porta estava trancada com taramelas pelo lado de dentro e os três – professor Justiniano, Horácius e Nobelino – pararam e olharam entre si com certo ar de satisfação ou ufanismo estampado nas faces, como quem descobre o que lhe parece um tesouro.
            O professor Justiniano Justus Dias praticamente esmurrou a porta:
            – Manzoel! Quero, por enquanto, apenas falar contigo. Saia!
            Porém, nada! Só um breve silêncio quebrado pelo barulho assemelhado ao de quem se esbarra em algum móvel e um gemido abafado.
            – Manzoel! Sou Justiniano Justus Dias. Ainda não venho ajustar contas contigo, mas apenas te dizer algumas verdades que você precisa ouvir; e que apenas o finado Luiz – a quem você tirou a vida friamente – ousou te dizer, mas mesmo assim pagou com a própria vida, mesmo ele sendo teu primo em primeiro grau. Eu ouso, Manzoel, querer que tenhas a mesma afoiteza com que abateste teu primo e com a mesma cobardia com que violentou a inocência da minha indefensa Maria, que hoje simboliza tantas
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outras marias vítimas de tuas megalomanias e cobardias desferidas sempre contra mulheres e um pobre ébrio como teu primo Luiz Abrantes, que uses tua valentia contra mim. Abre a porta, Manzoel, ou arrombá-la-ei com a fúria do meu ódio contra todas as tiranias, as quais tu representas tão bem.
            Uma voz suave, pausada, mansa e feminina veio de lá de dentro:
            – Professor...? Ó, professor?
            – Sim. Quem é?
            – Aqui é Augustina.
            – Eu quero falar com Manzoel.
            – Sim senhor, professor Justiniano. Eu compreendo a sua dor. Perdoe a meu marido e a mim também, pois eu me sinto culpada por tudo. Nem eu mesma esperava que Manzoel se atrevesse a tanto com uma filha do professor. Eu lhe peço, professor Justiniano, pelas chagas de São Sebastião, que perdoe meu marido. E lhe confesso a minha fraqueza, pela qual eu tenho me penitenciado e agora eu lhe peço o seu perdão.
            – Não estou aqui para pedir compreensão e tampouco para dar perdão. Vivi sempre pela verdade e para a justiça; e assim será por todos os meus dias que ainda me restarão até que ao pó eu retorne. Valores maiores eu desconheço; e se outros valores eu agreguei ao meu caráter é que eles são consequência disto. Jamais traí, mas fui traído; jamais enganei, mas fui enganado – talvez eu tenha me deixado enganar, pois todos nós estamos cheios dos crimes do Manzoel, mas mesmo assim eu ainda lhe dei um voto de confiança... e não aqui, em Lastro e nos arredores,
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quem não tenha sido vítima – direta ou indiretamente, de uma forma ou de outra – dos crimes, abusos e estupros praticados por Manzoel. Ele está manso com a covardia e, muitas das vezes, com a cumplicidade de suas vítimas. E Maria da Glória foi sua última vítima, e é isto que me conforta e me faz superar a dor.
            O professor sentiu o braço pesado de Horácius sobre seu ombro, acompanhado do puncionar das pontas de três dedos em suas costas e a voz grave do mesmo:
            – Já chega, Dona! Abra a porta ou afasta as crianças, pois irei arrombá-la. O professor Justus tem mais o que ver com teu marido, e você já desconversou demais! Ou está ganhando tempo para ele fugir? Se for, desistam, pois a casa está cercada. A dúzia de capangas que guarneciam a casa está desarmada e subjugada. Trinta e três homens de verdade da Ordem dos Cavaleiros fazem o quadrante da casa, de modo que ninguém entre e nem sai.
            – Moço! Não carece de arrombar a porta não, pois eu mesma vou abrir. – Augustina falou, de modo que se percebeu que ela já estava próxima da porta.
            – Manzoel! Se te fosse dado o poder de matar ao menos a um de nós, eu te advirto: somos trinta e três aqui. E saibas que a Ordem dos Cavaleiros é intocável, inatingível e indestrutível, assim como o é o tempo dos justos.
            Ouviu-se o arrastar de móveis que foram amontoados à porta para reforçar esta; e em seguida o tinir de ferrolhos e matraquear de taramelas e ao fundo uma voz de penitente entre balbuciar de orações e pedidos de misericórdia e clemência:
            – Senhores! É Augustinaquem fala... Estou abrindo
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a porta. Por todos os santos, tenham calma! Professor! Ó, professor!? Apelo para sua bondade e sua sabedoria...
            – Onde está Manzoel, Augustina? – perguntou Horácius, parecendo ainda mais vermelho.
            – Professor...! Poupem a vida do meu marido... Temos a casa cheia de filhos pra criar... – implorou Augustina, contando as contas do seu rosário com uma mão e com a outra secando as lágrimas dos olhos.
            A porta estava aberta e no meio da porta a dona da casa, a quem Horácius afastou com o braço e em seguida os três Cavaleiros entraram no quarto, onde esperavam uma reação do coronel Manzoel. Uma emboscada, talvez. Os três recuaram até a soleira da porta, onde estava a dona da casa contando as contas do seu rosário e balbuciando alguma prece. Horácius a pegou pelo braço e quase se curvando aproximou seu nariz do nariz da mulher:
            – Diga-nos logo onde está o teu marido!
            – Desculpem-me, mas eu pensei que os senhores soubessem. Está em cima, no sótão: desarmado e sozinho. Mas por favor... Venha a nós o vosso... Poupem a vida do meu marido. Seja feita a vossa vontade... Temos muitos filhos pra criar... assim na terra como... Professor! Sei que o senhor tem bom coração. perdoai as nossas ofensas... Espero que desta vez... não nos deixeis cair... ele aprenda a lição e respeite... em novas tentações... e nunca mais mexa com filha de ninguém... Amém!
            Augustina continuava seu rosário de orações e penas já sozinha, pois o professor Justiniano, Horácius e Nobelino já estavam em um esconderijo que Augustina chamara de sótão, mas que de fato eram algumas tábuas dis-
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postas como um forro, rentes ao teto, com uma única abertura – além da estreita passagem de entrada – já rente com a cumeeira, por onde Manzoel tinha uma visão da frente da casa e apoiava o cano de sua carabina para abater criações dos vizinhos e visitas indesejáveis. O que não ocorreu desta vez, sabe-se lá por que... Talvez pelo fato de ter sido surpreendido – tanto ele quanto seus jagunços – e já não mais poder fazer nada quando se deu conta de que a casa estava cercada e os jagunços desarmados e dominados.
            Já era demasiado tarde para resistir. E em momentos assim, acuado como uma lebre indefensa, seu escudo era sempre sua mulher que, de rosário nas mãos, acorria em sua defesa, clamando por misericórdia. Implorando por um perdão. Entremeando suas orações com pedidos de desculpas e clemência.
            Augustina – por fim, se reconhecendo impotente com suas preces – entregou tudo ao professor Justus, e pediu para ficar no quarto:
            – Confio no vosso senso de justiça, professor!
            Horácius – que já subira mais ou menos a metade da escada de cordas que levava àquela espécie de alçapão que dava acesso ao desvão – desceu de um pulo e pegou a mulher pelo braço e a conduziu até a conzinha:
            – Que nada, mulher! Fica aí, e não deixa as crianças virem... E coopera, se não quiser o pior.
            Quando Horácius voltou, o professor Justiniano e Nobelino já estavam no desvão e rapidamente ele subiu pela escada de cordas. Ofuscado, ele não conseguiu ver nada:
            – Meus Irmãos!!!
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            – Estamos em Ordem, Grande Irmão!!! O profanador é protegido pelas trevas, mas está aos nossos pés, dominado e indefenso.
            – Pela Justiça Maior e pela Ordem, meus Irmãos!!! Que nos venha a Luz para que possamos distinguir o certo do errado, e assim tenhamos discernimento entre o Justo e o injusto. E que a JUSTIÇA seja feita, edificando-se templos à virtude e cavando-se masmorras ao vício.
            Horácius acabou de falar já esmurrando o telhado da casa, de modo que voaram telhas aos pedaços pelos ares, abrindo assim uma imensa clareira por onde os raios do Sol entraram iluminando a face do profanador e tirano.
            Era uma manhã do dia 10 de abril de 1929, uma quarta-feira, por volta das 11:20h. Ouviram-se gritos como de quem estava amordaçado. Depois, gemidos e a voz grave de Horácius como se dirigisse um ritual. Em seguida, mais vinte e sete Cavaleiros entraram no quarto e se dispuseram de modo que entreviam seus companheiros lá no desvão. O professor Justiniano Justus Dias foi até o alçapão e os saudou:
            – Irmãos!!! A JUSTIÇA se inicia quando os que se sentem indignados com a injustiça partem para a ação. A Irmandade começou a agir, e o profanador e delinquente não mais voltará a desvirginar crianças e nem estuprar quem quer que seja.
            – A vingança é a JUSTIÇA feita pela própria vítima. Todas as Marias da Glória estão vingadas, redimidas e glorificadas, meu Irmão!!! – disseram os demais, como em coro ensaiado.
            Um verdadeiro homem é aquele que deve ter sem-
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pre orgulho e raiva. E claudicar, jamais! – disse Nobelino, com ares de triunfante.
            A isto se seguiu uma bateria de espadins e aqueles Cavaleiros se foram levando todo armamento do coronel Manzoel, cujo armamento foi distribuído com a população da Vila Lastro quando esses Cavaleiros por lá voltaram sob retumbante festa popular.
            A curiosidade imperou, mas tudo o que até hoje se sabe é que depois desse dia nunca mais Manzoel fez filhos em ninguém, nem mesmo na mulher com quem era casado.
            Boatos correram de que ele foi castrado... mas nunca se soube ao certo o que houve ali: virou segredo dos membros da Ordem dos Cavaleiros.
            A História também registra que jamais – jamais! – um coronel foi iniciado nos mistérios da Ordem dos Cavaleiros; que jamais – jamais! – um coronel foi aceito nos quadros da Ordem dos Cavaleiros!
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CAPÍTULO VII
            O justiceiro Francisco Pereira Dantas – popularmente Chico Pereira – escolheu estrategicamente o dia 27 de julho de 1924, um domingo, para ser o dia da invasão de Choucha, pois certamente naquela cidadezinha amanheceria tão-somente a sua população urbana, portanto menor a resistência, se é que haveria resistência por parte de alguns pseudos valentões metidos a chefes locais, como a destacar Otávio Mariz, ainda que o fator surpresa inexistisse, pois com a cobardia e o desaforo-quase-insanidade do agressor de Francisco Américo, que havia surrado de látego este comerciante mais conhecido como Chico Lopes, também alcunhado como Chico Américo, em pleno centro da cidade de Choucha. E depois das chibatadas o coronel Otávio Mariz mandou que sua vítima avisasse a Francisco Pereira que se o mesmo fosse a Choucha “a sua surra estava guardada”. Francisco Lopes contou tudo a Francisco Pereira – que por sua vez tivera o pai assassinado e tendo prendido o assassino do próprio pai e o entregado à polícia – viu, em poucos dias, o assassino solto a mando de coronéis da região.
            Nenhuma resistência houve quando daquela invasão de Francisco Pereira apoiado por homens de Lampião.
            Em seu livro VINGANÇA, NÃO”, um dos filhos de Francisco Pereira – Pereira Nóbrega – diz que o bandido Otávio Mariz fugira para o Lastro, o que não é verdade, pois Otávio Mariz teria fugido com toda a família para a fazenda Misericórdia, à busca da proteção do coronel Manzoel, deixando irresponsável e cobardemente seus con-
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cidadãos inocentes e outros tantos que nada tinham a ver com as megalomanias e ignorâncias vicialógicas e atávicas dos tais “chefes políticos locais” pagarem por suas tiranias e insanidades.
            Porém, nada – absolutamente nada – o coronel Manzoel ou quem quer que fosse tido como valentão naquelas recônditas paragens fez para proteger aquela cidadezinha indefensa e anestesiada de medo.
            Assim decorreram quase cinco anos, de 27 de julho de 1924 a 10 de abril de 1929, com Manzoel Gonçalo Alves no anonimato das emboscadas; no subterfúgio dos crimes; nas sombras dos estupros de adolescentes; no acúmulo de bens adquiridos ilicitamente com a ideia fixa de ser o “senhor de tudo que sua vista alcançasse”, conforme ele mesmo respondeu para seu pai quando este foi aconselhá-lo a parar com suas atividades – no mínimo – escusas.
            Era ele o “senhor absoluto” de vidas, honras, virgindades e dos seus caprichos, praticamente sem opositores, adversários ou qualquer resistência, senão as contestações dos Abrantes, liderados por Pedro Abrantes Ferreira, aparentados seus, cuja rixa se acirrou quando Manzoel assassinou Luiz Abrantes. E tão grande foi a resistência dos Abrantes, liderados por Pedro Abrantes Ferreira, que jamais cederam suas sesmarias às pressões impingidas por Manzoel, e tanto e tanto resistiram que Arsênio Abrantes, filho de Pedro Abrantes, manteve suas terras – um minifúndio – a trinta metros do quarto de dormir do coronel Manzoel, quando este tendo adquirido a fazenda Lastro foi morar na casa-grande, sede daquele latifúndio. E ainda hoje descendentes de Arsênio Abrantes moram a quarenta
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metros da casa-grande.
            Dir-se-ia heroica resistência!
            Sem mais novidades se passaram esses quase cinco anos em Lastro e arredores, até o caso de Maria da Glória – ou como dizem: “O CASO DE TODAS AS MARIAS”.
            Como se acostumara, o coronel Manzoel tentou trocar votos de seus serviçais e outros mais que ele mantinha sob curtas rédeas, por proteção com os presidentes da província, ciclo rompido somente a partir do caso de Maria Cacheado, pois a influência do professor Justiniano Justus Dias e da Ordem dos Cavaleiros, com membros espalhados por todos os países, e mais ainda influentes a partir do Iluminismo, influência marcada na História do Brasil por José Bonifácio ao iniciar D. Pedro I na Ordem e a Ordem assim tendo influenciado decisivamente na independência do Brasil, e reforçada com a ascensão de Vargas ao poder através da Revolução de 1930.
            Eis o quadro conjuntural do Brasil de então. Eis também a República Nova, querendo extinguir o que restava do Brasil colônia e, principalmente, o cancro mais pernicioso herdado do Brasil império: o coronelismo!
            Ainda muito jovem – quando estudava na capital da República – o professor engrossou as fileiras dos movimentos estudantis e republicanos. Dizem até que ele quis fundar uma república no povoado Barra, onde ficavam suas terras, as quais ele considerava inúteis. Depois, desistiu e fundou um sistema coletivo de produção, onde os moradores de suas terras eram uma espécie de cooperados.
            – Flores!
            – O que há, Justus?
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            – Tu abdicarias de tua parte nas terras, Flores...?
            – Justus! De onde tiraste essa ideia de que eu tenho terras? Para que eu quero terras, Justus? Matam e morrem pela terra; e essa terra, pela qual matam e morrem, não lhes serve nem para cova: vão todos para o lugar-comum (um cemitério que, sarcasticamente paradoxal, é público!) onde não passarão de banquete indistinto para bactérias e minhocas. Justus...!
            – Não gostaria que meus filhos aprendessem a perder! Porém, não os quero ganhadores. Imagino-os vencedores: que vençam todos os vícios; que derrotem todas as formas de exploração; que domem todos os medos; que triunfem sobre todas as mentiras; que aniquilem todas as injustiças. – disse o professor, passando a mão direita na mandíbula; e depois de uma pausa, olhando nos olhos de sua companheira, acrescentou:
            – Quem tem vergonha de trabalhar não tem vergonha de roubar. Não conseguiremos mais escola para nossa pequena Maria – pelo menos não mais este ano. E nem mesmo alimento expectativas de que ela conseguirá mais frequentar uma escola... Primeiro, eu gostaria que ela estudasse em casa mesmo, contigo... comigo...
            O professor mordeu os lábios, sempre olhando nos olhos da companheira, se aproximou mais dela e continuou:
            – Depois que Maria da Glória der à luz essa criança... – o professor Justiniano suspirou profundamente, mordeu o lábio inferior novamente e prosseguiu:
            – Estas palavras estraçalham-me a língua! Mas... eis a vida! Então, depois que Maria da Glória der àluz essa
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criança, eu gostaria que ela ficasse na cooperativa, tomando conta da contabilidade. O que te parece, Flores?
            – Maria da Glória é muito nova para tamanha responsabilidade, não, Justus?!
            – Sabes, Flores? Teu questionamento me fez lembrar que os grandes vultos da humanidade tiveram quatro pontos em comum: trabalharam desde crianças, assumiram responsabilidades desde cedo, estudaram em escolas públicas e foram presos injustamente. E por falar nisto, Maria leu A MÃE, do Máximo Gorki, que te pedi para que sugerisses para ela ler?
            – Creio que, se ainda não terminou, deve estar nas últimas páginas.
            – Por favor, querida Flores, peça-lhe depois para que nos faça um resumo escrito sobre o livro de Gorki. Devemos mantê-la com muitas atividades intelectuais. Não me agradaria que a ela sobrasse tempo para pensar no monstro e sua monstruosidade. Tão logo nasça a criança eu a levarei à casa do Manzoel. Ele deve criá-la. Ele já sabe que vai criá-la para que ele conviva a cada instante dos seus restos de dias de vida com seu filho – ou filha, que não sabemos – como a lhe gritar: EU SOU O ÚLTIMO FILHO TEU E DE UMA VÍTIMA TUA.
            Dona Floresbela estava cabisbaixa; duas lágrimas escorrendo-lhe pelas faces, como se fossem dois diamantes líquidos.
            – Também não nos agrada, Justus, e tampouco nos faz bem, que fiques a repetir isto frequentemente. Sabes o quanto nos é doído. Ah, como eu gostaria de te dar outros pensamentos! Aprendi contigo tantas coisas boas...
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            – Maria da Glória ainda sente muitas câimbras, Flores?      
            – Não mais tantas como antes, Justus.
            – Agosto está se indo...
            – Pois é... Talvez mais um mês e meio e ela dá à luz... Por estes últimos dias eu tenho observado que ela fica no quarto dela conversando sozinha... Isto me preocupa, e muito!
            – O que foi mesmo que ela te perguntou ontem, depois do jantar? – perguntou o professor Justiniano Justus Dias para a sua companheira, aproximando-se mais de Dona Floresbela e beijando-a na testa, carinhosamente.
            – Ontem, depois do jantar... Deixa-me ver... É que a Maria da Glória me faz tantas perguntas...
            – Algo sobre bonecas...
            – Ah! Sim. Lembrei-me: se vai sair uma bonequinha da barriga dela, e se ela poderá brincar com a boneca... Quanta inocência!
            – Covarde! Sextilhões de vezes covarde!
            – Calma, Justus! Tu és um ótimo pai; um excelentíssimo marido; um exemplar cidadão; um fiel amigo; um Cavaleiro honrado... Lembro-me como se fosse agora, quando foste iniciado na Ordem, do entusiasmo do meu pai quando chegava em casa, depois das reuniões, empolgado falando de ti. Ninguém lá em casa ainda te conhecia, mas a cada dia meu pai nos aguçava a curiosidade de te conhecer. Queres que eu te diga uma coisa? Hoje, tenho certeza que ele queria mesmo era ter um genro como Justiniano Justus Dias, dito assim de boca cheia, como ele pronunciava teu nome. – desconversou Dona Floresbela.
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CAPÍTULO VIII
            Fato é que o coronelismo foi o ressurgimento das mazelas do feudalismo em pleno século XX: a primae noctis; o completo direito do feudal sobre seu servo, incluindo-se aí o direito até mesmo de matar o servo conforme as desinências do “senhor” feudal.
            O coronelismo foi um sistema de poder político que teve o seu auge no período da República Velha (1889-1930), caracterizado pelo poder absoluto concentrado em mãos de um poderoso local, geralmente um dono de latifúndio, um fazendeiro ou um senhor de engenho próspero. Ele não só marcou a vida política e eleitoral do Brasil de então como contribuiu para a formação de um clima muito próprio, cultural, musical e literário que fez da sua figura um participante ativo do imaginário simbólico nacional.
            Não só os homens de letras procuraram reproduzir em seus livros o que era viver sob o domínio de um coronel, mas os feitos e as façanhas deles (os coronéis) foram transmitidos a luz de velas, de lamparinas e de lâmpadas, pela história oral do avô para os seus netos, fazendo com que quase todos das cercanias soubessem de uma “história” ou “causo do coronel”. Identificado com o Brasil do passado agrário, rústico e arcaico, seu fantasma ainda sobrevive, principalmente em alguns estados do Nordeste brasileiro, como o poderoso “mandão local”, uma espécie de velho barão feudal que, desconsiderando as razões do tempo e da época, insiste em manter-se vivo e atuante.
            O coronelismo na história política brasileira teve muito em comum com um período macabro da política ibé-
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rica: o do caudilhismo. Toda vez que na Península Ibérica, por uma motivação ou outra, o poder político central ficou abalado, enfraquecido, deu-se a ascensão do chefe provincial ou local que adquiria expressão militar e jurídica própria.
            O caudilhismo nasceu na Espanha medieval em luta contra os mouros, quando um rei dava a um chefe militar ou um aventureiro qualquer que a solicitava uma “carta de partida”, que o autorizava a recrutar homens e a arrecadar recursos para lutar na cruzada contra os homens do califa muçulmano. Foram célebres as façanhas de Cid, o campeador, que lutou e integrou Valencia ao reino de Espanha no século XI, sendo desde então considerado como o patriarca de todos os caudilhos que se seguiram.
            O cenário que envolvia e promovia o coronelismo era o do mundo rural brasileiro, dominado pelo latifúndio, o engenho, a fazenda e a estância. Um universo próprio, interiorano, bem afastado dos grandes centros urbanos; isolado do mundo. As comunicações eram raras e difíceis, feitas por canoa, barco, balsa, carro de boi, charrete, ou na sela do cavalo, puxando os arreios da mula ou do jumento. O coronel era a personificação completa do poder privado no Brasil. Ele mandava e desmandava num pequeno país do qual ele era um imperador com poder de vida e morte sobre os seus agregados.
            É neste cenário político brasileiro que com o coronelismo se estabeleceu uma vil desordem dos fatos e das coisas! Uma ignominiosa inversão de valores: para alguns parentes dos coronéis e seus bajuladores, os coronéis eram dignos de loas e exaltados como garanhões e machões por
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seus estupros; enquanto os filhos resultantes dos seus estupros eram tratados pelos parentes e bajuladores dos coronéis como “filhos de putas” ou “filhos de criação” ou “bastardos do coronel fulano de tal”, como se os delinquentes fossem as vítimas, enquanto as suas vítimas passavam a ser vistas como “diabólicas”, principalmente pela igreja católica e seus fiéis – e os coronéis, seus familiares e bajuladores eram sempre pessoas que professavam a religião católica.
            Todo o latifúndio compreendido como Fazenda Lastro fora arrematado em um leilão, depois de muita pressão sobre Dona Tica, viúva do coronel André Avelino Marques da Silva Guimarães, antecessor proprietário da Vila Lastro e de quase todas as terras em todos os quadrantes daquela, até então, vilazinha, menos o Russo Velho. Até a igreja do lugar passou a ser propriedade do coronel Manzoel, tudo por uma bagatela – dizem que um valor simbólico, já que a viúva e os demais herdeiros do coronel Avelino jamais receberam o restante do valor da compra das terras, senão alguns contos de réis no ato do leilão e uma promissória até hoje por quitar. E como os lastrenses eram férteis em seu lendário, diziam estes que até mesmo o santo padroeiro do lugar tinha lá suas obediências aos caprichos e ditames do coronel Manzoel.
            Com a morte do coronel Avelino, seus herdeiros passaram a receber, assiduamente, “mensageiros” do coronel Manzoel, com as mais aterrorizantes ameaças – estratagema mui bem por ele usado quando queria “comprar” bens de outrens, a contragosto destes.
            Era a homilética da carabina; a eloquência do para-
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bellum; o poder de persuasão do punhal. E sempre – ou quase sempre – funcionavam. Decididamente convincentes; e acertado é afirmar: o poder de decidir que a palavra dá; o poder de induzir que a poesia tem; mas a última palavra tem sido mesmo da pólvora.
            Desgostosos, a viúva e os demais herdeiros do coronel Avelino, impulsionados pelo terror impingido pelo coronel Manzoel e seus capangas, mudaram-se para outra província, distante o suficiente para que as ameaças não chegassem até eles; mas mesmo assim (entregue – segundo dizem – a profundo desgosto e melancolia) a viúva não sobreviveu mais que um ano e cinco meses desde que saiu – a contragosto mesmo – de suas terras, ao passo que via a jagunçada do coronel Manzoel saquear até a capela interna da casa-grande e profanar tudo que para ela era sagrado; e, como se toda a humilhação não bastasse, aqueles profissionais do crime ainda a obrigaram a recolher todas as fotografias do coronel André Avelino e familiares das paredes da casa e as lançar no fogo onde assavam carne e comiam opiparamente o que saquearam da cozinha e do curral (até então) de Dona Tica, a viúva do coronel Avelino: tudo que havia nas panelas, queijos, rapaduras, duas vacas abatidas a dezenas de tiros na cabeça e três carneiros sangrados a punhal, tudo como se fosse um deleite coletivo, uma exibição de pontarias e uma competição de crueldades.
            E assim foi a festa da posse do novo proprietário daqueles latifúndios, com gado e gente, currais, canaviais, quatro engenhos de cana – movidos a locomotivas a vapor – paraprodução de rapadura, duas vilas (sendo que a vila de
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Lastro passou à categoria de município por força da Lei Estadual número 2040, de 17 de junho de 1963, a contragosto do coronel Manzoel, receoso ele de que perderia as rédeas do seu grande curral eleitoral), a casa-grande que de tão grande até havia uma igrejinha dentro, mais a igreja local; e com tudo isso (completando o pacote) seguiram juntos muitos bajuladores, mas também silenciosos descontentes; inimigos ocultos; vítimas conformadas e inconformadas...
            José Antunes de Oliveira – um dos herdeiros do Coronel Avelino – tentou, em juízo da comarca de Choucha, receber o que seria o pagamento da compra de Lastro, mas perdeu a causa, o que entusiasmou o coronel Manzoel a expulsá-lo literalmente da região, juntamente com todos os seus parentes, nos fins dos anos de 1940.
            Os coronéis conseguiam (e conseguem ainda?) os votos do eleitor de duas formas: 1ª – por meio da violência: caso o eleitor o traísse, votando em outro candidato, podia perder o emprego ou ser até mesmo espancado ou assassinado pelos capangas do coronel; 2ª – pela troca de favores (o coronel oferecia a seus dependentes favores, como uma sacola de alimentos, remédios, segurança, vagas em hospitais – mesmo sendo estes, públicos –, dinheiro emprestado, emprego...) Da mesma forma eles conseguiam a virgindade das filhas dos seus meeiros, o silêncio de suas vítimas e os minifúndios vizinhos...
            Procura-se definir melhor o coronelismo que, mesmo sendo extinto com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, ainda manteve suas características em várias par-
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tes do país e, também, por se confundir com outros conceitos relacionados ao mandonismo, clientelismo e, mais ainda, com o feudalismo.
            Um jovem da província do Rio Grande mandara, por um dos moradores do coronel Manzoel, uma carta para sua filha Frauzina, sendo esse morador analfabeto como os demais, condição que lhe impedia de sequer saber o que fazia. Pela manhã cedo o infeliz jogou a carta por cima da parede do quarto da filha do Manzoel, tendo a referida carta caído dentro do penico cheio de mijo da Frauzina. Quando o coronel soube disso, mandou que seus jagunços pegassem a carta e fizessem o morador comer a carta regada a mijo. Depois, internou a filha em um convento para ela ser freira, onde viveu até a morte.
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CAPÍTULO IX 
            – Justus... Onde esteve? Eu e a Maria procuramos por ti e – óbvio – não te encontramos em lugar algum da casa. Ela me parece mais agitada...
            – E o que queriam, minha querida Flores? Aqui estou.
            – Ela fez um resumo tão rápido, mas tão rico em detalhes e figuras gramaticais que creio que ela pensou que fosse para escrever outro livro. E está ansiosa para te mostrar. Pergunta-me insistentemente: “O que meu pai vai dizer?”...
            – Estive o tempo todo no quintal... Voltei a me encantar com os girassóis. Tu sabes como ninguém que sempre adorei os fins de tarde entre os girassóis. Eu já nem mesmo me lembrava mais. Desculpa-me se não te chamei... Mas saibas que todos os meus pensamentos eram para ti... Desde o começo, quando nos fins de semana, teu pai – aliás, nosso pai, pois posso dizer dele que era meu irmão e meu pai: irmão da Ordem (o verdadeiro irmão, pois o é por opção) e pai... desde o começo, teu pai ia me pegar na pensão para irmos todos para a gleba. Às vezes eu só ouvia os gritos do teu pai: “Justus! Larga os girassóis! Vem te juntar à nossa família”! Que grande homem foi o teu pai, Flores! Que retidão de caráter e que elevado humanismo impregnava aquele homem! A Irmandade ainda era um mistério para mim, e isto me fazia pensar que aquele homem era feito de outra matéria. Ele se foi e ao te observar eu vejo que ele fez sua filha com o melhor de sua essência! Que grande mulher e grande ser humano que tu és,
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minha querida Flores! Sinto-me vivo graças a ti. É em ti que eu encontrei o meu sopro de vida.
            – Pára, Justus! – Dona Floresbela interrompeu o marido e continuou:
            – Sabemos que não é assim, ó, meu extrato humano! Sabemos que não é bem assim... Tuas qualidades é que te fazem essencialmente especial. Antes de mim já eras o que és. Eu apenas compartilho de tuas alegrias, tristezas – se é que tu tens tristezas –, felicidades, sonhos, labor diário, esperanças...
            Dona Floresbela fez uma pausa, abraçou o marido e o convidou:
            – Vamos ver a nossa pequena Maria? Ela já não se contém mais de ansiedade para saber o que vais dizer sobre o resumo que ela fez. Está empolgada com a ideia de que ela pode escrever um livro. Já me pediu um caderno de cem folhas, pois diz que irá escrever uma história. Insisti para que ela me dissesse que história ela vai escrever, mas por nada ela me diz.
            – Vamos, então. Também estou querendo ver o que ela escreveu. E já providenciaste o caderno para ela? Lembro-me que aos seis anos ela rabiscou uns versinhos; lembras, Flores? Depois, ela fez aquele poema “UM DIA NA NATUREZA”, que fizeste um quadro com ele e está na parede do quarto dela... Lembras? Eu mesmo não sei aonde ela foi buscar aquelas ideias, principalmente para o título.
            – A ideia do título eu me lembro... Foi em uma noite, depois do jantar, estávamos nós cinco – tu, eu, a Maria e... Não! Engano-me: ainda não tínhamos a Mitra... De
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fato éramos tu, eu, Maria e o Basílio Neto. Foi quando eles te pediram para contares histórias e começaste (tão solene que parecias defendendo uma cátedra): “Um dia, na natureza”... Lembras, Justus?
            – É verdade. E me fizeste lembrar de nossas reuniões para a escolha do nome de Basílio... Consultávamos até teus pais, por telégrafo... Até que decidimos por Basílio e telegrafamos para eles, quando teu pai mandou um telegrama com dados sobre a palavra basílio.
            – Oh, doces lembranças! – suspirou Dona Floresbela! E acrescentou:
            – Ainda por estes dias eu reli o telegrama. Meu pai se confessando honrado pela escolha e extremamente envaidecido – para surpresa minha, pois jamais vi uma ponta de vaidade nele. No telegrama ele diz: Basílio nome próprio português vg Latim Basilius vg do grego Βασίλειος pt Russo Василий pt Significa supremo governante pt.
            – É isto mesmo! Doces lembranças, minha querida Flores. Doces lembranças! Mas... onde está a nossa pequena Maria? Vamos até ela. Quero ver o seu trabalho.
            – Sim, Justus. Vamos.
            E assim, os dois – que já estavam abraçados – abraçados seguiram rumo ao quarto de Maria da Glória, onde a encontraram dormindo, deitada de lado e com o seu caderno apertado contra si pelos seus bracinhos quase infantis, como se temesse que algum fantasma ou monstro dos sonhos viesse roubar-lhe os seus sonhos de letras. Como se temesse que algum monstro de patente, de látegos nas mãos, surgido das sombras do poder e da tirania, viesse lhe assaltar – outra vez! – os seus sonhos pueris.
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            Em seu sono de pura inocência Maria da Glória sorria como se visse nas nuvens errantes carneirinhos que se transformam em elefantes; e elefantes brancos que se transformam em vagarosos trens; e trens silenciosos que se metamorfoseiam em incontáveis borboletas azuis apitando e soltando fumaça ao longo do firmamento infindo. Sim! Era, certamente, esse o universo que Maria da Glória habitava com suas calungas de pano. Com os seus sonhos infantis e interioranos. Mas no interiorano os coronéis violentavam purezas; amarguravam doçuras; estupravam inocências; transgrediam hímens com a banalidade dos cobardes; maculavam virgens e as matavam em vida com a crudeleza dos tiranos; decretavam ex officio a desgraça de quem lhes aprazasse.
            Eis Maria da Glória dormindo e ali os seus pais a contemplá-la como em um misto de embevecidos e indignados; enternecidos e embrutecidos; inconformados e decididos.
            – Maria?
            – Deixa-a dormir, Flores. Depois...
            – Hah! Eu já acordei. São vocês mesmo! Pois eu pensei que estava sonhando... Ou eu sonhei, minha mãe? Penso que sonhei voando, brincando nas nuvens com carneirinhos e bonecas feitos de nuvens. E vocês me pediam para que eu descesse. Mas eu não queria descer. Vocês diziam que era perigoso, mas eu chamava vocês para subirem, porque perigoso é aqui embaixo. É tão bom sonhar voando! Meu pai e minha mãe... me respondam: vocês já sonharam voando? Eu penso que somente eu sonho voando e que podendo voar ninguém me machuca.
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            – E podendo voar ninguém te machuca...
            Dona Floresbela e o professor Justiniano repetiram Maria com vozes trêmulas, embargadas; engasgados; a seco; rasgando a garganta. Como se vomitando fel; como refluxo de ácido clorídrico.
            – Não, minha pequena Maria! Ninguém mais sobre a face da terra haverá de te machucar! Ninguém!
            – Sim, minha querida Maria: ninguém haverá de te machucar. Nós te prometemos! – reforçou Dona Floresbela, abraçando a filha.
            Maria da Glória se sentou na cama, olhou longamente para os pais, como se perguntasse: “Ninguém mesmo?” e dirigiu-se para o pai:
            – Não quer ver o resumo que fiz? Minha mãe disse que eu quase escrevi um livro sobre o livro que li. Então eu creio que posso escrever o meu livro.
            – Claro que podes, sim, Maria. Tu podes mais do que escrever o teu próprio livro. – disse o professor Justiniano, já com um escancarado sorriso no rosto.
            – E eu já tenho a história toda na minha cabeça. Só preciso agora de um caderno para eu passar para o papel. Espero que vocês gostem. É uma história triste. Ora! Bobagem minha: como que vocês irão gostar de uma história triste, não é?
            – Minha filha... Escreve o teu livro; conta a história que quiseres. Não te importes se iremos gostar ou não. Não devemos fazer nada considerando se iremos agradar ou não, mas te preocupes com a verdade; com o certo... Quem não gostar é porque não gosta da verdade nem do certo. A esses não nos interessa agradar.
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            – Então, já sei que a minha história irá agradar somente a vocês.
            – Certamente que não, Maria. Muitos, mas muitos mesmo, gostam da verdade; gostam do que é certo. Mas vamos ao teu resumo. – quis o professor encerrar, pelo menos por aquele momento, o assunto do livro da Maria da Glória.
            – Aqui está o resumo... Este caderno tem poucas folhas. Foi só o que coube, mas se quiserem eu escrevo mais. E quando chega o meu outro caderno, de cem folhas? – Maria da Glória ia falando enquanto que, com dificuldades devido ao tamanho da barriga, foi se levantando e estendendo a sua pequena mão com o caderno em que escrevera o seu resumo sobre o livro de Máximo Gorki, na direção do seu pai.
            – Iremos ler juntos, eu e a tua mãe. Depois, te diremos nossa avaliação... Queres ler outro livro ou começar a escrever tua história? Já mandei vir cadernos para ti. Chegarão – no mais tardar – pelo começo da noite.
            O professor Justiniano disse isto já folheando o caderno de Maria da Glória. Dona Floresbela se aproximou mais da filha, acariciou-lhe os cabelos e perguntou se ela gostaria de comer algo em especial, e sugeriu:
            – Algumas frutas com mel? Mel de jataí com bananas, por exemplo – tu gostas tanto.
            – E vocês vão comer comigo?
            – Sim... Claro.
            – Mas eu não estou com fome...
            – Mas tu precisas te alimentar bem, Maria. É por ti e pelo... pelo... pela...
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            Dona Floresbela e o professor Justiniano se entreolharam como se buscassem palavras um no outro, mas em vão. “É por ti e pelo... pela...” quem? O quê? Não: eles não encontravam a palavra certa, justa, adequada... E Maria da Glória não se conteve:
            – Preciso me alimentar bem por mim e pelo quê?
            – Por isto mesmo, Maria: porque tu precisas te alimentar bem. Para tua saúde...
            – Então vai com tua mãe preparar tuas frutas com mel que eu vou terminar de ler teu resumo. – disse o professor, com o rosto enterrado entre as folhas do caderno de Maria da Glória.
            – Terminar!?!?! – exclamaram e interrogaram as duas, ao mesmo tempo: mãe e filha.
            – Sim. Termino logo e já vou comer também.
“A MÃE (resumo)
Autor: Máximo Gorki (em Russo Максим Горький)
            Uma história que foi inspirada em manifestações populares do primeiro de maio de 1902 e no julgamento dos seus líderes. A revolução de um povo a partir dos acontecimentos no seio de uma família, transformando a todos com a consciente participação na luta pelos ideais.
            Gorki escreveu este livro no ano de 1907.
            Ele fala da vida nas fábricas, um pouco da miséria dos camponeses, da vida cinza... O homem é o retrato da violência do meio. Trabalha, casa, tem filhos, enterra muita gente, bebe, é espancado, espanca, morre...
            Quando o serralheiro Mikhail Vlassov morre, fica a mãe viúva e o filho. Eles viviam como estranhos, pois os dois
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se falavam pouco e quase não se viam.
            Certa noite, após o jantar, a mãe pergunta o que o filho gosta de ler e a partir daí começa o primeiro laço entre os dois no segredo compartilhado: “Leio livros proibidos. Os livros são proibidos porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operários... São impressos às escondidas e, se os encontram aqui, metem-me na prisão, porque eu quero saber a verdade.” – responde ele para a mãe.
            Mãe e filho, agora unidos por segredo em comum, recomeçam a vida familiar em silêncio. A mãe declara seu medo quando o filho começa a receber visitas e a discutir as leituras e as formas de inserir o conhecimento no meio operário. A mãe permanece à margem, analisa as visitas e o que dizem, afeiçoa-se ao grupo... Mas ainda está muito presa aos dogmas religiosos e aos preconceitos alicerçados em toda a sua existência.
            Os panfletos circulam, instigando os operários a se unirem e lutarem por seus direitos. Existem os novos que se entusiasmam; os que ganham bons salários e levam para a administração aqueles papéis, e a maior parte, depauperada pelo trabalho e pela indiferença, responde preguiçosamente: “Nada vai mudar, é mesmo impossível.”
            Os soldados do czar começam as buscas nas casas, os boatos, a repressão... O filho sabe que o futuro é a prisão. A mãe é irônica consigo mesma: “Tive medo... até antes de ter medo.”
            O filho é preso com a suspeita de que liderava a circulação dos panfletos subversivos. A mãe, amadurecida e transformada com as leituras às escondidas, engaja-se na luta, trabalhando como vendedora de marmitas numafábri-
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ca, e continua a distribuição dos panfletos sob o disfarce. A mulher velha se transforma, passa a ocupar um espaço de funções e percepções no grupo. Não é mais apenas a mãe.
            O filho é solto e logo inicia os preparativos para o 1º de maio. A manifestação reúne uma multidão compacta e os líderes estimulam os trabalhadores a aderirem ao levante. “Levanta-te, povo trabalhador! De pé, gente com fome e dor!” Bom... para mim estes parecem os versos da INTERNACIONAL...
            A multidão se dispersa diante da “onda cinzenta de soldados”. Muita violência e a prisão dos líderes, entre eles o filho Pavel.
            Com a nova prisão de Pavel e a certeza da condenação, a mãe se muda para a casa de um amigo do filho na cidade, um professor primário, e continua o trabalho de distribuição dos panfletos nas zonas rurais. As condições de vida dos camponeses e dos operários russos são demonstradas na alienação e no medo. A mãe já não é a esposa violentada pela vida e a senhora com medo do conhecimento do filho, é uma mulher consciente que já tem argumentos próprios, como eu quero ser também.
            “A mãe ouvia-o como um sonho; a sua memória desfilava diante dela a longa série de acontecimentos dos últimos anos e, ao recordá-los, via-se a si própria. Outrora a vida havia-lhe parecido externa, longínqua, feita não se sabe por quem, nem por quê; e eis que agora muita coisa nasce perante os seus olhos com a sua contribuição.”
            O julgamento do filho é apenas um jogo de cena, pois as penas já foram estabelecidas nos gabinetes: a depor-
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tação e trabalhos forçados. A mãe leva o discurso proferido pelo filho no julgamento para ser impresso na tipografia clandestina e depois divulgá-lo. Quando ela, incumbida da distribuição, tenta embarcar com a mala cheia de panfletos, percebe que está sendo seguida. Sente dúvidas se deve abandonar a mala, mas logo vem a certeza de que seria abandonar as palavras do filho.
            É detida, humilhada e espancada. “Não afogarão a verdade num mar de sangue...” Creio que foi esta a frase que eu mais gostei. Tem muitas outras, mas creio mesmo que gostei mais desta.
            Considerado um conto, mas de fato um romance, o livro todo me prendeu a atenção, principalmente a parte que fala da morte de um camarada: “Que quer isso dizer: ele morreu? A minha estima por Iegor, a minha afeição por ele, pelo camarada, a recordação da obra dos seus pensamentos, essa própria obra? Extinguiram-se os sentimentos que ele fez nascer em mim, se apagou a imagem que me fez dele, de um homem corajoso, honesto? Será que tudo isto morreu? Para mim, isto não morrerá nunca, sei-o bem. Parece-me que nos apressamos demasiado em dizer de um homem: morreu. Estão mortos os lábios dele, mas as suas palavras vivem e viverão eternamente no coração dos vivos!”
            A passagem que fala do homem à beira da morte que afirma que sua vida foi mutilada pelo árduo trabalho na fábrica para o patrão comprar um penico de ouro para uma cantora: “Nesse ouro está a minha força, a minha vida. Foi assim que a perdi, um homem matou-me de trabalho para agradar à amante... Comprou-lhe um penico de ou-
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ro com o meu sangue.” é muito forte: dá raiva, tristeza e indignação, pois é isto que a gente vê todos os dias.
            Ah! também quero citar outra passagem muito interessante: “Como perdoar a quem se atira contra ti como um animal selvagem, quem não reconhece em ti uma alma viva e esmurra o teu rosto? Impossível perdoar. Não por mim, pois suportaria todos os ultrajes se fosse só eu, mas não quero ceder o mínimo aos que empregam a força, não quero que eles aprendam nas minhas costas a espancar os outros.”
            Gorki, o escritor do livro, também diz que é necessário tocar a emoção do trabalhador: “Falas bem, sim, mas não tocas o coração, aí está. É no mais fundo do coração que é preciso acender a centelha. Não cativarás as pessoas pela razão. Este sapato é demasiado fino, demasiado pequeno para os pés delas.”
            A MÃE foi um romance extremamente importante para a consciência da Revolução soviética. O próprio Lenine reconheceu isto antes de morrer, conforme meu pai já me falou, ao ler este livro de Máximo Gorki: “É um livro necessário. Muitos operários participaram no movimento revolucionário de um modo não consciente, espontâneo, e ler A Mãe ser-lhes-á de grande proveito. É um livro muito oportuno.”
SOBRE O AUTOR:
            Máximo Gorki participou com destaque da Revolução de 1905 e, depois do insucesso desta, escreveu o romance “A MÃE” em 1907. Sua atividade literária sempre foi acompanhada de intensa atuação no campo político. Marxista, criou a revista Znanie (O Conhecimento), di-
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recionada a estimular vocações jovens.
            Quase toda a vida deste grande escritor russo foi marcada pela miséria e pela violência que dão os traços dos seus personagens. Ele ficou órfão de pai aos seis anos, foi morar com o avô que logo lhe disse: “Máximo! Tu não és medalha para ficares pendurado no meu pescoço. Cai no meio do povo para ganhar a vida”. Autodidata, apaixonou-se pelos livros quando trabalhou como copeiro num barco, aos 12 anos – quando tinha a minha idade.
            Lutou com afinco pelo fim do czarismo que significava o sofrimento e a miséria dos russos e continua lutando pelo regime soviético. Assume cargos importantes no Governo, mas ultimamente esteve muito doente. Só espero que seus camaradas – principalmente Stalin – façam tudo para que ele não morra nunca, como ele mesmo diz em seu livro que um camarada não morre.
            O pseudônimo do escritor – Gorki – foi adotado em alusão aos anos de sofrimento de sua infância pobre, pois Gorki em russo significa amargo.”
Maria da Glória Dias e Bragança
(Maria Cacheado).
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CAPÍTULO X
            O professor Justiniano chegou à cozinha onde Dona Floresbela e os seus filhos Maria da Glória, Basílio Neto e Mitra se deliciavam com frutas e mel, e todos se deliciando também com gostosas risadas. Era como se a alegria fosse um bem contagiante em um mundo onde tudo que é contagiante é maléfico, nocivo, prejudicial. Ninguém é contagiado por coisas boas. Saúde não contagia – a grande maioria das doenças é contagiosa; riqueza material não contagia, mas a miséria é disseminada por todas as partes.
            – Vem, Justus! Junta-te a nós. Vamos comer.
            Exatamente ali, naquela mesa, havia literalmente um sabor de doçura; um gosto de mel; um quê de felicidade no ar. Um ar de satisfação em cada rosto. Era – enfim! – a família que sempre fora: alegre, feliz, unida, amável, doce, afável; compreensível e compreensiva.
            O professor Justus também não se continha – sorriso escancarado! Um brilho nos olhos como há tempos não se via. Palavras soltas, fluidas, incontidas, desatadas...
            – Por que vocês estão rindo? – perguntou o professor Justiniano.
            – E você, por que já vem rindo? – retrucaram os filhos e a companheira Floresbela.
            Sim! Como não estranharem o riso – dir-se-ia contagiante – tão ausente naquela casa por estes últimos oito meses? Verdade é que a alegria, a felicidade, a união, a compreensão, o humanismo sempre foram constantes naquele lar, mas depois de 18 de janeiro de 1929...!
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            Mas eis que aquela família – sempre unida – voltava a sorrir depois de brutalmente entristecida por quase oito meses! Entristecida, mas não silenciada! Agredida, mas nunca acobardada! Traída, mas nunca iludida!
            – O resumo... Maria... Você não leu, Flores?! Vocês não leram?!... Por que vocês riem tanto? Eu estou rindo de alegria e felicidade com o que acabo de ler. Maria, minha filha! O pai está – como sempre esteve – orgulhoso de ti: nem mais e nem menos, assim como sou orgulhoso de todos vocês; como sempre tive orgulho da família que tenho; dos amigos que tenho; da Irmandade da Ordem dos Cavaleiros a qual tenho a honra de pertencer... Mas confesso que neste momento tenho uma felicidade tão grande – mas tão grande! – que ela transborda em mim, pois é maior que eu. Isto já não é mais um simples resumo, Maria! É, de fato, um livro sobre Gorki; sobre a Revolução Russa; sobre as injustiças sociais... Parabéns, minha grande Maria.
            Ninguém ria mais. Todos pararam de comer e fitavam o professor Justiniano Justus Dias embevecidos; contagiados; boquiabertos. De euforia contida no aguardo do desfecho daquele discurso de euforia e encantamento. E o professor continuou:
            – Peço-te permissão para que eu leve para o teu tio Horácius ver, como também os demais irmãos da Ordem – isto, claro, depois que todos vocês lerem. Também gostaria de fazer umas cópias e mandar para nossos familiares, e outras para alguns amigos de jornais... Certamente que nem todos irão publicar, mas a grande maioria sim, tenho certeza. – o professor Justiniano terminoude falar e foi to-
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mando assento à mesa, junto aos demais, e já sentado prosseguiu, sem deixar hiato para ninguém:
            – Bom... eu já disse por que estou mais feliz; agora, me digam qual o motivo de tantas risadas, de vocês. Chamou-me a atenção e vim ver do que se trata, pois eu já estava mesmo era relendo o livro da Maria da Glória.
            – Não, meu pai! Esse não é o meu livro, é meu resumo: o meu livro eu vou escrever quando os cadernos chegarem. – interveio Maria da Glória.
            – Vamos comer. Tão logo que comamos iremos fazer uma leitura coletiva: cada um lê um pouco. E depois todos comentam.
            – Até eu?! Mas eu mesma comentar não tem graça, meu pai. – disse Maria da Glória.
            – Creio que é Maria da Glória quem deve comentar primeiro, para que não sofra a influência dos demais. O que vocês dizem? – manifestou-se Dona Floresbela.
            – Ah! é fácil: vamos par ou ímpar. – sugeriu Basílio Neto.
            – Eu nem sei o que é esse “par ou ímpar”. – observou Mitra, esfregando uma mãozinha na outra.
            Basílio Neto foi explicar para Mitra (sua irmãzinha mais nova) como é o jogo do par ou ímpar. Maria da Glória afastou de si os pratos com a comida como que enjoada e o professor Justiniano Justus Dias procurou se servir. Dona Floresbela passou-lhe a garrafa com mel e disse:
            – Desculpa-me Justus, mas não vou te acompanhar, pois já estou saciada.
            – Só mais um pouquinho... Ajuda-me aqui.
            O professor disse isto levando à boca de Dona Flo-
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resbela a sua colher com mel.
            – Ah, Justus! Não cabe mais! Tem dó! – disse Dona Floresbela rindo ao mesmo tempo em que os demais riam e batiam suavemente as mãos e diziam:
            – Come! Come! Come!
            Que doçura de família! Que união! Que liberdade em tempos que “lugar de mulher é na cozinha” e “criança não participa de conversa de gente grande”!
            “Ruptura de hierarquia” – diziam alguns – ao que o professor e Dona Floresbela retrucavam:
            – Minha casa não é uma caserna, mas sim um lar.
            “Sinal dos tempos! Até aonde vamos chegar?” – diziam outros, persignando-se.
            – Construiremos um mundo de igualdade, liberdade, justiça, paz e fraternidade para todos. – contrapunha Dona Floresbela e o professor Justiniano.
            Muitos se mostravam impressionados; outros mais pareciam impressionados e intrigados ao mesmo tempo:
            – Mas como pode? Ninguém nunca viu e sequer soube que o professor ou a Dona Floresbela tenha ao menos ralhado com aquelas crianças... e são tão educados!
            – Educados sem essa pieguice de alguns que se vê por aí. – observavam outros.
            O professor Justiniano se saciou e sugeriu:
            – Começa o mais idoso ou o menos idoso?
            Todos olharam para Mitra. Era ela quem começaria a leitura do resumo-livro de Maria da Glória. E assim seguiu a leitura até o professor se manifestar:
            – Estou vendo que não irá sobrar nada para eu ler.
            Concluída a leitura, cada um fez seu comentário.
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CAPÍTULO XI
           
            Por toda a minha vida eu tive que ranger os dentes de indignação e de raiva; de nojo e de revolta... Eu quero muito e muito e muito, e não consigo e não consigo e não consigo... amar o imenso, “gigante pela própria natureza”, diversificado, estupendo – e não cabível em definições – país que seria a minha pátria! Mas por mais estupendo que seja haverá sempre um canalha a tirar proveitos; a querer levar vantagens; a frustrar sonhos; a inverter valores; a corromper e corromper-se; a vender e comprar honra e dignidade; a tramar nos gabinetes; a se aproveitar das tragédias alheias...
            Dois séculos – última metade do século XIX e primeira metade do século XX – foram terrível e profundamente marcados pelo domínio do coronelismo, com sua estrutura sustentada no poder político em todos os níveis, como uma vicialógica cultura do “uma mão lava a outra, e as duas lavam o rosto”, quando os coronéis ofereciam seus currais eleitorais em troca de benesses pessoais.












            Podemos afirmar acertadamente que o coronelismo não teve fim – de fato – com a República Nova, pois na prática ele se travestiu com a roupagem do mandonismo herdado pelos descendentes dos antigos coronéis e se perpetua até hoje com as oligarquias que, por alienação do povo, ainda se mantêm no poder político-econômico, com decisivas atuações no cenário político nacional.
            Fim da década de 1920, com o coronelismo no auge de sua influência e com capacidade estruturacional e de
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mando consolidada em todo o país, dava a qualquer cidadão do povo a sensação de impotência diante dos desmandos desses representantes locais do Estado.
            Porém, nada: nenhuma adversidade ou o que para outrem era obstáculo, arrefecia os ideais do professor Justiniano Justus Dias por justiça. E não era neste momento de dor íntima, pois justiça sempre foi o seu anseio maior. Justiça para todos, e não um privilégio seu ou de alguns.
            Pelas últimas semanas de setembro de 1929, depois das alegrias proporcionadas com o resumo de Maria da Glória, a vida parecia ter voltado à normalidade, salvo algumas notícias chegadas do Sul e Sudeste do país dando contas de que “queriam por chimarrão no café com leite”! Fora isto, parecia que tudo voltara à rotina, menos o fato de Maria da Glória não está estudando... Até mesmo a sua gravidez parecia menos traumatizante, como se agora houvesse uma associação da gravidez ao nascimento de uma inocente criança, e não à cobardia e tara de um coronelzinho qualquer, digno de desprezo se o desprezo não implicasse em conivência.

            No dia 8 de outubro de 1929, uma terça-feira de muito sol e poucas nuvens como se fosse a repetição de outras manhãs, pelas primeiras horas do dia, Maria da Glória Dias e Bragança (Maria Cacheado) começa sentir as primeiras contrações uterinas e cólicas que se repetiam a intervalos cada vez menores. Lá pelas 9:40h da manhã ela dá à luz o seu filho Alenor assistida por sua mãe e seu pai, pessoas de amplos conhecimentos e que na região assumiam quase todas as funções sociais – de parteiros a professores: a uns, ajudavam dar à luz; a outros, davam-lhes
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a luz – a luz do saber.
            Maria da Glória – em sua quase-infinita-inocência – se acordou pela madrugada e chamou por sua mãe queixando-se de “dores na barriga”. Expôs aos pais a sua dúvida pueril:
            – Será a bexiga cheia, minha mãe? Eu quero o urinol. Ou foram os araçás que eu comi?
            – Não, minha pequena Maria... Nem uma coisa nem outra.
            – O que foi, então, meu pai?
            O professor Justiniano e Dona Floresbela se entreolharam, acariciaram a filha e Dona Floresbela – sem muitas palavras – tentou explicar para a filha:
            – Minha pequena Maria... vamos andar um pouco, aqui na sala, com a mãe e o pai.
            – Estou com muitas dores! Não posso...
            – Pode sim, Maria. Pode sim. Você sempre pode. Nunca esqueça de que você sempre pode.
            – Mas eu estou com muita dor de barriga.
            – Não, minha Maria. Não...
            – E o que é, então?
            – Fica calma. Eu e tua mãe estaremos contigo, sempre!
            – Ai! Ai! Está doendo muito. Eu quero o urinol.
            – Maria, minha filha! Você não precisa de urinol. É que chegou a hora de sair uma criancinha de tua barriga, conforme nós te explicamos por todos estes meses. Mas ela precisa muito que você mantenha a calma e quando vierem as cólicas você ajude...
            – Ajudar como? E o que são cólicas?
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            – Calma, Maria; calma!
            – Mas calma por quê?
            – Porque vai sair um bebê de tua barriguinha. Sente o pezinho dele, dando pontapés em tua barriga. – respondeu Dona Floresbela, tentando acalmar a filha.
            – Mas as crianças de doze anos devem sentir mariposas no estômago, não pontapés de um bebê. – contestou Maria da Glória, quase gritando de dor.
            – É verdade, minha filha: las niñas de doce años deben sentir mariposas en su estomago, no las patadas de un bebé. – reforçou o professor Justiniano.
            – Você já completou treze anos, Maria. – observou Dona Floresbela.
            – Nem por isto, pois as de treze também; e as de quatorze e as de quinze também. – retrucou Maria Cacheado, entre gemidos de dor.
            Pai e mãe estavam inseguros em assistir a filha no parto do próprio neto, e até cogitaram em mandar buscar Dona Zefa (ou Mãe Zefa, como muitos a chamavam, pois ela já fizera para mais de oito centenas de partos em toda a região), a parteira mais próxima, mas a dúvida gerou insegurança: as cólicas se repetiam em intervalos cada vez menores e o líquido amniótico já começara a escorrer e a criança estava com pressa, a pressa de quem não conhecia o lugar onde estava prestes a chegar.
            Era tarde demais para outras providências. Os gritos de Maria da Glória se faziam mais agudos; mais dilacerantes; mais penetrantes no âmago dos seus pais. Eles a deitaram; a criança já se anunciava de cabeça, como se diz. Queria encarar o mundo de frente – cara a cara.
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            – Chega, Justus! A criança já vem! – gritou Dona Floresbela.
            – Vamos, Maria! A criança quer sair, falta você ajudar. Faz força. Mais. Isto, minha pequena Maria.
            Incentivava – talvez não seja esta a palavra certa, adequada, justa, mas vai esta mesma – incentivava Dona Floresbela; e... até que por fim pai e mãe (avô e avó) gritaram:
            – Nasceu, minha pequena Maria. É homem.
            – Ah! Eu quero ver. – disse Maria da Glória.
            – Melhor que não...
            – Deixa que ela veja a criança, Justus. Não faz mal.
            – Não quero que ela se apegue à criança, Flores. Quando o Sol pender, eu vou levá-lo e colocá-lo no colo do Manzoel.
            – Mas deixa que Maria o veja... É filho; não é ele o criminoso. De nada ele tem culpa. É tão vítima o quanto Maria da Glória. Veja, Maria: é teu filho! Foi preciso teu martírio para que nunca mais aconteça com outra o que Manzoel fez contigo. E que o teu martírio não seja em vão!
            – Não será, querida Flores! Não será! As providências já foram tomadas. Nunca mais se repetirá o Caso Maria da Glória! N-u-n-c-a m-a-i-s = nunca mais!
            – Precisamos cortar o umbigo da criança, Justus. Está tudo aí, na mesinha: tesoura, linha, algodão, ataduras... tudo muito bem esterilizado. O álcool também está aí... Ah, não! Eu não quis deixar em cima da mesinha para evitar acidentes, principalmente com a Mitra. Vou pegar... É um minutinho só.
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            Logo Dona Floresbela voltou com um frasco com álcool e outro com mercúrio cromo:
            – Pronto, Justus, o álcool está aqui. Vamos cortar o umbigo...
            E os dois cortaram o umbigo do neto (sem choro!) o que impressionou profundamente a eles.
            Feita a devida higiene nas crianças – pois Maria da Glória era agora uma criança-mãe e uma mãe criança – Dona Floresbela deitou o recém nascido com a mãe do mesmo e foi ensinar à filha amamentar o menino. Maria da Glória se encolheu:
            – O bebê está fazendo cócegas!
            – Ele precisa se alimentar, Maria, e a única fonte de alimentação que há para ele é essa. Vamos! Segura assim... Isto! Olha só: ele está mamando! Maria! Você está amamentando, minha filha!
            Dona Floresbela saltitou de alegria – contentamento, talvez – e o professor se aproximou, curvou-se apoiando as mãos sobre os joelhos e suspirou:
            – Pobres inocentes!
            – Poderíamos criá-lo.
            – Poderíamos, Flores. Poderíamos... mas não devemos. Manzoel deve criá-lo para que ele nunca esqueça a lição. É como disse o Gorki, não é minha pequena Maria? “Como perdoar a quem se atira contra ti como um animal selvagem, quem não reconhece em ti uma alma viva e esmurra o teu rosto? Impossível perdoar. Não por mim, pois suportaria todos os ultrajes se fosse só eu, mas não quero ceder o mínimo aos que empregam a força, não quero que eles aprendam nas minhas costas a espancar os outros.”
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            – Compreendo, Justus. Compreendo! Não te tiro a razão. O que me preocupa é o futuro desta criança nas mãos de um tirano. Quem faz o que ele faz com mulheres e crianças como uma inocente e indefensa Maria...
            – Quanto a isto, não te preocupes, Flores: estarei sempre vigilante. Aliás: estaremos. Todos nós – eu, você, os irmãos da Ordem e...
            – E...?
            – Para ti eu posso revelar: Pedro Abrantes Ferreira será iniciado na Ordem dos Cavaleiros, sendo ele parente de Manzoel e um dos seus mais ferrenhos inimigos. O que será entendido como uma forma de a Ordem dos Cavaleiros oficializar seu irrestrito apoio a ele. Nós teremos Manzoel sob rédeas curtas. Tenha certeza disto, querida Flores. Tenha certeza!
            – Conheço bem a Ordem, Justus! E a ti também. Sempre espero um mundo melhor a cada respirar de um vivente. Os justos – sem querer fazer nenhum trocadilho – têm entregado a própria vida por um mundo cada vez melhor. Por isto entendo por que entregas um neto ao estuprador da própria filha, pois sei que darias a tua própria vida para que nunca mais se repetisse com filha de ninguém o que aconteceu com a nossa. Compreendo, Justus! E é por isto que antes mesmo de te amar eu primeiro te admirei. Não foi por influência dos discursos elogiosos do meu pai sobre ti, não; foi e é por tudo que eu pude e posso testemunhar sobre tuas virtudes. Sobre teu altruísmo; teu humanismo; tua capacidade de amar e compreender o teu semelhante. Eu repito sempre isto, pois isto está presente em meus pensamentos e os teus exemplos diários não me per
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mitiriam jamais – jamais! – esquecer tuas qualidades por uma fração de segundo sequer. E Maria da Glória dormiu! – disse Dona Floresbela, como se surpresa.
            – Ela perdeu muita energia. E a criança continua mamando. É melhor assim. Mais tarde irei levá-la. São cinco léguas e meia de percurso. Muito chão para um recém-nascido, mas de um simbolismo extremamente significativo: certamente ele terá muito chão pela vida. Cabe a mim cuidar dele nesse percurso para que ele não sofra, ou pelo menos não sofra tanto, ainda que qualquer sofrimento seja demasiado. Isto é de um simbolismo comovente, minha querida Flores! É este o meu chamamento, e devo atendê-lo. É a minha tarefa nesta contenda. Devo cumpri-la. A mim não importa o preço, mas sim a missão cumprida. Seja qual for o preço.
            – Justus! Temos outros filhos, que sequer fizeram o desjejum a estas horas! Sei que o Basílio Neto a esta altura já foi à cozinha, mas a Mitra... se não lhe der nas mãos... E você...
            – E você, Flores. E a Maria da Glória... mas é melhor deixá-la dormir.
            – Sim, é melhor deixá-la dormir. E que ela durma tal qual dormiu pela última vez em 12 de janeiro passado... Sim, Justus, é melhor deixá-la dormir.
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CAPÍTULO XII 



            Desta vez o professor Justiniano Justus Dias mandara – tão logo Maria da Glória começou a sentir as primeiras cólicas e contrações – avisar ao irmão Grande Cavaleiro Horácius e, consequentemente, a toda a Ordem dos Cavaleiros de que o seu neto estava chegando e que tão logo ele nascesse (ainda mesmo naquele dia) o professor iria levá-lo ao colo do coronel Manzoel.
            Era um pouco mais do meio dia quando algumas dezenas de homens paramentados conversavam entre si e gesticulavam pela casa do professor Justiniano. Era como se ensaiassem algum ritual. Tinham as faces brônzeas e passos cadenciados, como a lembrar uma legião. Vez por outra se via o professor entre eles, mas era como se todos fossem iguais, fac-símiles melhor eu diria, de tal modo que não se distinguiam hierarquias ou graus, e tanto e tanto que nem mesmo poder-se-ia dizer quem era o dono da casa. Talvez – na melhor das definições – dir-se-ia uma verdadeira irmandade zigoteana.
            O último a chegar foi Horácius, desta vez a cavalo, acompanhado de uma mulher de cabelos presos e envoltos em um lenço colorido, montada em um cavalo de aparência extremamente dócil, desses domados para cavalgadura feminina, cuja mulher apeou-se com destreza de sua montaria e tão logo foi adentrando a casa do professor com passos firmes enquanto saudava a cada um com aparente familiaridade.
            Já passava de quatorze horas e o Sol parecia dar mais brilhoe maisvida atudo. Talvez aquecesse mais os ho-
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mens. Talvez clareasse mais as ideias dos homens. Talvez incendiasse mais as consciências... Talvez!
            Ouviu-se choro de recém-nascido, logo abafado por uma canção de ninar; uma voz de barítono cantando em Africânder uma canção tribal. Era – talvez – a voz da mulher recentemente chegada embalando em presságios o filho de Maria, o neto de Justus, o sobrinho de Horácius e de todos os irmãos da Ordem:

            “Bem vinda, ó, pequena criança!
            O mundo alegre já te espera.
            Contigo renasce a esperança
            De que surja uma nova era!

            Felizes nós todos estamos
            Com a tua chegada entre nós.
            Tu não terás servos nem amos:
            És livre como os teus avós!

            Contigo trazes paz e luz
            Para ti e todos os teus.
            A todo o bem tu fazes jus
            Pois bendito és como Zeus!”...

            E aquela mulher continuou cantando seu hino de boas-vindas para o recém-nascido, prolongando os acordes com notas altissonantes, transformando o que era inicialmente um canto alegre em uma canção plangente, com variações semitonadas, como se a África inteira cantasse e risse ao mesmo tempo. Como se a humanidade toda! ali
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gemesse de prazer e de dor; como se ela própria risse e cantasse ao mesmo tempo. Como se ela incorporasse ao seu canto (inicialmente alegre) o choro da criança que não mais chorou. Como se ela não apenas dissesse com o seu gesto: “Choraremos por ti”, mas sim demonstrasse com atitude que aquela criança tinha – teria sempre – quem por ela chorasse. Aquela criança tinha quem lhe chorasse... teria – sempre! – quem lhe chorasse!

            “Bem vinda, ó, pequena criança!
            O mundo alegre já te espera.
            Contigo renasce a esperança
            De que surja uma nova era!”...

            Agora alguém já lhe fazia coro – semitonando às vezes, mas uníssono – enquanto os Cavaleiros (de faces intrépidas a lhes denunciar a coragem e afoiteza dos justos) já arrumavam as suas montarias, anunciando assim a aproximação do momento da partida. Talvez não do início da partida, mas do início da chegada, essa dubialidade atroz: não será – sempre! – cada partida o início de uma chegada? Talvez nem sempre haja chegada, mas deve ser mesmo cada partida o início de uma chegada. A algum lugar... A um determinado lugar... ainda que se tombe pelo caminho ou se dê apenas alguns passos, mas será – certamente – o início!
            Foi – assim – aquela a única vez que Maria Cacheado, professor Justiniano, Dona Floresbela e os demais que ali estavam ouviram aquela criança chorar; e não se tem conhecimento de que qualquer outro vivente o tenha vis
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to chorando.

            “Felizes nós todos estamos
            Com a tua chegada entre nós.
            Tu não terás servos nem amos:
            És livre como os teus avós!”

            Dizem que naquele momento a criança – com avidez – procurou os seios da sua mãe e que quando Maria da Glória lhe perguntou ingenuamente “O que você quer, neném?”, a criança lhe sorriu e a avó o conduziu aos seios de Maria Cacheado, tendo a criança mamado opiparamente como se soubesse que seria aquela a sua última refeição feita com o leite de sua própria mãe. Dali por diante Mãe Zefa seria a sua mãe de leite até o dia em que, já bem crescido, juntamente com o seu irmão Elandro, fez pirraça por uma tigela de coalhada e o coronel Manzoel quis forçá-los a comerem toda a coalhada, havendo aí a intervenção de Augustina, que os livrou do autoritarismo, da intolerância e da truculência do coronel Manzoel.
            Mas isto é outra história.

***

            – Ahhrá! Pensou que havia terminado a minha história, não é?! Precipitou-se!
            Diria Maria Cacheado, neste ponto da narrativa, esfregando o seu nariz no meu – ou no teu... Ahhrá!


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CAPÍTULO XIII

            Quatro horas da tarde; cinco léguas e meia de percurso a serem vencidas. Um recém-nascido a ser decidido o seu futuro. Uma lição a ser dada para nunca mais ser esquecida. Duas crianças (Maria da Glória e o seu filho Alenor) cujos porvires se não eram mais incertos do que o porvir de todas as crianças eram, por certo, bem mais cismagóricos. Eis por que a irmandade da Ordem dos Cavaleiros estava ali, unida como sempre. Fraternalmente unida, como um só corpo. Pronta para determinar o futuro de Maria Cacheado, de seu filho Alenor e, por conseguinte, de tantas outras adolescentes e mulheres casadas que, a partir de então, não mais seriam objetos das taras e libertinagens de coronel nenhum! E sem risco de incorrer no exagero, podemos afirmar que, neste sentido de que mães e filhas não mais fossem objetos patrimoniais dos coronéis, o mundo mudou para melhor a partir daquele dia.
            – É bom de ter cuidado com o sereno no menino. O sereno pode de resfriar a criança. Quanto mais pano nele, melhor. A gente não chega hoje na Misericórdia antes das sete... Maria, minha filha! Ponha a bênção no seu filho. Dona Floresbela também, que mãe e avó abençoando juntas reforça mais a bênção pra que o menino tenha boa sorte na vida. E ele vai precisar, e muita.
            Mãe Zefa comandava os últimos preparativos para a criança ser levada pelo avô até a fazenda Misericórdia, e entregue ao coronel Manzoel conforme o professor Justiniano havia determinado. E agora ele mesmo levaria o neto para o colo do coronel Manzoel a contragosto, pois
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todos ali se afeiçoaram da criança. Todos ali se dividiam entre criar o menino Alenor ou levá-lo para que o coronel Manzoel o criasse e tivesse assim algo como uma espécie de lição... Mas todos ali já discutiam se esse gesto era mesmo uma punição ou um prêmio para o delinquente.
            Foi quando a Ordem dos Cavaleiros interveio, pois havia assim a iminência de que não fosse cumprida a palavra de um dos seus membros e, consequentemente, a deliberação da Ordem.
            Sim: deveria ser feito o que o professor-avô havia anunciado à plebe, pois o homem é a sua palavra! Daí, a Ordem dos Cavaleiros ter chamado para si a incumbência maior de zelar para que o anunciado se cumprisse. E como dito, feito.
            Saiu a caravana lá pelas 16:40h daquele 8 de outubro de 1929, uma terça-feira singular, deixando para trás Dona Floresbela em prantos e Maria da Glória desconsolada, pois ela adorou aquele bonequinho de carne e osso, mas não podia tê-lo consigo, o que ela não podia entender.
            Seguiram por uma estradinha que liga o povoado de Barra ao Russo Velho (concomitantemente a casa do professor Justiniano e a casa do Grande Irmão Horácius), um atalho para a fazenda Misericórdia, pois precisavam ganhar tempo. Urgia que a viagem fosse o mais breve possível para que a “criança menos pegasse sereno”; e aqueles homens conheciam palmo a palmo a xerografia daquelas terras como ninguém. Todos os atalhos, veredas, encruzilhadas, pontos de apoio... pontos onde possíveis emboscadas fossem montadas pelos jagunços do coronel Manzoel – nunca se sabe pois da traição ninguém se livra, ou não
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seria traição!
            Saiu a caravana deixando também o Sol para trás (o percurso era Oeste – Leste), de modo que as sombras daqueles cavaleiros seguiam na dianteira como fantasmas vanguardistas anunciando – ou pressagiando – o que em seguida viria. E se olhassem para a retaguarda no rumo da Barra, veriam a Serra Branca e ao sopé daquela montanha a localidade Barra, onde ficaram a mãe, a avó e os tios do menino Alenor (Basílio Neto e Mitra).
            Mas aquela caravana não olharia para trás: a partir da saída, o seu único objetivo era seguir em frente, sem ao menos olhar para trás. Sempre em frente, sem reconhecer obstáculos, até chegar à casa do Manzoel. Até ser anunciada a sentença: “Este é o teu filho – o último a nascer e o último a ser gerado por ti em um ato de violência. Cria-o, Manzoel! E cria-o muito bem, para o teu bem!”.
            E assim seguiu o menino Alenor no colo de Mãe Zefa – zelosa, amável, sábia e terna –, dormindo embalado ao ritmo do trotear do cavalo e protegido pelo avô e os seus “tios” da Ordem dos Cavaleiros. Tudo isto serviu de material para especulações no decorrer de sua vida: tamanha segurança possivelmente tenha sido decisiva para que o homem Alenor seja um destemido, sereno, honesto e pacato cidadão. E quem diria que não?!
            Já era só o arrebol quando a caravana passou pela fazenda do Russo Velho, e aí todos os habitantes – que não eram muitos – faziam uma espécie de corredor humano às margens da estrada e aplaudiram a passagem do menino Alenor, símbolo já para aquela gente do fim do coronelismo. Prenúncio já de dias melhores para aquele povo.
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            Já se aproximando da Vila Lastro – logo mesmo a partir do Cacimbão – começou a se formar uma fila ao longo da estrada, que se prolongava pelas ruas daquela vilazinha; e daí em diante seguiu como um cortejo.
            Em cada rosto ali havia um misto de expectativa e satisfação; algo como a sensação de vitória de quem se sente vingado. Um tufão de euforia coletiva, generalizada.
            Chico Grande – um jovem ainda dividido entre a labuta da roça e uma barbearia que atendia aos domingos, dia de feira na bolandeira, onde fizera amizade com Antônio Fogueteiro que, mais no mês de janeiro de cada ano, se “hospedava” no engenho do Açude Grande para fazer fogos de artifício para as festas do padroeiro do lugar – ficara com a guarda de algumas caixas de fogos do seu amigo fogueteiro e... não perdeu tempo: começou a detonar os fogos, seguindo o cortejo e dando um clima de festa popular à passagem daquela comitiva, arrastando consigo a gurizada em festa.
            Em cada rosto ali havia um sorriso – digamos assim: escancarado – como a dizer em uma linguagem afônica de alívio e felicidade de todos: “Estamos de peito lavado!”. E ainda assim, com os estampidos dos fogos (e de algumas armas de fogo também) e os gritos constantes de “viva o Mestre Justiniano”, ainda assim o menino Alenor não se assustou, o que levou Mãe Zefa a comentar depois entre risadinhas de alívio e mofa que até chegou “a desconfiar de que aquele menino seria surdo-mudo”, pois “invés do menino de se assustar, pois num era que a criança fazia era de rir, cuma se sonhando com os anjos!”:
            E eu num me envergonho de dizer que pensei
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com os meus botões: essa criança num se cria! – dir-me-ia ela bem depois, já em seus últimos meses de vida e eu pequenino ainda, enquanto Alenor ouvia ao nosso lado, disfarçando que cortava sua unha deformada (resultado de suas peraltices de quando ainda criança, brincando com um martelo) do dedo indicador direito e com um riso de orgulho incontido a lhe repuxar os cantos da boca.
            Detonados por Chico Grande os últimos fogos de artifício, deu-se lugar a mais “viva o Mestre Justiniano” e a um coro retumbante por justiça entoado pela multidão, cujo som fazia eco na serra:
            – Justiça! Justiça! Justiça!
            E o eco:
            Atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça...
            – Justiça! Justiça! Justiça!
            Atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça...
            – Justiça! Justiça! Justiça!
            Atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça... atiça...
            E seguiu aquela caravana (depois conhecida como O II Levante Pela Justiça), tendo se juntado ao grupo Antônio Nestor, Arlindo Nobre, Pedro Abrantes Ferreira, Gumercindo Laranjeira e mais outras pessoas de destaque na região pela honradez, lisura e caráter exemplar.
            Alguns daqueles homens eram simpatizantes da Coluna Prestes (ou Coluna Miguel Costa) e até mesmo chegaram a engrossar suas fileiras quando O Cavaleiro da Esperançaentrou na província, vindo de Luís Gomes (RN) até chegar ao lugarejo de Várzea Comprida, em Pombal, na Pindaíba, no começo de fevereiro de 1926, e eles retornaram para seus lares com outra visão de mundo e
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de vida.
            E agora estava ali o recém-nascido Alenor, filho de Maria Cacheado – para sempre Maria da Glória – sendo conduzido para ser entregue ao pai que ninguém queria; ao pai que ninguém escolhera e possivelmente – ou certamente? – ninguém escolheria... mas os vieses da vida impuseram: e o que fazer?
            Às vezes – em um grande gesto – precisamos aceitar o mal para podermos modificá-lo! Isto mesmo: é preciso dar um passo atrás. Retroceder para avançar; retroceder para encontrar um melhor caminho – um atalho, talvez –, mas seguir sempre e sempre e sempre. E era o que o professor Justiniano Justus Dias estava fazendo: renunciando à guarda do seu primeiro neto – temporão, dir-se-ia – para que, pelo menos, um dos coronéis não continuasse impune e – quem sabe? – servisse de lição para outros coronéis e vítimas.
            Calar ante a injustiça, jamais!
            O grupo da Ordem dos Cavaleiros acelerou a marcha; queria – possivelmente – forçar a desistência da multidão que o seguia a pé até já entre o Bueiro de Ipueiras e a casa de Xandu, um elevado de onde se tinha uma visão geral da vila e de quase todo o vale. A cavalos o professor Justiniano, Horácius, Nobelino, Mãe Zefa com a criança na tipoia e os demais membros da Ordem obtiveram rapidamente uma grande vantagem de distância sobre os que iam a pé, o que daria ao professor e ao seu grupo considerável vantagem para chegarem à Casa de Varanda sem a inconveniente presença dos curiosos que insistiam em acompanhá-los.
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            Era mesmo um justo anseio da população querer seguir engrossando aquela comitiva e ver de perto a justiça ser feita; era mesmo um justo anseio daquelas pessoas testemunharem a justiça ser feita, já que não puderam elas mesmas fazê-la com as próprias mãos, pois como dissera Horácius antes: “A vingança é a justiça feita pela própria vítima! E aqui todos nós somos – de uma forma ou de outra – vítimas; e como vítimas haveremos de fazer a justiça que o Estado se omite de fazer. Façamo-la, pois, nós mesmos!” Era mesmo justo o esforço daqueles cavaleiros para se desvencilharem daquela multidão, pois – a partir dali – eles não queriam testemunhas dos seus atos, e tanto fizeram que os contemporâneos aos fatos (e são poucos e não mais tão lúcidos) ainda hoje guardam o mais profundo silêncio sobre o assunto; e as gerações que a esses fatos se seguiram de nada souberam ante tamanho silêncio, visto que por parte do coronel Manzoel o tema virou assunto proibido: severamente recomendado por este aos familiares “que nada viram ou ouviram”.
            A multidão já nem era mais vista pelos membros da Ordem dos Cavaleiros senão como uma massa informe e móvel; vagante; lenta; acinzentada pela distância, como algo do passado – apenas um registro memorial...
            O menino Alenor começou a se mexer além do que poderia ser normal. Mãe Zefa diminuiu a marcha do seu cavalo, tentou arrumar a criança na tipoia, ensaiou um monólogo com o menino “Tá muiado, meu filho?”... Os demais pararam e se viraram para trás e Nobelino perguntou:
            – Deve está com fome, não, Dona Zefa?
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            – Ou frio... recém nascido sente muito frio: sente frio de um nada. E já está muito frio para uma criança de um dia. – observou Firmino Guedes, um dos membros mais idosos (senão o mais idoso) daquela confraria.
            – É fome mesmo, Seu Firmino! Tá querendo comer até os panos. Vamos parar um tiquinho só, enquanto eu amamento ele. Depois que ele pegar o seio a gente segue devagarzinho, pra não perder tempo.
            A caravana parou por mais ou menos dois minutos, apenas o suficiente para que Mãe Zefa pusesse a criança aos seios e ela (a criança) lhe mamasse o providencial alimento, e assim, com a criança mamando, a caravana retomou a marcha rumo à Casa de Varanda.
            Já eram mais de 19:00h quando aquela caravana entreviu por entre a vegetação raquítica da caatinga primaveril uma claridade mortiça de candeeiros denunciando o pouco azeite de oiticica a queimar. No mês de outubro, a vegetação dali mais parecia ramais venosos na anatomia acinzentada do firmamento, mas agora exalava um forte cheiro de ipês e mulungus floridos soprados suavemente pela brisa tíbia do anoitecer sertanejo. E bem ali – não mais que seiscentos metros – estava a Casa de Varanda, possivelmente com o seu proprietário a dar ordens, a dona da casa a cuidar da dezena de filhos e a ensinar aos filhos menores seu “creio em deus pai”, sua “ave maria” e seu “pai nosso”, enquanto a varanda se mantinha repleta de capangas a dar ao coronel Manzoel uma agradável sensação de coragem e, assim, plena certeza de ser ele “o senhor de tudo e de todos”, até mesmo onde sua avara mão não alcançasse e sua cobiça não alçasse vista.
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            – Mãe Zefa! Queira ficar na retaguarda e deixa que a gente se distancie um pouco. Cuida da criança! Nossas vidas de nada valem sem essa criança sã e salva!
            – Melhor seria se Mãe Zefa aguardasse aqui, não, irmão Firmino? Pois é até melhor, só assim o menino come em paz. Quando abordarmos a casa, virá um de nós lhe avisar...
            – Que seja assim, irmão Arlindo Nobre! E vamos nós! – sussurrou Horácius para os demais. E partiram.
            Desta vez, somente o gado (bovino e ovino) que ruminava no terreiro da Casa de Varanda deu sinal de desconforto, os demais já esperavam a chegada do recém-nascido Alenor e, como era de prever, uma grande caravana, daí que àquela hora, à luz de lamparinas e candeias tocadas a azeite de oiticica e sebo de carneiro capado, a aproximação de uma considerável cavalgadura não abalou a quietude e o silêncio dos habitantes daquela casa, fato incomum, pois estavam sempre assustados “com a própria sombra”, mas se mantiveram calmos, ainda que apreensivos. Desta vez não se esconderam nos porões; até saíram – sabe-se lá movidos por curiosidade ou o que – de candeeiros nas mãos como a iluminar um ritual. Augustina ia à frente seguida de duas mulheres – uma, bem obesa ao ponto de ter dificuldades de andar; a outra, uma mulher franzina, de pouca carne, cabelos grisalhos e dispostos em uma longa trança – e em seguida a figura de um varão de bigode com feições de cera e quase uma dezena de crianças e adolescentes transbordando curiosidade. Augustina olhou para as duas mulheres que a ladeavam e com um suave sorriso no rosto em um misto de alegria, alívio, satis-
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fação ou o que fosse, mas com um incontido sorriso, disse:
            – Comadre Hosana?
            – Pode falar, comadre. ‘Tou ouvindo.
            – Se for menino, comadre, eu já tenho um nome.
            – Seja o que for, comadre, ele já traz em si mesmo um nome...
            A caravana já se encostava ao engradado da varanda, quando alguém da casa falou com voz trêmula:
            – Sejam bem vindos, senhores.
            Era Manzoel, com voz dócil como antes ninguém ouvira sair de sua boca, no alto de sua arrogância; arrogância que a partir dali virou sagacidade, arma que daí em diante ele soube usar muito bem em suas conquistas e negociações por benesses pessoais.
            – Boa noite, senhores! São bem vindos, e que a paz e a luz venham com os senhores, em forma de uma criança que, por sinal, não vejo a hora de tomar em meu colo com o amor e a dedicação que nem mesmo devoto aos que saíram do meu ventre. – disse Augustina, quase abafando a voz de Manzoel.
            Percebia-se um clima de euforia coletiva, ainda que contida, enquanto um dos cavaleiros sussurrou algo e voltou para a mata, gerando assim um misto de suspense e desconfiança:
            – O que está acontecendo, professor? Cadê a criança? Por que não se achegam? Por que estão voltando sem nada dizerem?
            Augustina foi porta-voz daquela gente assustada e de pé atrás, como quem, ao pisar na grama, ouve o guiso de uma serpente. Pessoas anestesiadas de incertezas.
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            Da parte dos membros da Ordem dos Cavaleiros nenhuma palavra além do “boa noite” em resposta às boas vindas iniciais, e não mais; estavam em silêncio e em silêncio – ao ouvirem que um dos seus voltava acompanhado de Mãe Zefa e da criança – se dispuseram em duas colunas de frente para a casa e por entre as duas colunas mãe Zefa passou com a criança no colo, chegando até o portão da varanda da casa, enquanto o cavaleiro que a fora buscar tomava lugar na retaguarda de uma das colunas.
            Do meio do mistério que a noite encerra, ouviu-se:
            – Irmãos! Tudo justo?
            Todos os cavaleiros responderam a uma só voz:
            – E perfeito.
            Em seguida, o professor Justus apeou-se de sua montaria, foi até Mãe Zefa e recebeu dela a criança, tomando-a no colo; arrumou os panos que agasalhavam o menino e subiu os três degraus que davam acesso à casa. Augustina se antecipou, estendendo os braços para receber a criança, mas o professor a ignorou e foi em direção a Manzoel, que havia recuado alguns passos, já quase entrando de costas na casa, quando o professor o alcançou:
            – Tu não o mereces...
            Vozes dos cavaleiros se fizeram ouvir:
            – Nem mais um passo, malfeitor! Apenas ouça e obedeça.
            Manzoel quedou-se imóvel; o professor continuou:
            – É o meu sangue que eu dou para que tu nunca mais faças o que, cobardemente, fizeste com a minha inocente filha. Não a criei para ti, malfeitor. Aqui, a criança é quem está sendo punida!... E todos nós (eu, minha família,
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meus irmãos, a população de toda região) é que estamos sendo punidos. Para ti, eis um presente que jamais terás igual. E tudo isto me é demasiado doído. Mas é o sacrifício a que me propus: este é o teu filho – o último a nascer e o último a ser gerado por ti em um ato de violência. Cria-o, Manzoel! E cria-o muito bem, para o teu bem! E nunca esqueça: antes e acima de tudo, é meu neto. O coronelismo, a partir deste instante, chega ao fim.
            O professor Justiniano Justus Dias entrega o neto ao estuprador da sua própria filha, e o delinquente desajeitadamente pega o filho no colo e procura ver a criança. Quer – nervosa e ansiosamente – descobrir o rosto do menino, como se procurasse um segredo; como se quisesse desvendar um mistério. Como se quisesse – com sofreguidão – ver o seu novo código de conduta.
            – Nekan, Ilustre Irmão Justus?
            Perguntou Adônis Adonai, um dos membros daquela confraria; homem de estatura acima da mediana, corpulento, muito corpulento, pescoço táureo, braços hercúleos, vestido com um balandrau preto, não mais que trinta e três anos de idade; voz troena e incisiva como lâmina de navalha.
            Outros repetiram por três vezes, quase que automaticamente:
            – Nekan! Nekan! Nekan!
            – Irmãos! Inefável é o nome, mas chamemos a isto de justiça; a justiça que é nekan, perdão, amor, ódio, abnegação, renúncia, tragédia, desgosto, brutalidade, humanismo, derrota, vitória, fracasso, glória... morrer e nascer... Meus Irmãos! Como um pelicano que rasga opróprio peito
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para alimentar os filhos, eu estou violentando minhas entranhas para que nenhum pai sofra o que tenho sofrido. E se for preciso para por fim às tiranias, terei a honra e glória de dar minha própria vida para tal. Eu entendo que, mais que a vingança e o castigo, vale o aprendizado; e a lição está dada, Irmãos!
            Filosofou o professor Justiniano Justus Dias, em voz solene, sob o frechal da porta principal da casa, na tentativa estrênua de conter a sede de vingança dos seus irmãos de confraria.
            Augustina se aproximou, com os braços estendidos, de Manzoel: queria ver o menino, pegá-lo no colo, sentir aquele pequenino corpo em seu corpo como se fosse parte de si mesma, como se tivesse saído do seu próprio ventre, aquecê-lo com o calor do seu corpo e afagá-lo com suas mãos de penitente e sentir – deflorando suas narinas – o cheiro de vida recém explodida naquele menino que há poucas horas viera ao mundo e agora estava diante de si no colo do seu marido sem jeito para segurar recém-nascido (Manzoel parecia segurar em seu colo uma carabina).
            O professor Justiniano Justus Dias se dirigiu à Augustina e lhe pediu que levasse as crianças para um cômodo da casa e que levasse também consigo as duas mulheres, conhecidas por Hosana e Hermínia. Em seguida, ordenou aos capangas do coronel Manzoel que deixassem as armas no chão do alpendre e fossem todos para o “curral das ovelhas”, que ficava a duas dezenas de metros, na parte da frente da casa, contíguo ao curral do gado vacum.
            Quando o professor Justiniano Justus Dias ordenou
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aos capangas que fossem para o “curral das ovelhas” um dos membros daquela confraria... e aqui quero fazer um parênteses: (nunca se soube ao certo quem, mas – atendendo à minha curiosidade pueril, em uma das raríssimas vezes que ele se dispôs a falar ainda que reticentemente sobre o assunto – Horácius me disse que foi Nobelino, porém “não podia afirmar, pois a noite era demasiado escura”), aceitando como verdadeira a afirmação de Horácius, quando o professor Justiniano Justus Dias ordenou aos capangas que fossem para o “curral das ovelhas” um dos membros daquela confraria, de nome Nobelino, adendou:
            – Lugar mais apropriado para cabras não há.
            Do que naquela noite se seguiu a isto na Casa de Varanda não se tem conhecimento, senão especulações; e quando eu perguntava para Horácius ou Maria Cacheado sobre o que houve na Casa de Varanda naquela noite, ambos sempre me respondiam como se ensaiado fosse:
            – É sempre legítima a violência contra a violência insuportável.
            Ou:
            – Diz-se de um rio que ele é violento, mas nada se diz das margens que o oprimem.

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CAPÍTULO XIV

            Há uma lacuna de pouquíssimos registros das atividades do coronel Manzoel Gonçalo Alves desde o dia 10 de abril de 1929 até o ano de 1946, quando ele ressurge no cenário político local para tomar posse definitivamente do latifúndio Lastro, senão de algumas detenções e processos por homicídios, cujos processos ventilam a boca miúda que o professor Justiniano, Pedro Abrantes e a Ordem dos Cavaleiros estavam por trás, pleiteando e insistindo estes para que autoridades federais cobrassem das autoridades locais as devidas e legais providências para que o coronel não continuasse impune – o que nos leva a entender por que nenhum coronel chegou a ser iniciado nos segredos e mistérios da Ordem dos Cavaleiros.
            Hoje, muitas das vítimas e algozes já se foram, levando para o pó eterno os segredos e mistérios de então; os poucos que ainda sobrevivem enterraram em si mesmos os segredos, mistérios e confissões daqueles tempos do rex gratia dei; da injustiça como virtude, da servidão como privilégio para o servil e do banditismo premiado.
            – Estrambóticos tempos! – dir-me-ia o professor Antônio Nestor Sarmento, na barbearia de Chico Grande, no mercado público de Lastro, em janeiro de 1967, quando eu tentava tirar dele algumas confissões sobre o caso de Maria da Glória (Maria Cacheado), o que provocou um sentido silêncio seguido da intervenção de Chico Grande, que no momento fazia a barba de Expedito Nobre:
            – Uma loa ao criminoso é a potencialização da dor da vítima e dos seus.
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            Como prosseguimento desta conversa, Expedito Nobre – com o rosto semicoberto de espuma de barbear – tentou se virar na cadeira de barbearia e Chico Grande suspendeu a navalha que a essa altura deslizava da ponta do queixo até o pescoço de Expedito, fazendo aí peripécias sobre o pomo de adão da garganta de Expedito Nobre quando este tentou intervir na conversa, fazendo a seguinte observação:
            – Perguntavam, vez por outra, ao professor Justiniano e à Dona Floresbela, por que eles não tinham no falar o sotaque “o chiado dos cariocas” e recifenses, pois os aparentados, afilhados, e todos os demais do curral eleitoral e protegidos dos coronéis que, por intervenção destes na troca de votos por empregos e outras benesses para si e para os seus iam para o Rio de Janeiro, então capital da República, chegavam esnobando, ao que Dona Floresbela explicava:
            – A origem do sotaque carioca e recifense está no fato de que os funcionários públicos, parentes e protegidos dos coronéis, ao receberem o primeiro ordenado correm primeiro para fazer um par de dentaduras, pois a população é quase toda banguela, e uma dentadura é um dos mais ambicionados status sociais.
            – Mas vocês não falam chiando...
            Interrompia sempre alguém, com incontida curiosidade.
            – Nossos dentes são naturais. – respondia o professor e Dona Floresbela, com singeleza, e acrescentavam:
            – O grande contingente de migrantes ao chegar à capital federal extrai os dentescariados, se é que algum ain-
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da resta, e, sem ao menos esperar que as gengivas desinchem, faz uma dentadura, que não demora a ficar folgada, quase caindo, o que os obriga a falar sem articular as mandíbulas, e assim as palavras lhes saem pelas frestas das dentaduras postiças, provocando o tal sotaque carioca.
            Dona Floresbela de Albuquerque Lima e Bragança Dias faleceu em 31 de agosto de 1944, uma quinta-feira, quando já findava o dia, e com o crepúsculo e o grito dilacerante de dor de Mitra ecoando pela casa (agora, plena de netos, dos quais quatro eram filhos de Maria Cacheado: Nelson, Santana, Mac Dowell e Antônio – este, assassinado aos vinte e um anos de idade) todos de casa e da vizinhança correram ao ouvirem o grito desesperado de Mitra:
            – Mamãe está morrendo! Papai! Mamãe está morrendo!
            O professor Justiniano Justus Dias correu, tomou sua companheira nos braços, tentou reanimá-la... Em vão! O professor sussurrou (um quase-gemido):
            – Esta, querida Flores, é a data de minha morte! Amar-te-ei pela eternidade.
            Um profundo silêncio foi quebrado por um choro coletivo e a voz solitária de uma vizinha:
            – Morreu como um passarinho!
            Depois dos funerais de Dona Floresbela o professor Justiniano não mais foi visto senão em sua casa, esporadicamente.
            Passou-se desde então quarenta e sete dias, mais exatamente em 17 de outubro de 1944, uma terça-feira, já por volta das oito horas da manhã – quando todos estranhavam que “àquelas horas” o professor ainda não se levan
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tara, já que costumava repetir que “quem não se levanta com o Sol não goza o dia” – quando Mac Dowell resolveu chamar o avô:
            – Vovô Justus?!
            Insistiu umas quatro ou cinco vezes e... nada! Resolveu gritar e esmurrar a porta. Todos da casa já estavam em polvorosa.
            Nada!
            – Vovô Justus?!
            Nada!
            Forçou a porta, agora auxiliado pelos demais: o professor Justiniano Justus Dias estava morto!
            ... e a notícia correu.
            Manzoel logo soube e se sentiu vivo outra vez. Sem cerimônia, liberou sua cobiça sobre o Lastro e foi ao subterfúgio para concretizar sua cobiça maior.
            Com a morte inesperada do professor Justiniano Justus Dias, Maria Cacheado guardou todos os seus livros com o propósito de presenteá-los ao primeiro neto, e no meio desses livros havia alguns livros (ou “rituais”) da Ordem dos Cavaleiros, um livro de Kepler – Mehr Freude – uma gramática de Latim... um compêndio de Da Revolução das Esferas Celestes... e um manuscrito em papel amarelado, escrito com pena de tinteiro, tinta azul já se dissipando no papel, cuja caligrafia – segundo Maria Cacheado – era do seu pai, o professor Justiniano Justus Dias, e se tratava de um ensaio, no qual o professor Justiniano Justus Dias abordava de forma acadêmica a origem das fortunas: “A HISTÓRIA DAS FORTUNAS NADA MAIS É DO QUE A BIOGRAFIA DE LADRÕES”.
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            Na introdução da monografia duas citações me chamaram marcadamente a atenção:
Obsequium amicos, ueritas odium parit. (Terêncio)
“O favor gera amigos, a verdade, ódio.”

Numquam periculum sine periculo uincemus. (Publicio Siro)
“Nunca vencemos o perigo sem perigo.”
e mais ainda me chamou a atenção um rascunho de uma música que – segundo Maria Cacheado – o seu pai começou a compor logo que sua mãe morreu, e segue fac-símile no final deste capítulo.

            Regina – filha de Horácius – ficara órfã de mãe e fora morar (já fazia cinco anos) na casa do seu padrinho e tio duas vezes: de sangue e pela Ordem dos Cavaleiros, Pedro Abrantes Ferreira, inimigo figadal do coronel Manzoel, cujos membros tinham o compromisso de assumirem os “sobrinhos” em caso de orfandade ou qualquer impedimento dos cuidados paternos.
            Alenor casou-se com Regina em 20 de janeiro de 1950, uma sexta-feira, por ocasião das festividades do padroeiro do lugar – paradoxalmente as mesmas festividades em que há vinte e um anos sua mãe, a pequena cacheada Maria da Glória Dias e Bragança, fora abusada, violentada, estuprada, seviciada na cama da própria filha mais velha do coronel Manzoel, dois anos mais velha do que sua inocente e indefensa vítima...
            Com dois anos da morte do professor Justiniano Justus Dias, o coronelManzoel Gonçalo Alves finalmente tri
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unfa sobre José Antunes de Oliveira, herdeiro do Cel. André Avelino Marques da Silva Guimarães, e se muda para a casa-grande de Lastro, deixando Bonifácio Trigueiro morando na casa da fazenda Misericórdia.
            O coronel Manzoel punha filhas de moradores de suas terras para lhe dar cafuné, enquanto ele esperava pela janta, sentado no alpendre da casa-grande, em sua cadeira de balanço, cujas crianças-adolescentes ele mandava que ficassem de pé por trás da sua cadeira e com as mãos em sua cabeça enquanto ele levava suas mãos para trás de modo a alcançar as azeitonas das crianças, geralmente depois de passar a tarde na mercearia de um parente seu de nome Luiz Abrantes de Sá, também conhecido como Luiz Sá (como dissera o outro Luiz Abrantes assassinado no começo dos anos de 1920 por Manzoel exatamente por afirmar que seu primo Manzoel “Só sabe falar da vida alheia quando não está no submundo do crime”). Quando eu vi aquilo, gritei... Escandalizei... Esperneei... Ele rapidamente me chamou: “Vem cá, menino!” ... Corri e fui contar para Alenor. Este me pediu silêncio. Não calei!
            – Manzoel não tem moradores nem meeiros e nem agregados, mas sim lígios (servos que, por receberem terras do rei, ficavam obrigados a servi-lo em todos os momentos, na paz e na guerra), com a diferença de que os lígios de Manzoel só recebem terra quando morrem (de morte matada ou de morte morrida, como é o caso de Apolinário, que foi assassinado por ele no oitão da bolandeira com um tiro certeiro e traiçoeiro de parabellum e não deixou que dessem ao desventurado um lugar no cemitério, ten
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do Arsênio Abrantes e Edgar Bezerra (condoídos com as tragédias para a família da indefensa vítima e em um elevado gesto de humanismo) enterrado o defunto debaixo do juazeiro do Açude da Frente, lá, quase nos fundos da casa de Alenor, perto da vazante de Biró.
            Dir-me-ia este quase desabafo Sinval Becker, um dos quatro mais próximos amigos de Alenor, desde sua adolescência, sendo Antônio Sarmento (pai de Carlos Augusto Carrá e Luís), Antônio de Hermínia e seu irmão Elandro (que o apelidou de Boião desde crianças, devido a sua compleição e força físicas) seus outros três mais próximos amigos.
            Sinval Becker tem cicatrizes de tiros na testa e Alenor tem uma atrás da orelha direita, o que Manoel Pereira (vaqueiro de Manzoel) como segredando um crime me disse que tais cicatrizes são frutos de um tiroteio em que os dois se envolveram quando Alenor completou dezoito anos e os dois foram comemorar em uma festa lá para as bandas das terras potiguaras, na região dos latifúndios dos pais de Sinval.
            – Os dois são, de fato, bons meninos, mas naquela idade todo mundo tem o sangue quente mesmo. Você sabe como é... – concluiu Manoel Pereira, me oferecendo o cavalo para eu dar uma volta e em troca lhe dar umas rapaduras.
            Alenor é o único filho do coronel Manzoel que morou na casa-grande; o único que administrou todos os bens do coronel Manzoel com Manzoel e Augustina em vida; o único que teve descendente seu nascido na casa-grande; a primeira fotografia em cores feita em toda a regi-
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ão é dele, na casa-grande; o único dos filhos do coronel Manzoel que não sofreu deste nem uma chibatada ou sequer um piparote.
***

            Agora, o último que se foi!


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CAPÍTULO XV

                – Pois é, Regina, exatamente como eu te dizia: é o sonho a força propulsora da criatividade e gerador de esperanças, cujas esperanças – por sua vez – passam a ser a força mantenedora da vida.
            Com a provocação anterior de Maria Cacheado (“Como é, Regina? ‘Tá usando rapé, agora!?”) Regina “fechou a cara”, como se diz, e nada mais respondeu, deixando Maria Cacheado literalmente falando sozinha, aproveitando para isto a chegada de Bieta e sua filha Toinha de Bieta, pois Toinha de Bieta seria minha primeira professora e precisavam acertar alguns detalhes, como preços de mensalidade, material escolar, horário...
            O meu caminho para a minha primeira escola (a casa de Toinha de Bieta) me conduzia por lugares tentadores, como a Bolandeira, onde morava o alemão Henrique do Cibazol, que era médico, o indiano Miruera, que era um filósofo... Gordim Padeiro, que contava histórias (ou estórias?) fantásticas de competições entre Estados Unidos e União Soviética, em cujas histórias (estórias?) a União Soviética saía sempre ganhando; e lembro-me vivamente de uma dessas lendas: “Os americanos fizeram um fio mais fino do que um fio de cabelo e mandaram para os soviéticos, desafiando-os a fazerem um mais delgado; os soviéticos brocaram o fio e fizeram rosca interna e mandaram de volta para os americanos”... Chico de Zefa é ex-combatente na 2ª Guerra Mundial e mestre flandreiro, com quem eu aprendi a arte na flandreria; Zé Amaro era o dono da fábrica de queijos e participara da “Intentona Comunis-
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ta” de 1935, em Natal (RN), com quem aprendi os segredos da queijaria; Xandu e Benedito da Rabeca nasceram no período da escravatura (filhos do “ventre livre”), sendo que aprendi tocar rabeca com um ex-escravo e fazer fubá de milho torrado com uma filha de escravos! Severino Brito era presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Sousa e se escondeu na casa do meu pai após o golpe militar de 1964; Dr. Sabino – agrimensor – foi preso político de Vargas... Sequer sabem quem eram esses homens, e foi com eles que eu convivi... e não como criança, mas sim como adulto precoce – como gente grande que eu queria ser, pois um dia, sob o teto acinzentado da bolandeira de Lastro antigo, Miruera me dissera com sua fala mansa, lenta, quase ritmada e de vogais ausentes:
            – Se você viver pra você mesmo, você será do teu tamanho; se viver pra tua família, será do tamanho de tua família; se viver pra tua comunidade, será do tamanho de tua comunidade, mas se você viver para o mundo, você será do tamanho do mundo... Bem grandão assim!
            E ao dizer “bem grandão assim”, Miruera abriu seus braços magérrimos de faquir hindu como a querer mensurar o infinito. Como a querer abraçar o mundo todo.
            No sentido laico, fui um explorador do conhecimento daquelas pessoas, muitas vezes em troca de comida... Aqueles homens eram pessoas de nível tão elevado que foram se refugiar em Lastro, pois eram perseguidos internacionalmente, onde viveram-morreram no anonimato.
            Maria Cacheado prendeu sua longa saia de cambraia florida com estampas em flor de maracujá entre as
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pernas e se sentou ao meu lado, no chão forrado com uma esteira de palhas de carnaúba, e continuou uma história que ela havia iniciado contar-me na última vez que nos viera visitar, com ares de confissões:
            – A história das fortunas nada mais é do que a biografia de ladrões. Eu sou apenas uma beduína errante no deserto gélido do egoísmo humano. Os anos deixam na gente um rastro grandioso de intolerância com as futilidades e hipocrisias. Distribuí aleatoriamente – e outras ordenada e propositalmente – fermatas e coloraturas nas escalas de minha vida. E a vida o que é? Eu direi: contagem regressiva onde o zero é acidental. Às crianças e adolescentes substituíram o Boletim Escolar pelo boletim de ocorrência; não substitua (nunca!) um pelo outro, mas se for por uma justa causa preencha os dois. Dois chinelos do mesmo pé não formarão (jamais!) um par de chinelos. Cuidado com as palavras, pois eu entendo o que ouço e não o que você pensa ou “quer dizer”. Apela-se para a ignorância ou simplesmente se apela. Se, caída, eu não puder me levantar, rastejarei como uma serpente, mas jamais cairei de quatro como um cordeiro, pois há que se seguir ainda que sangrando. Não há cativeiro quando se tem as chaves de todos os cadeados, e poder fazer o que é proibido é ser poderoso duas vezes. Lembre-se sempre disto. Eu nasci com o não da vida como afago, mas nunca precisei mentir para viver ou me safar de quaisquer responsabilidades; ao contrário, necessito organicamente da verdade para afrontar, chocar e desafiar os incautos da vida. Somente os idiotas não trazem em si um D. Quixote insone.
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            Com a saída de Bieta e sua filha Toinha de Bieta minha mãe se aproximou de mim e minha avó e num tom meio recriminatório disse:
            – Dona Maria Cacheado! Isso não são histórias que se conte para uma criança!
            Em seguida, minha mãe voltou para a sala onde deixara suas visitas, e Maria Cacheado continuou indiferentemente me contando sua história recheada de observações.
            – Até você crescer, este é um segredo nosso. Somente de nós dois, entendeu? Só nosso. Depois, conte para o mundo, para que nunca se repita. Nun-ca = NUNCA!!!
            Enquanto Maria Cacheado me contava suas histórias e travávamos nossos desafios em versos de improviso, minha mãe – à meia voz – conversava com suas amigas:
            – Ela ficou meio assim desde que o Manzoel mexeu com ela. – disse minha mãe para suas amigas, apontando com o dedo indicador direito para a própria cabeça e fazendo círculos em volta da orelha.
            – Quem foi que mexeu com a minha‘vó?
            – Nada não, Chiquilito! Manzoel mexeu no cachimbo de tua avó... O cachimbo que ela traz amarrado na barra da saia.
            – E por que ele mexeu no cachimbo de minha’vó
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            Fui eu o cúmplice da alegria e das loucuras (Dulce est desipere in loco!) de Maria Cacheado em boa parte de sua existência; e assistente da sua agonia em seus últimos instantes.
            Como também vi diariamente o coronel Manzoel em seus últimos dois anos de vida atolado em suas fezes de entorpecido alzheimerniano e diabético, entregue aos cuidados generosos de Cleonice e Renato e esquecido até mesmo pelos familiares; senão quando na espreita de sua morte para a consumação do apetitoso inventário dos seus bens materiais que ainda restavam, é que – esporadicamente – aparecia algum parente.
 
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            Prometi-te que minha vida não teria sentido se não sacrificá-la (se preciso fosse – e talvez o seja) por um mundo de justiça para todos... Depois – ainda mesmo em minha adolescência – eu te disse que servidão jamais! E que eu buscaria as armas para esta grande luta desigual nos livros... e se não fossem suficientes, semearia alvoradas com fuzis e as palavras incendiárias que ao teu lado exercitei desde cedo...
            Eu não tenho ídolos e tampouco heróis, mas vez por outra eu ouço a tua voz – hoje, só minha!
            Teus erros fizeram mal somente a ti.
            Outras frentes me esperam: eu continuarei na luta SEMPRE!
            Na hora da chamada eu responderei por ti:
            – Antenor!
            – Presente!


            Nota:
            O texto supra foi tudo que eu consegui pensar, falar e escrever no dia 18 de novembro de 2012, um domingo, quando eu recebi a confirmação da morte do meu pai e eu me encontrava a milhares de quilômetros de distância e impedido de vê-lo, pois sou “foragido” – não da justiça – do judiciário brasileiro, que continua “podre, terrivelmente podre!” como já dizia O Cavaleiro da Esperança Carlos Prestes, em 1935.

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OPINIÕES:

                Camarada Antenor!
                Na minha forma de ver as coisas, a grande Mãe Rússia deu como herança ao mundo dois tipos de filhos: os de sangue pátrio e os de sangue ideológico; qual dos dois é o mais legítimo? Penso que seja como ocorre com as famílias: não escolhemos nossos familiares, nos são impostos e teremos sorte se nos dermos bem com eles; já aqueles parentes que temos por consideração são uma escolha nossa, e normalmente suplantam nossos relacionamentos consanguíneos. Então, respondendo a minha própria pergunta, qual dos dois é o mais legítimo? O filho de sangue ideológico! Você, meu grande amigo, está entre os melhores frutos de sangue ideológico que essa mãe sofrida já produziu; você é o que eu chamo de POETA DO FRONT! Um guerreiro (ou guerrilheiro?) humanista e altruísta prático, um homem de ação disposto a lutar pela felicidade dos seres humanos que merecem essa felicidade. Não é qualquer um que põe o bem-estar, o conforto e a felicidade dos outros no lugar da própria! Você é o oposto do egoísmo, do comodismo, do conformismo e de outros tantos “ismos” que produzem o caos social em que vivemos, por isso os sistemas o vêem como um arauto da desordem e da destruição, um perigo que deve ser eliminado!
                Eu o vejo como um arauto da real justiça e da equidade! O julgam com os únicos parâmetros que conhecem e sentem seu “mundinho sujo” ameaçado, temem a revolução, a aniquilação dos sistemas que mantém a humanidade cativa! Como a Fênix, a única forma das coisas mudarem é renascer das próprias cinzas, assim, a revolução, a luta armada é inevitável se queremos mudanças reais, se queremos um mundo novo! Sempre na história as reais mudanças só se deram por esse meio, e está na hora de aprender com o passado; está na hora de olhar para trás e aprender as lições deixadas escritas com sangue nas suadas páginas da história pelos POETAS DO FRONT!
                Precisamos de uma segunda Renascença e de um segundo Iluminismo, mas não há renascimento sem destruição! Você tenta nos ensinar essas lições há muito esquecidas... Sei que sua verdadeira famí-
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lia está composta por seus irmãos de armas, e mesmo não sendo valoroso e altruísta como você, te considero um irmão (ainda que você não me considere, pois uma coisa não depende da outra), e, considerando tudo o que eu escrevi, acho que isso diz muito sobre o apreço e admiração que tenho por você! Raras vezes na vida, algumas amizades transcendem o tempo e a convivência, criando laços fortes, além do tempo e do espaço! Não sei onde está e nem o que está fazendo, mas estamos juntos pelos ideais e pelo coração! Desejo-lhe sorte na luta, pois capacidade e fibra moral para alcançar a vitória você já tem! UN GRAN SALUDO A TODOS LOS POETAS DEL FRONT, QUE COMO TU, CAMARADA, SON SUBVERSIVOS HASTA LA ÚLTIMA GOTA DE SUDOR Y SANGRE!!!
Jair da Silva Júnior. – UNEMAT.

Oi, Antenor!
                Li o depoimento as torres gêmeas e seu poema.
                Quando escrevi o meu foi na intenção de expor na UNESP o poema, se assim o posso chamar, foi escrito entre duas garrafas de coca-cola, com papel celofane vermelho saindo por buracos que simulavam janelas.
                O texto foi distribuído conforme o paralelo, metade em cada garrafa. Ao final, aos pés da garrafa eu coloquei o seguinte fecho: Quanto aos E.U.A. nem vale a pena comentar e eu não tomo coca-cola. Fiz o trabalho justamente para questionar o outro lado, o revide da violência.
                É repugnante o que estão fazendo com a África, como no exemplo de Ruanda. E o pior é que não há mídia que divulgue, nem pessoas que se questionem e compreendam essa política nojenta de dominação.
                Gostaria que você entrasse no outro blog e lesse Pinga com Açúcar.
Obrigada,
Cássia Regina.

Acorda, Rogério...
Você não conhece este velho guerreiro, que já ousei chamá-lo de com-
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panheiro.
Nem sei se mereço tal crédito!
Antenor! Agradeço-te pela mensagem a mim enviada esta semana.
Continue postando, só assim teremos notícias um do outro.
Saudade a gente sempre tem das pessoas que nos são gratas... E você amigo, por onde semeia paz, compreensão, confiança, amizade e segurança naquilo que acreditamos. Mas, isso não te deixa isento dos olhares invejosos lançados por alguns reacionários que se acham donos do mundo. Continue assim, do jeito que sempre foste e que és.
Saudações,
Santino Silva

            Sem dúvidas, Dilaceradamente é um dos meus preferidos! Chamou muito minha atenção desde que eu o li. Gosto muito!
                Graças ao Antenor (ou Tio Antenor, como costumo chamar) eu aprendi muitas coisas quando ainda criança! Tenho muitas lembranças, ótimas, a princípio! Agradeço muito a ele por ter feito parte dessa tão importante fase da minha vida!
Obrigada, Antenor!
Abraços!
Darliane.

A vida sempre nos prega peças...
Cabe a nós desfrutarmos do melhor que ela nos dá...
Seja sempre essa pessoa que és, pois sempre contarás comigo...
Adoro vc... E suas poesias...
Bjs
Daiane Ferreira.

Gostei muito, muito. Excelente.
Pelo que li, você também gosta do J.G de Araújo Jorge.
Tenho uma Comunidade dele (pode encontrá-la nas minhas comunidades). Gostaria de tê-lo participando, escrevendo.
Coloquei seu Blog nos meus favoritos.
Um abraço,
Jade Suassuna.
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F. Antenor Gonsalves
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Caro amigo escritor.
Israelândia, GO., 24 de Novembro de 2007. Bom, realmente seus livros sãos um esplendor. Uma satisfação de estar aqui e uma responsabilidade imensa de comentar este livro.
Gostei muito dele realmente; é uma alegria de ver página por página, Aprendi muito sobre a vida. Agora tenho que mostrar o que li aqui e fazer lá fora.
Sucesso! Falou...
Lucas.

Caro Antenor!!!
Gostei muito do teu trabalho; está maravilhoso. O sistema educacional precisa de pessoas como você.
Samya Karla.


La necesidad de las necesidades de una nación es la justicia ¿o una escuela donde se forjen los ciudadanos que harán la JUSTICIA?
  
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O CACHIMBO DE MINHA’VÓ ou: O ÚLTIMO CORONEL
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Moeda russa datada de 1783, com as iniciais em russo de Catherine II (a Grande), feita em cobre, no valor de 5 копеек копейка – genitivo plural, (kopeykas – 1 Copeisca equivale a 1 centavo do Rublo russo – рублей). Esta moeda pesa 46.5 gramas e mede aproximadamente 41.5 milímetros de diâmetro. Em uma das faces da moeda vê-se a coroa, as iniciais da imperatriz (ou czarina) EA – Ekaterine Alekseyevna e o ano da cunhagem.
Это очень хороший русский 1783EM Екатерины II (Великой) большая медная 5 копеек каталог C # в 59,3 Краузе. Монета весит 46,31 грамма Это и меры Примерно 41,5 миллиметров в диаметре. Исключительные подробно остается с некоторыми хорошими обратном и лицевой поверхности и медянки патиной.
EPÍLOGO

            Екатерина II Великая (Catarina II – A Grande) imperatriz da Rússia, nasceu a 2 de maio de 1729, em Stettin, na Alemanha (Pomerânia, hoje território da Polônia, um porto do mar Báltico), filha do duque de Anhalt-Zerbst, foi batizada com o nome de Sofia Augusta Frederica de Anhalt-Zerbst, e morreu a 17 de novembro de 1796 – muitos autores registram o dia 16, mas neste dia ela teve apenas um AVC, ficando em coma até o início da noite do dia seguinte.
            Logo aos 14 anos, foi encaminhada para o casamento com o grão-duque Pedro, herdeiro do trono russo. Chegou à Rússia em 1744 e se casou no ano seguinte. Na época, quem reinava era a imperatriz Elisabeth. Quando a imperatriz morreu, em 1762, o marido de Catarina assumiu o trono como Pedro III. Violento e alcoólatra, foi odiado pelos súditos, ao passo que Catarina tinha o apoio da corte e do povo.
 
Retrato e assinatura da czarina Catarina II.
            Poucos meses depois da posse, um golpe de estado obrigou Pedro III a abdicar e, oito dias depois, ele foi assassinado. Embora suspeita de arquitetar a morte do marido e do czar Ivan VI, Catarina foi coroada imperatriz.
            Durante seu reinado, que durou 34 anos, a Rússia conquistou parte da Polônia em 1764, ganhou territórios da Turquia em 1774 e anexou o oeste da Ucrânia em 1792. Entusiasmada com toda a sua conquista e expansão do império russo, Catarina II manda – em 1781 – uma missão para o Brasil, com o objetivo de levantar informações e fazer contatos com o fito de, em seguida, mandar uma esquadra para ocupação do litoral brasileiro, empreitada influenciada por franceses e entusiasmada por suas conquistas e pela ocupação do território brasileiro por estes, com quem dividiria as novas terras conquistadas, o que (à época) era demais interessante para a França, pois com uma “sócia” facilitaria a colonização, o que não estava sendo fácil devido à resistência dos povos originários.
            Comandando essa expedição, veio o russo de nome Andrey Limixenco (Андреы лимищенко), bisavô de Horácius, que fundou a fazenda Lastro no ano de 1783, com o lastro que trouxe quando veio da Rússia, a serviço da czarina Екатерина II Великая (Catarina II – A Grande) imperatriz de todas as Rússias. Depois, seus herdeiros venderam partes de suas terras para as famílias Vieira, Dias e Guedes, e estes para Avelino, ficando apenas com as terras do Capão de Dentro, mais tarde denominadas Russo Velho em alusão a este imigrante que, pela dificuldade do idioma e da cultura, terminou seus dias isolado. Com sua morte, os herdeiros foram perseguidos pelos proprietários vizinhos por mais de dois séculos, sendo que, em contrapartida à denominação daquelas terras de Russo Velhos, os proprietários vizinhos – em uma das raríssimas vezes – se uniram para contrapor uma fazenda com o nome de Roça Nona (Roça em contraposição a Russo, e Nova em contraposição a Velho). Ainda recentemente eu intervi quando um remanescente de coronel andou forçando a “compra” do Russo Velho.
            A imperatriz fundou escolas, desenvolveu as comunicações e desapropriou as terras do clero, que na época possuía um terço do total de propriedades e servos da Rússia. Correspondeu-se com filósofos, principalmente com os enciclopedistas franceses Diderot e Voltaire, e procura governar segundo os ideais destes e de Locke e Montesquieu; e sob a influência do pensamento deles manda escrever uma constituição de cunho iluminista:
            “Não privar o povo de sua liberdade natural, e sim corrigir seus atos, com o objetivo de atingir o bem supremo. Portanto, a forma de governo que melhor atinge essa finalidade e ao mesmo tempo impõe menos restrições que outras à liberdade natural é a que coincide com a visão e os propósitos de criaturas racionais e alcança o fim sobre o qual devemos manter uma vigilância constante no que diz respeito às regulamentações da política civil.”.
            Fundou a Universidade de Moscou, foi tolerante com todas as seitas religiosas e inibiu a tortura e a pena de morte. Morreu em São Petersburgo, então capital da Rússia. O filho Paulo I sucedeu-lhe no trono, e seu reinado durou apenas cinco anos, quando foi assassinado em 1801. Foi sucedido pelo neto de Catarina II, Alexandre I, que era o czar durante a malograda campanha de Napoleão Bonaparte na Rússia.
Bibliografia:
Catarina II em Memoirs, reflexão e cartas da imperatriz descobertas depois de sua morte em 1796, e publicadas somente em 1859, em edição francesa;
Fonvizin, M. A.: Works and letters, volume 2, Irkutsk: 1982, pág. 123;
Chevalier D’Éon, C. 1756;
barão de Breteuil, diplomata francês na Rússia;
Henri Troyat, Catherine the Great, Aidan Ellis, 1993;
Documents of Catherine the Great, tradução de W.F. Reddaway, Cambridge University Press, 1931;
Aleksandr Nikoláievitch Radchev, escritor russo, 1790;
Rounding, p. 502;
APÊNDICE
Província da Parahiba
            Fundado em 1783, o povoado de Lastro passou a município por força da Lei Estadual número 2040, de 17 de junho de 1963, e a instalação do município se deu em 31 de agosto do mesmo ano. A divisão territorial só se deu a 31 de julho de 1967. Curiosamente, apesar de tão pequena a população, o município tem cinco cemitérios – três inativos, sendo que dois são murados com pedras, localizados no Serrote do Cruzeiro. Há outro cemitério em uma caverna, além do cemitério atual, localizado na entrada da cidade, no sentido de quem vai de Sousa para Lastro... e, no início da década de 1960, quando faziam reformas na casa-grande, por ocasião das preparações para as festas das bodas de ouro (17 de dezembro de 1961, um domingo, já que se casara em 17 de dezembro de 1911, também um domingo) do coronel Manoel Gonçalves, mais precisamente em sua capela, à margem esquerda da capela central (de São Sebastião), foram aí encontradas duas urnas – uma contendo ossos humanos e outra contendo jóias, objetos de ouro e prata e utensílios...
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ROÇA NOVA X RUSSO VELHO
Avô materno do autor. 
            O bisavô de Horácius fundou a fazenda Lastro com o lastro que trouxe quando veio da Rússia, a serviço da czarina Екатерина II Великая (Catarina II – A Grande) imperatriz de todas as Rússias. Depois, seus herdeiros venderam partes de suas terras para as famílias Vieira, Dias e Guedes, e estes para Avelino, ficando apenas com as terras do Capão de Dentro, mais tarde denominadas Russo Velho em alusão a este imigrante russo de nome Andrey Limixenco (Андреы лимищенко, bisavô de Horácius), que pela dificuldade do idioma e da cultura terminou seus dias isolado. Horácius trouxe Miruera (indiano) e Henrique do Cibazol (alemão) os quais moraram pelo restante dos seus dias sob a Bolandeira.

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O CACHIMBO DE MINHA’VÓ ou: O ÚLTIMO CORONEL
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APÊNDICE
Província da Parahyba


Capital da Parahyba do Norte em 1925, ainda denominada Parahyba.

            Fundado em 1783, o povoado de Lastro passou a município por força da Lei Estadual número 2040, de 17 de junho de 1963, e a instalação do município se deu em 31 de agosto do mesmo ano. A divisão territorial só se deu a 31 de julho de 1967. Curiosamente, apesar de tão peque-
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na a população, o município tem cinco cemitérios – três inativos, sendo que dois são murados com pedras, localizados no Serrote do Cruzeiro. Há outro cemitério em uma caverna, além do cemitério atual, localizado na entrada da cidade, no sentido de quem vai de Sousa para Lastro... e, no início da década de 1960, quando faziam reformas na casa-grande, por ocasião das preparações para as festas das bodas de ouro (17 de dezembro de 1961, um domingo, já que se casara em 17 de dezembro de 1911, também um domingo) do coronel Manoel Gonçalves, mais precisamente em sua capela, à margem esquerda da capela central (de São Sebastião), foram aí encontradas duas urnas – uma contendo ossos humanos e outra contendo joias, objetos de ouro e prata e utensílios...

ROÇA NOVA X RUSSO VELHO

            O bisavô de Horácius fundou a fazenda Lastro com o lastro que trouxe quando veio da Rússia, a serviço da czarina Екатерина II Великая (Catarina II – A Grande) imperatriz de todas as Rússias. Depois, seus herdeiros venderam partes de suas terras para as famílias Vieira, Dias e Guedes, e estes para Avelino, ficando apenas com as terras do Capão de Dentro, mais tarde denominadas Russo Velho em alusão a este imigrante russo de nome Andrey Limixenco (Андреы лимищенко, bisavô de Horácius), que pela dificuldade do idioma e da cultura terminou seus dias isolado. Horácius trouxe Miruera (filósofo indiano) e Henrique do Cibazol (médico alemão), os quais moraram pelo restante dos seus dias sob a Bolandeira.
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Primeiras Invasões
(Fonte de pesquisa: Cabido de Olinda).

            Corsários, piratas e países europeus começaram a extrair o pau-brasil (brasil significa da cor da brasa), árvore abundante no Brasil colônia, em especial para a extração de um pigmento usado para tingir tecidos. Esses invasores eram em sua maioria franceses, e logo que chegaram ao Brasil fizeram amizades com os aborígenes, estabelecendo entre eles uma relação comercial conhecida como “escambo”, na qual o trabalho indígena era trocado por alguma manufatura sem valor.
            Os portugueses, preocupados com o aumento do comércio dos invasores da colônia, passaram a enviar expedições para evitar o contrabando do pau-brasil, porém, ao chegar ao Brasil essas expedições eram sempre repelidas pelos franceses apoiados pelos aborígenes. Com o fracasso das expedições o rei de Portugal decidiu criar o sistema de capitanias hereditárias.
            Com o objetivo de povoar a nova colônia, a coroa portuguesa a dividiu em quinze capitanias, para doze donatários. Entre elas destacamos a Capitania de Itamaracá, a qual se estendia do rio Santa Cruz até a Baía da Traição. Inicialmente essa capitania foi doada a Pedro Lopes de Souza, que não pôde assumi-la, vindo em seu lugar o administrador Francisco Braga, que devido a uma rivalidade com Duarte Coelho, deixou a capitania em falência, dando lugar a João Gonçalves, que efetuou algumas benfeitorias na capitania, tais como a fundação da Vila da Conceição e a
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construção de engenhos.
            Após a morte de João Gonçalves, a capitania entrou em declínio, ficando a mercê de malfeitores e propiciando a continuidade do contrabando de madeira.
            Com a tragédia de Tacunhaém (os povos originários mataram todos os moradores de um engenho), em 1534 o rei de Portugal desmembrou Itamaracá, dando formação à Capitania do Rio Paraíba. Existia uma grande preocupação por parte dos lusitanos em conquistar a capitania que atualmente é a Paraíba, pois havia a garantia do progresso da capitania pernambucana, a quebra da aliança entre Potiguaras e franceses, e ainda, estender sua colonização ao norte.

Expedições para a Conquista da Parahyba

            Quando o Governador Geral D. Luís de Brito recebeu a ordem para separar Itamaracá, recebeu também do rei de Portugal a ordem de punir os aborígenes responsáveis pelo massacre do engenho de Tacunhaém, expulsar os franceses e fundar uma cidade. Assim começaram as cinco expedições para a conquista da Paraíba. Para isto o rei D. Sebastião mandou primeiramente o Ouvidor Geral D. Fernão da Silva.

As Expedições:

I Expedição (1574): O comandante desta expedição foi o Ouvidor Geral D. Fernão da Silva. Ao chegar ao Brasil, Fernão tomou posse das terras em nome do rei sem que
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houvesse nenhuma resistência, mas isto foi apenas uma armadilha. Sua tropa foi surpreendida por aborígenes e teve que recuar para Pernambuco.
II Expedição (1575): Quem comandou a segunda expedição foi o Governador Geral, D. Luís de Brito. Sua expedição foi prejudicada por ventos desfavoráveis e eles nem chegaram sequer às terras parahybanas. Três anos depois outro Governador Geral (Lourenço Veiga) tenta conquistar o Rio Paraíba, não obtendo êxito.
III Expedição (1579): Frutuoso Barbosa impôs a condição de que se ele conquistasse a Parahyba, a governaria por dez anos. Essa ideia só lhe trouxe prejuízos, uma vez que quando estava vindo à Parahyba, caiu sobre sua frota uma forte tormenta e além de ter que recuar até Portugal, ele perdeu sua esposa.
IV Expedição (1582): Com a mesma proposta imposta por ele na expedição anterior, Frutuoso Barbosa volta decidido a conquistar a Parahyba, mas cai na armadilha dos nativos e dos franceses. Barbosa desiste após perder um filho em combate.
V Expedição (1584): Esta teve a presença de Flores Valdez, Felipe de Moura e o insistente Frutuoso Barbosa, que conseguiram finalmente expulsar os franceses e conquistar a Parahyba. Após a conquista, eles construíram os fortes de São Tiago e São Felipe.

Conquista da Parahyba

            Para as aventuras pelo interior da capitania, o Ouvidor Geral Martim Leitão formou uma tropa constituída por
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brancos, aborígenes, escravos e religiosos. Quando chegaram se depararam com aborígenes que, sem defesa, fogem e são aprisionados. Ao saber que eram aborígenes Tabajaras, Martim Leitão manda soltá-los, afirmando que sua luta era contra os Potiguaras (rivais dos Tabajaras). Após o incidente, Leitão procurou formar uma aliança com os Tabajaras, que por temerem outra traição, rejeitaram-na.
            Em seguida, Leitão e sua tropa finalmente chegaram aos fortes São Felipe e São Tiago, ambos em decadência e miséria devido às intrigas entre espanhóis e portugueses. Com isso Martim Leitão nomeou outro português, conhecido como Castrejon, para o cargo de Frutuoso Barbosa, o que agravou a situação. Ao saber que Castrejon havia abandonado o posto, destruído o Forte e jogado toda a sua artilharia ao mar, Leitão o prendeu e o enviou de volta à Espanha.
            Quando ninguém esperava, os portugueses se unem aos Tabajaras, fazendo com que os Potiguaras recuassem. Isto se deu no início de agosto de 1585. A conquista da Parahyba se deu no final de tudo através da união de um português e um chefe aborígene chamado Piragibe, palavra que significa Braço de Peixe.

Fundação da Parahyba

            Martim Leitão trouxe pedreiros, carpinteiros, engenheiros e outros de ofícios para edificar a Cidade de Nossa Senhora das Neves, atual capital do Estado. Com o início das obras, Leitão foi à Baía da Traição expulsar o resto dos franceses que permaneciam na Parahyba. Martim
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Leitão nomeou João Tavares para ser o capitão do Forte. Parahyba (hoje, João Pessoa) foi a terceira cidade a ser fundada no Brasil e a última do século XVI.

Primeiras Vilas da Paraíba na Época Colonial

            Com a colonização, foram surgindo vilas na província da Parahyba:
Pilar - O início de seu povoamento aconteceu no fim do século XVI, quando fazendas de gado foram criadas pelos holandeses. Foi elevada a vila em 5 de janeiro de 1765. Pilar originou-se a partir da Missão do Padre Martim Nantes naquela região. Distrito criado com a denominação de Pilar por alvará de 1 de outubro de 1765. Elevado à categoria de vila com a denominação de Pilar por carta régia de 14 de setembro de 1758. Pela lei provincial nº 723, de 1 de outubro de 1881, a vila é extinta. Elevado novamente à categoria de vila pela lei estadual nº 800, de 8 de outubro de 1885.
Sousa - Em 1730, já viviam aproximadamente no vale 1468 pessoas. Sousa foi elevada a vila com o nome atual em homenagem ao seu benfeitor, Bento Freire de Sousa, em 22 de julho de 1766. Sua emancipação política se deu em 10 de julho de 1854.
Campina Grande - Sua colonização teve início em 1697. O capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo instalou na região um povoado. Os aborígenes formaram uma aldeia. Em volta dessa aldeia surgiu uma feira nas ruas por onde passavam camponeses. Campina foi elevada à freguesia em 1769. Sua elevação a vila com o nome de Vila Nova da
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Rainha se deu em 20 de abril de 1790.
São João do Cariri - Tendo sido povoada em meados do século XVII pela enorme família Cariri que povoava o sítio São João, entre outros, foi elevada a vila em 22 de março de 1800. Sua emancipação política é datada de 15 de novembro de 1831.
Pombal - No fim do século XVII, Teodósio de Oliveira Ledo empreendeu uma entrada através do rio Piranhas. Nesta, venceu o confronto com os aborígenes Pega e fundou ali uma aldeia que inicialmente recebeu o nome do rio Piranhas. Devido ao sucesso da entrada não demorou muito até que passaram a chamar o local de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Em 1721 foi construída no local a Igreja do Rosário. Sob força de uma Carta Régia datada de 22 de junho de 1766, o município passou a se chamar Pombal, em homenagem ao Marquês de Pombal. Foi elevada a vila em 4 de maio de 1772, data hoje considerada como sendo também a da criação do município.
Areia - Conhecida antigamente pelo nome de Bruxaxá, Areia foi elevada a freguesia com o nome de Nossa Senhora da Conceição pelo Alvará Régio de 18 de maio de 1815. Esta data é considerada também como a de sua elevação a vila. Sua emancipação política se deu em 18 de maio de 1846, pela lei de criação número 2.

Primeiros Capitães-Mores

João Tavares - João Tavares foi o primeiro capitão-mor, o qual governou de 1585 a 1588 a Capitania da Parahyba. João Tavares foi encarregado pelo Ouvidor-Geral, Martim
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Leitão, de construir uma nova cidade. Para edificação dessa cidade, vieram 25 cavaleiros, além de pedreiros e carpinteiros, entre outros trabalhadores do gênero. Chegaram também jesuítas e outras pessoas para residir na cidade. Foi fundado por João Tavares o primeiro engenho, o d’El-Rei, em Tibiri, e o forte de São Sebastião, construído por Martim Leitão para a proteção do engenho. Os jesuítas ficaram responsáveis pela catequização dos aborígenes. Eles ainda fundaram um Centro de Catequese e em Passeio Geral edificaram a capela de São Gonçalo. O governo de João Tavares foi demasiadamente auxiliado por Duarte Gomes da Silveira, natural de Olinda. Silveira foi um senhor de engenho e uma grande figura da Capitania da Parahiba durante mais de 50 anos. Rico, ajudou financeiramente na ascensão da cidade. Em sua residência atualmente se encontra o Colégio Nossa Senhora das Neves. Apesar de ter se esforçado muito para o progresso da capitania, João Tavares foi destituído em 1588.
Frutuoso Barbosa - Devido à grande insistência perante a corte e por defender alguns direitos, em 1588, Frutuoso Barbosa foi nomeado o novo capitão-mor da Capitania da Parahyba, auxiliado por D. Pedro Cueva, sendo que este ficou encarregado de controlar a parte militar da capitania. Neste mesmo período, chegaram alguns frades franciscanos, que fundaram várias aldeias e por não serem tão rigorosos no ensino religioso como os jesuítas, entraram em desentendimento com estes últimos. Esse desentendimento prejudicou o governo de Barbosa, pois se aproveitando de alguns descuidos, os aborígenes Potiguaras invadiram propriedades. Veio em auxílio de Barbosa o capitão-mor de
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Itamaracá, com João Tavares, Piragibe e seus liderados. No caminho, João Tavares faleceu de infarto fulminante. Quando o restante do grupo chegou à Parahyba, desalojou e prendeu os Potiguaras. Com o objetivo de evitar a entrada dos franceses, Barbosa ordenou a construção de uma fortaleza em Cabedelo. Piragibe iniciou a construção do forte com os Tabajaras, porém, devido à interferência dos jesuítas, as obras foram concluídas pelos franciscanos. Em homenagem a Felipe II, de Espanha, Barbosa mudou o nome da cidade de Nossa Senhora das Neves para Felipeia de Nossa Senhora das Neves. Devido às infinitas lutas entre o capitão Pedro Cueva e os Potiguaras e os desentendimentos com os Jesuítas, houve a saída da Cueva e a decisão de Barbosa de encerrar o seu governo em 1591.
André de Albuquerque Maranhão - André de Albuquerque governou apenas por um ano. Expulsou os Potiguaras e construiu algumas fortificações, entre elas a construção do Forte de Inhobin para defender alguns engenhos próximos ao rio Inhobin. Ainda nesse governo os Potiguaras incendiaram o Forte de Cabedelo. O governo de Albuquerque se finalizou em 1592.
Feliciano Coelho de Carvalho - Em seu governo efetuou combates na Capaoba, houve paz com os povos originários, expandiu estradas e expulsou os franciscanos. Terminou seu governo em 1600.

A População Aborígene

            Na Parahyba havia duas nações de aborígenes: os Tupis e os Cariris (também chamados de Tapuias).
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            Os Tupis se dividiam em Tabajaras e Potiguaras, que eram inimigos. Na época da fundação da Parahyba, os Tabajaras formavam um grupo de aproximadamente cinco mil indivíduos. Eles eram pacíficos e ocupavam o litoral, onde fundaram as aldeias de Alhanda e Taquara. Já os Potiguaras eram mais numerosos que os Tabajaras e ocupavam uma pequena região entre o Rio Grande do Norte e a Parahyba. Esses aborígenes locomoviam-se constantemente, deixando aldeias para trás e formando outras. Com esta constante locomoção os aborígenes ocuparam áreas antes desabitadas.
            Os povos Cariris se encontravam em maior número que os Tupis e ocupavam uma área que se estendia desde o Planalto da Borborema até os limites do Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Os Cariris eram povos que se diziam ter vindo de um grande lago. Especuladores acreditam que eles tenham vindo do Amazonas ou da Lagoa Maracaibo, na Venezuela.
            Os Cariris velhos, que teriam sido “civilizados” (massacrados) antes dos cariris novos, se dividiam em muitas tribos: sucuru, icós, ariu, pegas e paiacu. Os tapuias pegas ficaram conhecidos nas lutas contra os bandeirantes.
            No início da colonização portuguesa, o nível de “civilização” dos aborígenes parahybanos era considerável. Muitos sabiam ler e conheciam ofícios como a carpintaria. Esses aborígenes tratavam bem aos jesuítas e aos missionários que lhes davam atenção.
            A maioria dos aborígenes estava entre o período paleolítico e o neolítico. A língua falada por eles era o tupi-guarani, utilizada também pelos colonos na comunica-
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ção com eles.
            Piragibe, que deu paz na conquista da Parahyba; Tabira, que lutou contra os franceses, e Poti, que lutou contra os holandeses e foi herói na batalha dos Guararapes, são exemplos de povos nativos que se sobressaíram na Parahyba.
            Ainda hoje se encontram tribos aborígenes Potiguaras localizadas na Baía da Traição, mas em apenas uma aldeia, a São Francisco, onde não há miscigenados, pois a tribo não aceita a presença de caboclos, termo que eles utilizavam para com as pessoas que não pertencem à tribo.
            No Brasil, só existem três tribos Potiguaras, sendo que no Nordeste a única é na Baía da Traição. A principal atividade econômica desses aborígenes era a pesca e, em menor escala, a agricultura.

Invasões Holandesas

            Em 1578 o rei de Portugal, D. Sebastião, foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, na África, deixando o trono português para seu tio, o cardeal D. Henrique, o qual, devido à sua avançada idade, acabou morrendo em 1579, sem deixar herdeiros. O Rei de Espanha, Felipe II, que se dizia primo dos reis portugueses, com a colaboração da nobreza portuguesa e do seu exército, conseguiu em 1580 o trono português.
            A passagem do trono português à coroa espanhola prejudicou os interesses holandeses, pois eles estavam travando uma luta contra Espanha pela sua independência e a Holanda era responsável pelo comércio do açúcar nas co
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lônias portuguesas, o que lhes garantiam altos lucros. Desta forma, rivais dos espanhóis, os holandeses foram proibidos de aportarem em terras portuguesas, o que lhes trouxe grande prejuízo.
            Interessados em recuperar seus lucrativos negócios com as colônias portuguesas, o governo e companhias privadas holandesas formaram a Companhia das Índias Ocidentais, para invadir as colônias.
            A primeira tentativa de invasão holandesa ocorreu em 1624, em Salvador. O governador da Bahia, Diogo de Mendonça Furtado (não há como não lembrar do poema – um acróstico – de Gregório de Matos satirizando este governador: “É CÉLEBRE, PORÉM NUNCA VI UM MENDONÇA QUE NÃO TENHA FURTADO”), havia se preparado para o combate, porém com o atraso da esquadrilha holandesa, os brasileiros não mais acreditavam na invasão quando foram surpreendidos. Durante o ataque o governador foi preso. Mas orientadas por Marcos Teixeira, as forças brasileiras mataram vários chefes batavos, enfraquecendo as tropas holandesas. Em maio de 1625, eles foram expulsos da Bahia pela esquadra de D. Fradique de Toledo Osório.
            Quando saíram de Salvador, os holandeses, comandados por Hendrikordoon, seguiram para Baía da Traição, onde desembarcaram e se fortificaram. Tropas parahybanas, pernambucanas e aborígenes se uniram a mando do governador Antônio de Albuquerque e Francisco Carvalho para expulsar os holandeses. A derrota batava veio em agosto de 1625. Após esse conflito os holandeses seguiram para Pernambuco, onde o governador Matias de Al
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buquerque, objetivando deixá-los sem suprimentos, incendiou os armazéns do porto e se entrincheirou.
            Na Parahyba, por terem ajudado aos holandeses, os Potiguaras foram expulsos por Francisco Coelho.
            Temendo novos ataques, a Fortaleza de Santa Catarina, em Cabedelo, foi reconstruída e guarnecida e à sua frente, na margem oposta do Rio Parahyba, foi construído o Forte de Santo Antônio.
            Em 5 de dezembro de 1632, comandados por Callenfels, 1600 batavos desembarcaram na Parahyba. Ocorreu forte tiroteio, e os holandeses construíram uma trincheira em frente à fortaleza de Santa Catarina, mas foram derrotados com a chegada de 600 homens vindos de Felipeia de Nossa Senhora das Neves a mando do governador.
Após esse acontecimento os brasileiros tentam construir uma trincheira em frente à fortaleza. Os holandeses tentam impedir, mas o forte resiste. Incapazes de vencer, os batavos se retiram para Pernambuco.
            Os holandeses decidem atacar o Rio Grande do Norte, mas Matias de Albuquerque, 200 aborígenes e 3 companhias parahybanas os impediram de desembarcar.
Os holandeses voltaram à Parahyba para atacar o Forte de Santo Antônio, mas ao desembarcarem perceberam a trincheira levantada pelos parahybanos, fazendo com que eles desistissem da invasão e voltassem ao Cabo de Santo Agostinho. Depois, os holandeses resolvem invadir a Parahyba novamente, pois ela representava uma porta para a invasão batava em Pernambuco. Desta forma, em 25 de novembro de 1634 partiu uma esquadra de 29 navios para a Parahyba.
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            No dia 4 de dezembro de 1634, os soldados holandeses chegam ao norte do Jaguaribe, onde desembarcaram e aprisionaram três brasileiros, entre eles o governador, que conseguiu fugir. No dia seguinte o resto da tropa holandesa desembarcou aprisionando mais pessoas. No caminho por terra para Cabedelo os batavos receberam mais reforços.
            Antônio de Albuquerque Maranhão enviou à Parahyba tudo o que foi preciso para combater com os chefes holandeses na região do forte. Enquanto isto, Callabar roubava as propriedades. Vieram reforços do Rio Grande do Norte e de Pernambuco. O capitão Francisco Peres Souto assumiu o comando da fortaleza de Cabedelo.
            Somente em 15 de novembro de 1634 chegara à Parahyba o Conde Bagnuolo, para auxiliar os parahybanos. Como os parahybanos já se encontravam em situação irremediável, resolveram entregar o Forte de Cabedelo e logo em seguida o Forte de Santo Antônio.
            O Conde de Bagnuolo foi para Pernambuco enquanto que Antônio de Albuquerque e o restante da tropa, juntamente com o povo, tentaram fundar o Arraial do Engenho Velho.
            Os holandeses chegaram com seus exércitos na Felipeia de Nossa Senhora das Neves em 1634, e a encontraram vazia. Foram então à procura de Antônio de Albuquerque no Engenho Velho, mas não o encontraram.
            O comandante das tropas holandesas entendeu-se com Duarte Gomes, que procurou a Antônio de Albuquerque e o prendeu e o mandou para o Arraial do Bom Jesus. Depois, os holandeses mandaram libertar Duarte Gomes. No
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Engenho Espírito Santo, os guerreiros que resistiram à invasão holandesa venceram os invasores, liderados por André Vidal de Negreiros.
            Os parahybanos continuavam com a ideia de querer expulsar os holandeses. Buscaram forças para isso: aliciaram homens no Engenho São João e contaram com o apoio de André Vidal de Negreiros. Quando os holandeses descobriram, também se prepararam para o combate. Os parahybanos reuniram-se em Timbiri, e depois seguiram para o Engenho Santo André, onde foram atacados por Paulo Linge e sua tropa.
            Após várias lutas, morreram oitenta holandeses e a Parahyba perdeu o capitão Francisco Leitão. Os combatentes, que estavam recolhidos no engenho Santo André, continuaram com as provocações aos holandeses, tornando assim complicada a situação de Pernambuco.
            A fortaleza de Pernambuco estava entregue aos prisioneiros soltos por Hautyn. Francisco Figueroa chegou para governar a capitania por um determinado tempo. Em 1655, chegou João Fernandes Vieira para assumir a Capitania da Parahyba.
            Jerônimo de Albuquerque conquistou o Maranhão com a ajuda de seu filho Antônio de Albuquerque Maranhão. Em 1618, então este teve por herança o governo do Maranhão, que teria a assessoria de duas pessoas escolhidas pelo povo. Antônio não gostou muito de seus auxiliares e os dispensou. Seguindo os assessores seu próprio caminho, Antônio de Albuquerque abandonou o governo do Maranhão e casou-se em Lisboa, tendo desse casamento dois filhos. Antônio voltou ao Brasil em 1627, com a no-
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meação de Capitão-Mor da Parahyba.

A Capitania da Parahyba
na época da invasão holandesa

            Na época da invasão holandesa a população era dividida em dois grupos: os homens livres (holandeses, portugueses e brasileiros) e os escravos (de procedência africana e brasileira). Durante muito tempo de domínio holandês no Brasil não se registra mistura de raças.

Política administrativa holandesa na Parahyba

            Por uma década, a capitania da Parahyba teve como administradores alguns governadores holandeses: Servais Carpentier - Também governou o Rio Grande do Norte, e sua residência oficial foi no Convento São Francisco. Ippo Elyssens - Foi um administrador violento e desonesto. Apoderou-se dos melhores engenhos da capitania. Elias Herckmans - Governou por cinco anos. Sebastian Von Hogoveen - Governaria no lugar de Elias Herckmans, mas morreu antes de assumir o cargo. Daniel Aberti - Substituto do anterior. Gisberk de With – Considerado à época como o único governador holandês honesto, trabalhador e humano. Paulo de Lince - Foi derrotado pelos “Libertadores da Insurreição”, e retirou-se para Cabedelo.

Conquista do Interior da Parahiba

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            Através de entradas, missões de catequese e bandeiras, o interior da Parahyba foi conquistado, principalmente após as invasões holandesas.
            Os missionários encontraram um planalto com uma campina verde e um clima agradável. Um aldeamento de aborígenes cariris que se organizaram na região deu-lhe o nome de Campina Grande. Entre os missionários, destacou-se o Padre Martim Nantes, cuja missão deu origem à vila de Pilar.
            As Missões de Catequese foram as primeiras formas de conquista do interior da Parahyba. Após elas foram empreendidas bandeiras com a finalidade de capturar “índios” que, por recomendação da igreja católica, os filhos pequenos destes nativos eram dados como alimento para os cães dos bandeirantes para que os cães “apurassem o faro” e se fizessem melhores “caçadores de índios”, pois “índio não tem alma”, diziam os religiosos.
            O capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo foi o homem que comandou a primeira bandeira na Parahyba. Esta bandeira se deu através do Rio Paraíba e teve como destaque a fundação de um povoado chamado Boqueirão. Esta primeira bandeira, apesar de ter sido tumultuada, foi “bem sucedida”, uma vez que Teodósio aprisionou vários aborígenes. Teodósio é tido como o grande responsável pela colonização do interior da Parahyba. Ele estabeleceu-se no interior e trouxe famílias e aborígenes para povoá-lo.
            Os passos de Teodósio foram seguidos pelo capitão-mor Luís Soares, que também se destacou por suas aventuras pelo interior. Um homem chamado Elias Herckman procurou minas e chegou à Serra da Borborema.
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Seu feito (o de procurar minas) foi seguido por Manuel Rodrigues. O fundador da Casa da Torre, Francisco Dias D’ávila, foi outro bandeirante que se destacou na colonização da Parahyba. Entre as várias tribos (caicós, icós, janduís, etc.) que se destacaram no conflito contra a conquista do interior parahybano, os mais conhecidos são os sucurus, que habitavam Alagoas de Monteiro.

A capitania nos séculos XVII e XVIII

            Na administração colonial do Brasil, foram configuradas três modalidades de estatutos políticos: a das capitanias hereditárias, a do governo geral e a do Vice-reino. Na Parahyba houve a criação da Capitania Real em 1574. Em 1694, depois de mais de noventa anos de fundação, esta capitania se tornou independente. Entretanto, passados mais de sessenta anos, a capitania da Parahyba foi anexada à de Pernambuco em 1º de janeiro de 1756.
            Houve prejuízo nesta fusão para a capitania parahybana, além de prejudicar o Real Serviço, em virtude das complicações de ordem General de Pernambuco, do governador da Parahyba e do Rio Grande do Norte.
            Por isto, em 1797, o governador da capitania, Castilho, dá um depoimento descrevendo a situação da Capitania Real da Parahyba à rainha de Portugal. Em 11 de janeiro de 1799, pela Carta Régia, a Capitania da Parahyba separou-se da de Pernambuco.
            O interior da capitania foi devastado por bandeirantes, que penetravam até o Piauí. Entretanto a conquista do Sertãofoi iniciada oficialmente pela família Oliveira Le-
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do, da qual não se sabe da existência de descendente direto.
            Outro fato político foram as constantes invasões de franceses a mando da própria coroa francesa, que à época tentou se aliar ao império russo para se fortalecer na invasão e colonização do Brasil, depois de fracassadas tentativas neste sentido.
            A invasão holandesa e a Guerra dos Mascates serviram para consolidar a colonização portuguesa.

A vida econômica da capitania
nos séculos XVII e XVIII

            No período colonial a Parahyba tinha como fontes de riqueza o pau-brasil, a cana-de-açúcar, o algodão e o comércio de escravos africanos.
            O pau-brasil era conhecido como ibirapitanga pelos aborígenes. O seu valor como matéria prima de tinturaria foi atestado na Europa e na Ásia. Daí a sua importância econômica. Pernambuco e Parahyba figuravam entre os pontos do Brasil onde a ibirapitanga era mais abundante.
            A cana-de-açúcar, que foi a principal riqueza da Parahyba com os seus engenhos, veio do Cabo Verde. Foi plantada inicialmente na Capitania de Ilhéus. A cana não se aclimatou na Europa. Na idade média o açúcar era um produto raro, portanto de preço exorbitante. Constava em testamento junto com as joias. Isto provou bem a importância do açúcar, de que resultou o desenvolvimento e progresso das capitanias brasileiras. Na primeira década da fundação da Parahyba, já se encontravam dez engenhosins
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talados na região. Desde 1532 que entrava na capitania este produto armazenado nos celeiros, na feitoria de Iguarassu. Os franceses já traficavam com o algodão. Entretanto a economia do “ouro branco” só se desenvolveu no século XVIII.
            Na Parahyba o rebanho de gado vacum também teve importância econômica. Não foi ele somente utilizado como fonte de subsistência. Entrou nos engenhos como impulsionador das moendas. Teve o gado a sua fase áurea durante a “idade do couro”, quando tudo se fazia com o couro com fins comerciais: móveis, portas, baús, roupas, etc.
O Tráfico de Escravos

            Já no início da colonização, os portugueses começaram a introduzir no Brasil os escravos africanos. A data é imprecisa, mas presume-se que tenham vindo primeiro com Martim Afonso de Souza para a Capitania da São Vicente. Na Parahyba, o “comércio” de africanos iniciou-se logo após o Decreto Real de 1559, da Regente Catarina permitindo aos engenhos comprar cada um doze (12) escravos, que eram considerados como “mercadoria cara”, pois seu valor médio oscilava entre 20 e 30 libras esterlinas.






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POSSIVELMENTE A ÚNICA FOTOGRAFIA de um navio negreiro – atribuída erroneamente a Marc Ferrez em navio francês, pois a fotografia é clandestina.












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FICHA TÉCNICA:

Estatísticas:
Páginas........................................................................... 210
Palavras..................................................................... 41.777
Caracteres sem espaço............................................. 218.034
Caracteres com espaço............................................ 260.078
Parágrafos.................................................................... 2.128
Linhas.......................................................................... 6.745

Lastro e lastrenses:
pág. .................................................................... quantidade
09 ................................................................................ 1 + 1
16 ................................................................................ 1 + 0
37 ................................................................................ 1 + 0
38 ................................................................................ 1 + 0
39 ................................................................................ 1 + 0
47 ................................................................................ 2 + 0
59 ................................................................................ 1 + 0
64 ................................................................................ 1 + 0
65 ................................................................................ 1 + 0
66 ................................................................................ 1 + 0
67 ................................................................................ 1 + 0
73 ................................................................................ 2 + 1
75 ................................................................................ 2 + 0
108 .............................................................................. 1 + 0
119 .............................................................................. 2 + 0
122 .............................................................................. 1 + 0
123 .............................................................................. 1 + 0
128............................................................................... 2 + 0

Personagens e pessoas citadas:

Maria da Glória Dias e Bragança (Maria Cacheado), personagem central e proprietária da Barra;
Nelson, Santana, Mac Dowell e Antônio – este, assassinado aos vinte e um anos de idade) = filhos;
Basílio Neto, Mitra e Maria da Glória = irmãos;
Justiniano Justus Dias = pai;
Floresbela de Albuquerque Lima e Bragança Dias = mãe;
Alenor = filho de Maria Cacheado e coronel Manzoel;
Regina = mulher de Alenor;

Como podemos nós mesmos governar o mundo sem delegarmos poder a corruptos?

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