quarta-feira, 9 de maio de 2007

LIS, TEU CORPO É MINHA PÁTRIA (ATRAVÉS DAS SOMBRA - NA CERCA DE GIZ)

LIS, TEU CORPO É MINHA PÁTRIA
(ATRAVÉS DAS SOMBRA - NA CERCA DE GIZ)

Ao heróico – indomável mesmo! – povo cubano, em especial ao FIDEL, um dos maiores fazedores de história da humanidade, em todos os tempos!

O autor.
LIS,
TEU CORPO É MINHA PÁTRIA
(ATRAVÉS DAS SOMBRAS – NA CERCA DE GIZ)
F. ANTENOR GONSALVES
“Só me punja a saudade da pátria imaginária.”
Carlos Drummond de Andrade.
...ficaram terríveis, profundas e indeléveis cicatrizes no meu corpo e na minha memória, e tanto que às vezes vejo sangue e pus nestas páginas que agora vos ofereço para vosso deleite intelectual.

Que eu não sou o dono da verdade é provável, mas que eu não sou serviçal da mentira é indiscutível.

Esta é uma obra baseada em fatos; qualquer semelhança com ficção é mera ficção mesmo.

“A liberdade não é algo a ser conquistado. Ela depende de nossa consciência.”
Provérbio do povo Maia.

“Habian bloqueado todas las salidas, pero él escapó por una de las entradas.”
Ângel Fechera.

Para ELIANE, minha menina de rua, com orgulho por sua dignidade e honra para a classe trabalhadora (com documentos e nome falsos para sobreviver comigo na Amazônia).

Para a família que me adotou após os trinta e por opção e liberdade escolhi: Macimino, Dorinha, Hélio, Mara, Cília, Gilmar, Pedro, Delamare, Deizi (também como poetisa), Adélia, Gina, Leth, César, Tanane, Fablício e Camila (uma justa homenagem do Jorge ao Camilo Cienfuegos).

AMIGO A GENTE ESCOLHE, PARENTE NÃO!

Para SONINHA, que deu sua vida por minha vida!!...

Para todos que vão além do sonho!

“Nossos heróis não são os heróis dos livros.”
(Janaína – não está nos livros).

UM POEMA POR PREFÁCIO
DENÚNCIA
(Para todas as vítimas da injustiça)

Eu sou de um país onde “sempre livre”
é absorvente para higiene feminina.

Eu sou de um país onde a justiça é cega,
o parlamento é mudo e o executivo é surdo.

E como já disse, eu sou de um país onde a “justiça é cega”:
(viste o caso dos inocentes condenados a vinte anos de prisão
nos cárceres da burguesia,
por interesses escusos de juízes também cegos e escusos?).

Eu sou de um país onde “liberdade” é nome de praça
(e o pior é que em meu país a praça não é do povo
“como o céu é do condor”).

Eu sou de um país onde os três poderes são exercidos pelas três armas
e o “quarto poder” é paramilitar:
bichos encapuzados metidos nos porões,
agindo na noite – torturando, trucidando, matando...
matando... matando... matando... infinitamente matando!...

Eu sou de um país onde é tão grande a quebradeira
que os mandatários governam por “emendas”
ou simplesmente decretam leis.

Eu sou de um país onde infância e marginalização se confundem nas ruas.

Eu sou de um país onde policiais e marginais exercem a mesma atividade.

Eu sou de um país tão frágil e inseguro que um simples operário
(poeta nas horas vagas – subversivo todas as horas!)
pasmem vocês!
foi acusado de ameaçar a “segurança nacional” da pátria-colônia.

Eu sou de um país onde, não faz muito tempo, me proibiram ser do
“meu país”.

“Hay mujeres que amo
cuando tú no estás conmigo
(el hombre necesita dosis de amor y fantasía).
Y aunque sólo las ame en el poema
no deja de ser amor.
Te prevengo por si algún día las descubres entre mis cosas.
Esas son mis mujeres de papel.
Mis amores de caligrafía y soledad.”

G. Gómez.

LIS
(NO MUNDO DOS TUIUIÚS)

Era uma jovem bastante bonita para os padrões estabelecidos; e como se a beleza física não lhe bastasse, era extremamente simpática, amável e culta. E grande foi minha surpresa quando ela me abordou:
– Me empresta tua caneta, por favor? (pronunciou o por favor pausadamente, com um sorriso discreto, porém marcante).
Nunca vira antes essa jovem, mas me parecia bastante familiar, tanto sua fisionomia quanto a intimidade com que ela me tratava. E, a partir daí, nossos encontros se fizeram bem freqüentes e, por mais que ela se esforçasse para transparecer o contrário, sempre eu tinha a impressão de que ela premeditava nossos encontros. No início, quis evitá-la, mas desisti, pois concluí que todo meu receio e preocupação com segurança não passavam de paranóia de clandestino de esquerda, e cedi aos encantos e amabilidades da bela e inteligente jovem. A nossa amizade já parecia antiga...
Certa noite, por volta das 23:00 h, o telefone do escritório tocou; e ao meu já habitual boa noite tive um longo silêncio como resposta. Aguardei um pouco mais e monologuei: já que ninguém quer falar, não tenho por que querer ouvir, e desliguei. Em poucos minutos seguidos, tocou novamente o telefone e desta vez foi o do meu quarto. Detalhe intrigante, pois pouquíssimas pessoas sabiam o número - somente algumas pessoas mais íntimas – e no próprio catálogo o telefone estava em nome de alguém que nada poderia sugerir ser meu. Corri ansioso para atender e intraduzível foi minha surpresa ao ouvir:
– Trabalhando a esta hora, hem?! – o tom me pareceu desaprovador, repreensivo; e a voz, familiar.
– Falta de opção!... Sugere algo melhor, Lis?
– Como sabe?!... nunca nos falamos por telefone...
– Não lhe perguntei como sabe o meu telefone, e isto é – no mínimo – curioso; lhe perguntei se tem algo a sugerir para o momento, melhor que trabalhar...
Foi esta a nossa primeira noite, e foi assim o início do nosso relacionamento tempestivo, mesclado de loucuras e aventuras. No dia seguinte, fomos para Chapada dos Guimarães e nas semanas seguintes devastamos o Pantanal.
Nossas decisões eram quase irracionais: atendíamos aos instintos e quase sempre nossas atitudes eram impulsivas. Eu queria aquela aventura sem medir conseqüência, até que uma noite, numa embarcação no rio Paraguai – em pleno coração pantaneiro – notei que meus documentos estavam fora da ordem habitual que eu os mantinha. Desconfiei da tripulação mas concluí ser impossível, assim como também seria impossível qualquer outro passageiro entrar, sem ser notado, em nosso camarote. Restavam, então, as possibilidades de eu não lembrar que havia eu mesmo desordenado meus documentos e Lis – numa crise de curiosidade feminina – ter mexido, por mera curiosidade. Novamente me veio a questão da segurança pessoal e, mais uma vez, atribuí a preocupação a uma suposta paranóia de clandestino de esquerda. Fiz referência ao fato e ela disse com aparente indiferença:
– Apenas arrumei nossa bagagem. Ou não devia? Você não é dos que determinam o que uma mulher “pode” ou “não pode” fazer, não é?
Ora! Mesmo que fosse, com ponderações assim, quem haveria de assumir? Abracei-a, dei-lhe um beijo na testa, como ela gostava, e fomos para o convés e, abraçados, contemplamos a lua refletida na água turva do rio. O silêncio logo foi rompido por ela:
– O que você gosta de ler?
– Você está afirmando que gosto de ler! Como sabe?!
– Já leu tudo de Karl Marx e Frederico Engels, por exemplo, não foi? – ela nunca (ou quase nunca) respondia ao que eu perguntava, mas sempre cobrava uma resposta para suas embaraçosas perguntas.
Nada respondi... Eu estava demais intrigado para fazer qualquer coisa senão refletir. Ela, porém, ignorou meu silêncio e divagou – de forma provocativa para o debate, como se já soubesse que este era o meu ponto fraco – sobre filosofia, dando muita ênfase a PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE FILOSOFIA, de dois discípulos de Politzer. Teceu um assunto onde encaixou uma frase de Lênine “é melhor menos mas melhor” e quase não me deixava hiato para o diálogo. Era como se ela quisesse mostrar-me que dominava o assunto, e a mim só restava uma grande interrogação: por que tudo isso? Do âmbito filosófico, ela entrou de cheio na biografia de grandes revolucionários, dando muito destaque para Rosa Luxemburgo, Guevara, Mao Tse-tung, Samora Machel, Agostinho Neto, Ho Shi Min e Ramires Sanches – o Carlos Chacal -, e este detalhe me chamou muito a atenção: era exatamente a elite revolucionária que adotou a luta armada na forma de guerra de guerrilhas para a derrocada da burguesia do poder e a independência de seus respectivos países.
Não resisti e indaguei:
– Por que a preferência por estes?... São seus preferidos, não são?
– Você se preocupa muito em adjetivar tudo, até as idéias! Quem te disse que estes são meus preferidos?
Às vezes, ela me dava a sensação de que estávamos em permanente competição e, pior, que eu estava sempre perdendo. Era como se eu caísse sempre nas esparrelas que ela me armava. E não era o ranço machista de “perder para uma mulher”, era o dissabor de entrar em seu jogo, de deixar-me envolver sem o menor controle da situação. Sem o menor controle de mim mesmo.
Eu disse – como se estivesse a me desculpar – que não estava insinuando nenhuma preferência... que estava apenas surpreso pelo conhecimento que ela tinha, e este em especial... Como se ela percebesse alguma fragilidade minha, inclinou minha cabeça sobre seu ombro esquerdo e acariciou-me a face como quem protege uma criança indefensa. E era assim que eu estava me sentindo. E ela me tinha sob controle, desde minhas emoções até os meus atos, e isto era ainda mais apavorante para mim, acostumado que era a ser o dono da situação.
Senti-me seguro e insisti:
– Então, por que estes?... O que você sabe sobre mim e quem é você, afinal?!...
Ela sorriu, e o seu sorriso me machucou, pois me pareceu sarcástico. Ela percebeu e me abraçou forte e sussurrou doce e suavemente:
– Sou tua; é tudo o que sei. É tudo que me importa no momento.
– Só no momento? E quando o momento for outro?
Ela não respondeu. Preferiu abraçar-me mais forte e apoiou o seu rosto no meu. Senti seus olhos úmidos; a afastei de mim e exclamei:
– Está chorando!!!
– São duas lágrimas intrusas e inconvenientes, nada mais!
– E qual a razão das lágrimas? – insisti.
– As lágrimas não obedecem à razão; são intrusas e inconvenientes, já o disse! E nem sempre obedecem aos sentimentos. Se eu dissesse que foi algum ácido? Um mosquito, talvez... afinal, estamos em plena selva amazônica...
Não me convenceu. Continuei pensando que ela escondia o verdadeiro motivo de suas lágrimas, pois as lágrimas não acontecem por acaso e, concluí por dedução, se escondia o motivo era certamente algo que ela sabia que me magoaria muito. Daí em diante este enigma passou a ser demais torturante para mim: o que, vindo de Lis, me magoaria? Talvez eu nunca soubesse, principalmente por confissão dela. Tentei – com tudo que a retórica me permitia – persuadi-la para me contar, pois, argumentei em vão, se não fosse nada grave ela me contaria, e se não contava era porque ela tinha convicção de que iria me magoar.
– Não controlo teus pensamentos... Se é isso que você pensa... – retrucou, indiferente ao que eu pensasse ou deixasse de pensar, o que me deu a sensação (quase certeza) de que ela me tinha como um meio-débil-mental.
Houve um breve silêncio entre nós dois, quebrado apenas pelo barulho de alguns tuiuiús que se assustaram com nossa indesejável presença. Lis perguntou-me o que significava aquele barulho com a voz doce e suave que já a caracterizava sempre que me magoava, o que me dava a certeza de que ela me magoava de propósito. Envolveu-me o tórax com seus braços frágeis e pediu-me que a abraçasse forte. Por um momento eu tive a ilusão de que ela estivesse com medo, o que seria demais surpreendente, pois nunca Lis me dera o menor motivo para, sequer, eu imaginar que ela sentisse medo. Aproximou sua boca ao meu ouvido e sussurrou como uma brisa morna:
– Não quero, nunca, perder você! – sussurrou o nunca longamente.
– O que há?!... Está com medo?!...
– De quê? Estou apenas te amando; é tudo que estou sentindo.
– Do barulho dos tuiuiús...
– Ah! nem estava me lembrando mais... Era só curiosidade. E o que são tuiuiús? Você está inventando essa palavra esquisita, não é?
Não lhe respondi o que são tuiuiús, talvez pela vontade inconsciente de me vingar por ela nunca responder minhas perguntas. Ela inclinou a cabeça para trás, mantendo seus braços em torno do meu corpo e insistiu:
– O que são tuiuiús???

LIS
(UM XEQUE-MATE PASTORZINHO)

Inverti as ligações da bobina defletora do monitor do computador, digitei o numeral 517, apertei a tecla enter e no cinescópio do monitor apareceu LIS. Imaginava eu que fosse deixá-la, no mínimo, curiosa. Ela, porém, com aquela naturalidade que parecia indiferença (ou indiferença que parecia naturalidade) observou:
– Isso é um computador! Há recursos suficientes para imprimir todo manancial do conhecimento acumulado pelos humanos... portanto, todo teu esforço foi inútil!
– Inútil, Lis?! A vida me ensinou que nenhum esforço é inútil. Eu quis, de maneira diferente, imprimir o teu nome... e não foi inútil, pois me deu prazer, me fez bem...
– Bobo!... estou apenas te mostrando que há maneiras mais práticas e rápidas de se fazer as coisas...
Ela fez uma breve pausa; com a mão esquerda sob meu queixo suspendeu minha cabeça, olhou-me profundamente nos olhos e disse:
– Sem conviver contigo, ninguém te imagina tão sentimentalóide! Sabes que o sentimento é proporcionalmente inverso à razão? – ela riu subtilmente e, paradoxalmente, era o seu riso o que mais me machucava.
Com um ligeiro e suave movimento da mão, e com o dorso da mesma, acariciou-me a face, fitando-me com ar grave – porém terno – ela falou como quem anuncia um xeque-mate pastorzinho:
– As minhocas têm cinco pares de corações e nenhuma cabeça.
Preferi ignorar as provocações de Lis, por duas razões óbvias: primeiro, eu já não tinha mais autoconfiança de tanto Lis vencer-me nas argumentações e, segundo, as questões científicas e ideológicas sempre nos traziam controvérsias; portanto, nos afastavam. Ademais, desde que passamos a morar juntos, eu não queria perder, por um só instante, os carinhos dela.
Àquela altura do nosso relacionamento – quando ela parecia saber tudo sobre mim – eu havia feito apenas uma descoberta sobre o comportamento de Lis: ela estava sempre pronta para tudo (e tudo era tudo mesmo!) que eu a procurasse e, com mais entusiasmo ainda, quando provocada; e assim era para discussões científicas, viagens, carinho, sexo, trabalho, esportes... era isto que ainda me dava uma certa sensação de domínio e, consequentemente, um pouco de autoconfiança, pois eu sabia que encontraria nela o que eu quisesse: a amante, a desportista, a companheira, a debatedora intelectual... para tal bastava que eu a provocasse.
Assim se iniciou o nosso primeiro dia em casa, ao retornarmos de nossas aventuras – ao que normalmente chamariam de lua-de-mel – quando soou a campainha, acompanhada de uma das palavras que mais têm despertado curiosidade e ansiedade no humano hodierno:
– Caaaaarrrrrrttteeeeeeiiirrroo!!!!!!
Saltamos de uma só vez e enquanto eu me calçava, ela já retornava com alguns envelopes sob o braço e um nas mãos, lendo com incontida curiosidade o que estava escrito por fora do mesmo. Porém, sem perceber a minha aproximação, colocou o envelope contra a luz, como se tentasse radiografar o conteúdo.
Já era grande minha curiosidade para saber que correspondência era aquela que tanto chamara a atenção de Lis, quando ela exclamou:
– Da Nicarágua!!!... Do Ministério de Educação da Nicarágua! Até aonde vão tuas ligações com movimentos internacionais?... de esquerda, claro!
Sugeri que ela mesma abrisse a correspondência, e, com incontrolável ansiedade, ela cortou a margem do envelope, lendo em seguida o conteúdo.
Seu rosto taciturno anunciava a bateria de indagações que eu estava prestes a enfrentar, pois Lis não se continha de curiosidade. “Por que da Nicarágua?”, “Ministério de Educação é só disfarce, não é?”, “Você é a favor da luta armada, não é?”, “até aonde vão tuas ligações com movimentos internacionais de esquerda?”, “...”, “...?”.

PÓ BRANCO NO VENTILADOR DE VOCÊS
ASSIM COMO GERVÁSIO:
IRRECONHECIVELMENTE
RENDADO DE BALAS!!!
CARLA PATRÍCIA VIROU MEMÓRIAS

É como uma necessidade fisiológica que eu quero vomitar estas memórias – estas terríveis memórias! -, assim como quem vomita a aguardente que passou da conta ou a comida indigesta do restaurantezinho da beira da estrada; eu quero vomitá-las todas: tanto as reminiscências dos momentos de prazer quanto as dos momentos de tortura... talvez na tentativa estrênua de me desligar do passado – de um passado que tenho sempre presente e que jamais consegui colocá-lo no meu pretérito e não consigo me livrar dele – mas sinto que conscientemente não quero (e certamente não posso) viver sem este passado sempre presente mas, paradoxalmente, impreterivelmente passado! Mas tenho esta necessidade fisiológica mesmo de pô-lo para fora, assim como quem quer se esvaziar para depois se fartar outra vez. Talvez esta não seja uma necessidade orgânica de se jogar fora o corpo estranho, mas de assumir de público aquilo que tem sido tão só e unicamente meu por tanto tempo. Quero expor minhas feridas; quero exibir (com orgulho) as minhas cicatrizes (todas, principalmente as mais íntimas); e como eu gostaria de chocar-vos com a exposição de minhas vísceras dilaceradas e de minhas chagas vivas e, deliciosamente, ver-vos contorcerem-se enojados com as feridas purpúreas e a purulência que hei de lançar em vossas caras... da forma mais estrambótica que me aprouver!
Quando a ciência falha, a psicanálise explica – eles explicam tudo! -, explicam até que aquele homem insandecido de fome, tendo chegado em casa e encontrado oito filhos agonizantes (de fome também!) após ter sido dispensado do emprego “por justa causa”, porém sem nenhum motivo, pegou um instrumento de trabalho e foi ao supermercado mais próximo e saqueou alimento... aquele ato de desespero não era uma questão sócio-político-econômica (segundo eles), mas sim “uma predisposição psíquica, por índole atávica, das sub-raças de QI pouco desenvolvido... etcétera-e-tal”; eles também explicarão o meu caso.
Neste momento, vem-me à lembrança o caso do operário Gervásio não-sei-de-que (datas não têm importância para mim e nomes próprios são referências fúteis, quando não, vaidades incontidas), e Gervásio que já estava demitido, juntamente com um seu amigo (como que eu sei que era amigo? Só porque deu na televisão?) – e bem que todos os trabalhadores deveriam ser amigos, mas infelizmente não são – e Gervásio, dois meses desempregado, a filhinha doente... na fila da Previdência disseram-lhe que já haviam acabado as fichas, Gervásio não resistiu ao convite do amigo (estavam desempregados) foram assaltar uma agência do Banco do Brasil (do Brasil?) – quem pode me garantir que é do Brasil? – e os dois sem experiência no ramo, pois trabalharam a vida inteira na roça e agora desempregados e armas na mão (o que antes fora instrumentos de trabalho!), mas sem jeito “isto é um assalto! Todo mundo no chão!” – foi assim que eles viram na televisão, num programa infantil da televisão, num programa educativo da televisão, num filme da televisão, numa novela da televisão – meio sem jeito, e a polícia infalível quando quer Baannn!!!!!! Baaannn! e Gervásio morreu crivado de balas (nem sei para que tanta bala, o homem já estava quase morto, bastava um empurrão) mas tinham que mostrar serviço e... Gervásio morreu!!! Crivado de balas!!!... seu amigo morreu! Foi tiro demais!! Morreram! Necropsia... pó branco nas entranhas do ex-operário GERVÁSIO CRIVADINHO DE BALAS DA SILVA (nem sei pra que tanta bala!!!)... pó branco nas entranhas do ex-operário Gervásio! Conclusão: o cara tinha ingerido cocaína, meu irmão!!!!!!!!! “Manda pro laboratório. Vamos analisar o teor de pureza!” A televisão anuncia: “operário qual nada (estava em moda a discussão sobre pena de morte – pra pobre, é claro), traficante de alta periculosidade. Bem feito! Um bandido a menos!” e o povo pensou (ainda não estou certo se o povo pensa, mas se a televisão disse não tem como não acreditar), o povo pensou que o cara era bandido mesmo... Veredicto popular: “culpado”. Sentença geral: “pena sumária foi bem merecida”... saiu o resultado da análise laboratorial: pó branco nas entranhas do Gervásio (operário assassinado com tantos tiros que foi um esperdício)... o pó branco era farinha!!!!!!!!!! Única coisa que Gervásio havia ingerido nas últimas vinte e quatro horas e aí a imprensa se omitiu (a livre imprensa de vocês se omite nas questões de justiça) e o pior é que não se pode pegar a televisão assim como se pega um jornal e fazê-la útil antes de jogá-la na lata de lixo. A imprensa se omite de tudo que não dá lucro – nem financeiro e nem ideológico. E sem remorso todos (principalmente os religiosos) esqueceram Gervásio e eu não o consigo esquecer; ele fica todo tempo me cobrando ação; e ele se confunde com minha sombra... Gervásio tem sido um fantasma para minha consciência... não queria admitir, mas me sinto cúmplice da vida-e-morte de todos os gervásios do mundo... e o pior é que não creio em psicanálise – já disse: psicanálise é o vácuo da ciência; é a pseudo ciência da conformação. E eu quero agora vomitar tudo isto e muito mais na cara de vocês, no prato da burguesia, na minha gorda conta bancária... e eu quero jogar o pó branco do Gervásio no ventilador de vocês... a farinha do Gervásio no ventilador da burguesia... Foi tiro demais para um pobre (redundantemente pobre) operário a quem bastava um empurrão para cair morto e vocês lhe deram bala quando ele queria apenas pão.
Um dia, perguntei a um endocrinologista, amigo meu – quero dizer: de quem sou amigo -, se o vômito tem seqüência lógica e cronológica; e ele riu com o seu jeito vago de rir e eu insisti: tem ou não? e ele disse entre dentes: “Sabes que nunca pensei nisso?!”
Este meu vômito, pelo menos, não tem uma seqüência cronológica lógica, nem os nomes próprios têm lá muita importância: Gervásio pode ser José, João, Severino, Nassif, Cienfuegos, Osawa, Lídia (você, Lídia, eu lhe vi morrer de fome!!!), você, Verinha, morreu de fome em meus braços, braços de verme socializável impotente e como impotente, o que foi que fiz? Nada! E nada é uma bela desculpa já que eu não pude fazer nada, principalmente naquela época em que minha preocupação era quase toda voltada para minha sobrevivência – eles também me queriam ver morto, com oitocentos e cinquenta e seis tiros, o corpo todo rendado... era (é ainda, disfarçadamente) assim que eles queriam me ver: pior que Gervásio, irreconhecivelmente rendado de balas de fuzis e metralhadoras (dizem que armamento obsoleto, doado às força armadas brasileiras pelos ianques), e eles não gostam quando eu falo ianques, preferem “americanos” como se somente eles fossem americanos e nós não fôssemos nada... e Gervásio também pode ser Rutinha, prostituída ainda na infância-adolescência (doze anos incompletos, segundo ela) e (deram graças a Deus!) ainda bem, pois era alugando o corpo que Rutinha sustentava toda a família (e eles davam graças a Deus por isso!), mas agora as coisas já não iam tão bem porque (já não dava para esconder) ela não era mais a mesma aos dezenove anos “você sabe como é, eles usam a gente; eles só querem essas menininhas... você sabe como é... quanto mais novas, melhor... você sabe como é... a gente fica assim... você sabe como é... ainda vou fazer dezenove anos em outubro (era março) e eles já não querem mais... você sabe como é... eles só querem usar a gente... você sabe como é...” É, Rutinha, eu sei como é, mas não me joga assim na cara não; é atroz demais, fere demais... eu sei como é, Rutinha, eu sei como é... E ela me perguntou com uma naturalidade quase ingênua: “E você?... por que não quer transar comigo? Nunca transamos, não é mesmo?” Sim, Rutinha, nunca transamos; você sempre foi como uma irmã para mim (sempre tive esta mania de sentir que todo filho – toda filha – de um operário – toda prole – é meu irmão), então, Rutinha, nunca te vi como mulher. “Mas sou, seu bobo. Experimenta-me, vem!!!” Não, Rutinha... contigo não! O que me dá prazer redobrado é transar essas gordas putas burguesas, fedendo a naftalina misturada com perfume importado; é isto que me dá o prazer de um vencedor: cornear a burguesia. Transar contigo, Rutinha, me daria apenas o prazer momentâneo do sexo e, depois, para o resto de minha vida, o trauma para minha consciência por ter alugado o teu corpo e comprado o meu prazer... eu me sentiria um traidor. Eu quero o prazer da vitória, do triunfo: quero me espojar sobre uma burguesinha, derramar o meu suor operário sobre o corpo dela e sentir o prazer de estar esporrando sobre toda a classe que delira em foder todo o proletariado. Contigo, Rutinha, eu teria a sensação de estar esporrando em nossa classe. “Estúpido! Dá, pois, à nossa classe, o prazer de suas carícias; dá, pois, à nossa classe, o prazer do calor do seu sexo...” suspirou profundamente e continuou: “De ti, eu quero somente o prazer; deles, eu quero a grana... eles deixam a grana deles comigo, mas do meu corpo eles não levam nada. Não me nega esse prazer, pois deles eu já tenho a grana.” Rutinha falava como as mulheres burguesas: os burgueses não dão prazer às suas fêmeas – elas, coitadas, somente conseguem arrancar deles a grana. Eu dei prazer à Rutinha talvez por solidariedade de classe, solidariedade proletária, e ela chorou (segundo ela) de felicidade; felicidade por ter feito sexo pela primeira vez depois de ter alugado o corpo tantas vezes para a satisfação de homens medíocres, mas agora ela fazia sexo, fazia amor, tinha prazer, êxtase... agora ela não estava transando o corpo... ela transava comigo prazeres, sentimentos, sensações, volúpias, gozos, carinhos, carícias, amores (sim, amores, pois nos instantes supremos do gozo nos chamávamos de meu amor, amor de minha vida, meu tudo...), ela me dava o que recebia e recebia o que dava... E Rutinha pode ser Carla, classe média-baixa, esperança de ser feliz, e ser feliz para ela (e quantas outras mocinhas) era casar (é ainda) com um macho que lhe pague as contas, que lhe compre tudo que ela admirar nas vitrines... e Carla me dava a sensação de que seu orgasmo era vestir o último modelo que passou na televisão. Quantas vezes eu a acariciando e ela gemendo (e quando eu pensava que fosse de prazer pelas carícias que eu fazia) ela suspirava: “Você viu como é lindo aquele Romeu e Julieta?” – Carla suspirava por jóias – e um dia eu disse (nem sei por que eu disse) que as mulheres não resistem a jóias e carros, e lembro-me que naquela ocasião eu repeti feito papagaio palerma que “jóia e mulher, quem tem uma consegue a outra” e ela riu, e até hoje eu não sei se ela riu por não ter entendido minha insinuação maldosa ou se por ter concordado comigo (comigo?!), mas eu não disse nada; eu apenas repeti automaticamente não sei quem nem por que... sei que havia uma inadaptabilidade entre nós incontrolável, e a cada dia eu me afastava ainda mais de Carla, até que um dia ela se foi tão naturalmente como os girassóis e como girassóis vieram outras, e pela enésima vez eu trocara de mulher (elas próprias me adaptaram a substituí-las uma pela outra sem escrúpulo e sem constrangimento), e Carla – aquela mulher que me incendiava na cama – virou apenas lembranças e agora memórias, assim como muitas carlas patrícias.

DINA
(LIÇÃO DE VIDA NA CERCA DE GIZ)

Ah! Dina... foi contigo que aprendi que o ser humano não necessita de castigo pelo seu erro, mas sim de estímulos para o acerto. Cada ato teu, cada gesto teu, cada palavra tua era uma lição de vida, e eu – obcecado pela liberdade – não queria me prender a ti. Meu mundo era um imenso teatro de fantoches e marionetes; um verdadeiro teatro de sombras. E eu era um servo da liberdade, um prostituto da justiça social. Dividia nossa cama com elucubrações, loucuras e ideologia... nem sei se te dei todo amor que merecias (ou pelo menos, que carecias), e isto atormenta a minha consciência. Nunca consegui te definir, Dina! Sou um escravo das adjetivações (dos adjetivos baratos, em particular); talvez seja por isto mesmo que nunca fui capaz de te definir, e continuas para mim um enigma e o atestado vivo de que fui (sou ainda) incapaz de amar exclusivamente uma só mulher, um só ser. E nem mesmo sei se sou capaz de amar.
Uma estúpida cerca de giz nos separou!!!... E eu aprendi – tu me deste com doçura, Dina, a lição – que não se pode cobrar nada de quem nada recebeu. E eu quis de ti o que nunca fui capaz de te dar. Eu encontrava em tudo, pretexto para justificar o meu egoísmo.
Há uma estúpida cerca de giz traçada entre nós! Intransponível cerca graças às mediocridades de primatas que ainda nos fecham em nós mesmos. E eu queria te amar mas o orgulho de imbecil foi bem maior. Não fui – ainda? – capaz de rasgar a camisa-de-força que me contém idiota: os preconceitos determinam nossos sentimentos e interesses.
Quando haveremos de ignorar esta estúpida cerca de giz?
Então, Dina, nossas diferenças não foram entendidas como complementos, mas sim como antagonismos.
E o que são os antagonismos, Dina?!
Os extremos dos opostos inconciliáveis ou o princípio da convergência dos opostos?! A conclusão das teses e das antíteses ou as antíteses das teses inconclusas?! A expressão do egoísmo humano em seu paroxismo ou o paroxismo da expressão inumana do egoísmo?!
A cerca de giz com a qual fingimos nos proteger: hipócritas!!!
Cercamo-nos de hipocrisias como nobres medievais em seus castelos, mas o que gostaríamos mesmo era de nos despir de todas as armaduras e deixar ruírem todas as máscaras que as normas e preceitos das putrefatas elites dominantes nos impõem!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Ah! Dina...
Nem mesmo os versos falaram mais alto do que as discriminações e os conceitos precipitada e criminosamente formulados: nem sempre vencem os melhores!!!

LIS
(VIAJANDO PELO SEU CORPO)

Conheço o corpo de Lis assim como conheço este país: cada curva, cada relevo, cada monte; chapadas, planícies, planos, altiplanos, planaltos, planalto central com sua flora rara e contorcida – quase encaracolada -, climas (aqui é bem mais quente, humanamente bem mais quente – e mente quem diz que acima de trinta e sete graus é estado febril)... e tanto de Lis como deste país eu conheço muitíssimo bem até mesmo as cascatas... E quantas vezes, acariciando o corpo de Lis, eu lhe disse: Teu corpo é minha pátria!?
O corpo de Lis era, humanamente, bem mais quente... mas havia uma diferença fundamental entre o corpo de Lis e o país que deveria ser a minha pátria: eu me sentia perdido no país em que nasci; já no corpo de Lis eu me reencontrava. No país em que nasci eu me sentia limitado e vivia encarcerado; já no corpo de Lis eu me libertava. No país que deveria ser a minha pátria eu era um pária, com o direito único de obedecer; já no corpo de Lis eu tinha todos os direitos – inclusive de opinar, de optar, de sentir prazer, de ser feliz... Eu fui felicíssimo quando o corpo de Lis foi a minha pátria!
Um dia, viajando pelo seu corpo, sem passaporte e sem fronteira, eu disse para Lis:
– Se tiveres de me exilar um dia, dá ao condenado o direito de tua misericórdia: antes que me exiles de ti, sepulta-me em tua chã fértil e acolhedora.
– Os homens estão sempre presos aos seus próprios interesses.
– Não entendi. Queres explicar?!
– Cada um procura um porto para ancorar... e por que não procurar um mar para navegar sempre? Navegar... navegar...
– Não estou te entendendo...
Indiferente às minhas dúvidas, Lis continuou, após fitar-me languidamente nos olhos:
– Tens um olhar de eterno condenado... É impossível acertar contas com a justiça; ela é podre como todos os porões. Ou não conheces os porões?! Os porões são o refúgio da justiça: é aí onde está o que há de excretório da sociedade.
– Lis!!!... – eu a interrompi e ela, indiferente, continuou:
– Crápulas e tiranos construem templos à justiça, para depois os transformarem em cadafalsos; em pelourinhos para imolação de inocentes.
Após um breve silêncio, ela arrematou com um profundo suspiro:
– Nem mesmo sei por que estou falando isto... Tu sabes bem melhor do que eu... Aliás, os porões não são o refúgio da justiça, são o santuário do judiciário, em todos os tempos e todas as civilizações!
Tergiversei. Divaguei sobre alguns avanços da medicina, em especial ao que concerne ao ramo cirúrgico e, destacadamente, fiz elogios enfáticos à medicina informatizada. Fiz rasgados elogios aos avanços na engenharia genética. Cheguei mesmo a dizer que se houvera algum deus, esse deus já estaria superado em muito por verdadeiros cientistas. Mas como Lis continuava calada, parecendo apática a tudo que eu falava, retruquei com veemência o argumento que eu gostaria que Lis houvesse feito e não o fez:
– Sim, Lis, há cientistas honestos – honestos e humanistas -, em que pese admitir que muitos são corruptos, embusteiros, serviçais e mercenários... Ou tu pensas que todos os cientistas são puros como a ciência?
Lis, como sempre, nada respondeu. Inclinou a sua cabeça sobre meu peito e quebrou o seu silêncio que tanto me incomodava com um longo suspiro. Eu, porém, insisti:
– Lis!... Estou falando contigo.
Nenhuma palavra, porém. E seria inútil insistir – jamais consegui uma só palavra dela em momentos assim. Eu estava começando a conhecê-la – admiti meu progresso – e apenas a acariciei. Sussurrei-lhe ao ouvido (não tenho certeza se com estas mesmas palavras): você virou meu mundo! Ela me envolveu com seus braços frágeis e vislumbrei o esboço de um sorriso em seus olhos – sim! quando Lis estava feliz, ela sorria com os olhos – e a abracei com força, conseguindo assim arrancar-lhe um prolongado e suave “estou feliz!”. Com os olhos entreabertos, ela me olhou longamente e num sussurro suave e profundo (o que me fazia chamá-la de gata manhosa) ela disse:
– Meu corpo é tua pátria, e sou a pátria que virou o teu mundo?! Isso mexe com meu ego, sabia? – e Lis me apertou com mais força contra seu peito...
Assim permanecemos por um bom tempo, sentindo eu o seu coração em taquicardia anunciando (ou denunciando?) a emoção que ela tentava disfarçar.
– Sim, Lis, teu corpo é minha pátria!!!
– Assim não vale.
– Como “não vale”?!
– É covardia descobrir o ponto fraco de alguém e explorá-lo depois. Não brinca com meus sentimentos, sim?
– Incrível! – exclamei atônito - Pensei que não tivesses sentimentos... ou não foi de ti que ouvi que as minhocas têm dez corações e nenhuma cabeça?
Mais uma vez eu me deixava levar pelo sentimento medíocre de vingança – pensando eu que era um eterno perdedor para Lis, eu não perdia oportunidade para ir à vindita – mas ela, em sua grandeza, apenas ignorava minhas mediocridades.
Lis tinha sentimentos e nunca os negara; apenas os submetia à razão, porque “os sentimentos racionais são humanos” – como ela mesma costumava dizer. Costumava, pois que Lis estava sempre progredindo, e tanto que já melhorara esse seu conceito: “os sentimentos racionais são mais que humanos: são humanistas”. E era isto que eu não estava sendo capaz de acompanhar nela: sua constante e eterna evolução, o que me dava uma terrível e incômoda sensação de defasagem entre mim e ela (mas de defasagem, não de antagonismo, felizmente).
Nossos momentos de silêncio eram bem mais eloqüentes.
Parecia haver em nossos corpos códigos de barras e sensores que se liam e se decifravam ao nosso contato. Uma mútua transcodificação e decodificação... Meus lábios em seu ventre, deslizando suavemente, era um tratado de paz e pacto de prazer; minha língua em circuncisão em seu mamilo esquerdo era o prenúncio do orgasmo incontido; minhas coxas roçando nas suas era o código da inevitável penetração... a respiração ofegante de Lis era o anúncio do êxtase que nos faz todos iguais.

“TREMENDA CARA DE MARGINAL”
CALDEIRÃO GEOGRÁFICO

Confesso que em tudo que já li de literatura da esquerda e esquerdista, apenas uma coisa me repugnou: “OS HOMENS BURGUESES PENSAM COM O ESTÔMAGO E AS MULHERES BURGUESAS PENSAM COM A VAGINA.”
Vi (com asco) em tudo isso uma mediocridade anti-revolucionária injustificável. E fiquei incontrolavelmente irritado.
Vinha eu de Machu Pichu (Perú), via Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), para fazer alguns “contatos”, tanto na Bolívia como no lado do Brasil.
Em Santa Cruz, forneceram-me um novo contato a ser feito em Quijarro (Bolívia), já na fronteira com o Brasil, a poucos quilômetros de Corumbá (Mato Grosso do Sul)... Em Santa Cruz, peguei o “Trem da Morte” (nunca tive a curiosidade de saber a origem desse nome tão sugestivo) e fui para Quijarro. No trem, um garoto falando um espanhol bastante carregado de sotaque nativo (o que me dificultava compreender o que ele falava) estendeu-me um panfleto, onde li em letras garrafais: “ANTES MORIR QUE ESCLAVO VIVIR”, e logo abaixo, convocações para luta pela reforma agrária e, em seguida, no rodapé, o que me irritou: “... LAS MUJERES BURGUESAS PIENSAN CON LA CLOACA.”.
Eu estava ali para “contatar” um burguesão local, “simpatizante da boa causa”, mas como (com que cara?!) eu haveria de receber “as contribuições” de um casal que “pensa com o estômago e a vagina”?
Mas não foi isso que me irritou. O que me enoja é a inverdade, a baixeza, a injúria, a injustiça...
Não fiz o “contato” - sou independentemente indisciplinado.
Já na barreira policial da fronteira, tive (o que para mim se tornou habitual e cômico) dificuldades com os policiais:
– Você aí...
– Eu?!
– Você mesmo!
– Por que eu?!
– Vamos, porra! Deixa de conversa...
– Mas por que logo eu?!
– ... tu tem uma cara de marginal, meu!
Isto se tem repetido sempre comigo – virou um ritual – e já sei, sempre que há barreira policial ou numa alfândega qualquer, que serei o “escolhido”, pois, segundo eles, tenho uma “tremenda cara de marginal”...
Só estou escrevendo isto porque foi exatamente esse preconceito policialesco que me salvou a pele muitas vezes e me deu livre trânsito para minhas atividades revolucionárias e subversivas. E tanto que, no início da década de oitenta, eu estava em Assunção – Paraguai – quando o ex-ditador nicaraguense Anastácio Somoza, deposto pelos sandinistas, voou pelos ares de Assunção com um disparo de bazuca, e imediatamente eu procurei sair do Paraguai, e o fiz com certa facilidade graças à minha “tremenda cara de marginal”, pois eles – os da farda – procuravam “terroristas” e eu tinha apenas “cara de marginal”.
Já no lado da fronteira do Brasil, escolhido eu por policiais federais para a “revista”, os quais fuçaram toda minha bagagem (que se resumia praticamente a livros), um agente da Polícia Federal do Brasil, folheando meus livros, olhou-me de viés e rosnou:
– Esse golpe do livro já tá manjado, meu!
– Que golpe?!
– Aí, Pereira; esse é daqueles que não sabem de nada! – disse o policial, dirigindo-se para o seu colega, ao lado...
Nessa época eu era Mário, mas sempre com este perfil de marginal e estrambótico (segundo o convencionado). De origem negra, trajando sempre fora dos padrões e “humildade que incomoda” – como dizem alguns.
Em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, sobrevivi alguns meses dormindo em uma cerâmica e consertando aparelhos eletrônicos em uma oficina de um tal Ferraz.
Eu sempre quis visitar o Maidana (há décadas preso pelo ditador paraguaio Alfredo Stroessner) e nunca o consegui. Várias incursões fiz ao território paraguaio e sempre incluí uma visita ao Maidana como um dos principais objetivos, porém nunca o consegui.
Em l983, o PCB (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO) publicou no jornal VOZ DA UNIDADE um poema que fiz em homenagem ao Maidana, e por ocasião da prisão de vários dirigentes do PARTIDÃO, como também da invasão da redação desse jornal e de minha detenção à época. Eu quis levar um exemplar do jornal para o Maidana, mas me confiscaram (segundo eles) o jornal e mais alguns pertences, em uma estrada do departamento de Amambay...
Da minha ficha no SNI (Serviço Nacional de Informações), a “inteligência” repressora da ditadura militar brasileira, fazem parte alguns poemas meus, como um que fiz para o Maidana: PRECE PELA AMÉRICA LATINA.
Costurei por muitos anos a fronteira geográfica brasileira, e numa freqüência tão aguda que, muitas vezes, anotava na palma da mão (antes de dormir) o nome da localidade onde me encontrava, pois que, quase sempre, minha cabeça virava um caldeirão geográfico. Em um mesmo dia saí de Cáceres (Mato Grosso – Brasil), entrei em San Mathias (Bolívia), peguei um daqueles péssimos aviões da Força Aérea Boliviana – ninguém sabe se chegará vivo ou morto – e, misturado à bagagem, cheguei até La Paz; daí, eu fui para Guayaramerim, atravessei o rio Mamoré (em geografia oficial, eles ensinam que é o rio que separa Brasil e Bolívia, mas eu sempre tentei mostrar para eles que o Mamoré une Brasil e Bolívia), e desembarquei da “voadeira” (é assim que eles chamam os barquinhos providos com motor de popa) em solo brasileiro mais uma vez, porém resolvi pernoitar em Riberalta (outra vez na Bolívia).
Foi nesta viagem que consegui mais uma “atividade paralela”: garimpeiro do rio Madeira. (Aqui quero tão-somente registrar que vi ouro tanto quanto cadáveres – ou cadáveres tanto quanto ouro?).
Há fatos que tentei por todo tempo apagar de minha memória – vã tentativa! Quis, por todo esse tempo, negar para mim mesmo a vivência de fatos e cenas que, já passados anos desde então, suas reminiscências ainda me deixam estonteado, me enchem de torpor; me atormentam com uma interrogação que, às vezes, não consigo crer na afirmativa: será que vivi tantas turbulências?! Será que vivi?...
Em tudo, os golpes mais terríveis são as irreparáveis perdas de pessoas que, no convívio e na luta, se fazem parte de nós mesmos.
Patri morreu no primeiro parto – foi um golpe terrível! – e ninguém pode (quem há de?) se conformar com aquela dupla estupidez: ainda morrem mulheres de parto (descobrimos atônitos e inconformados) e quem mais luta contra a miséria morre vítima dela! Zé Bento, clandestino de tantos anos – como ele mesmo me disse – virou “bicho do mato nos garimpos da Amazônia”. O Jorge foi atrevido até mesmo na morte: morreu sem me avisar; ele não tinha esse direito... não o perdoarei nunca por isso... Dos companheiros mortos, até então, a morte do Jorge foi o golpe mais terrível e triste para mim.
Muitos dos que lutaram pela terra foram assassinados! Tiveram, enfim, para si, a terra que tanto queriam para os sem-terras. E vi essas pessoas regarem a terra com seu suor e seu sangue na luta quase-ingênua por uma sociedade nova, justa e igualitária... Houve ingenuidade sim, mas não se pode negar que houve, acima de tudo, altruísmo, desprendimento, boa vontade, grandeza... Homens que dão a própria vida pela causa dos outros não são homens comuns.

REMINISCÊNCIAS DA INFÂNCIA
(“JUSTIÇA, UMA PROSTITUTA CEGA”)

Vêm-me agora reminiscências da distante infância...
A casa em pândegas com as tias que vinham da fazenda (do lado materno) sempre para as festas anuais e para as missas dominicais, mas mais para exibir roupas e jóias do que pelos sermões, ainda em latim.
Então vinham as tias com marcantes costumes europeus (havia ascendência espanhola pelo lado materno) e minha mãe nos fazia aquela chantagem:
– Tomem banho logo senão não verão a tia Nabel...
E, depois de apurado exame, nos dizia:
– Ah! As unhas não ficaram bem limpas; assim não verão a tia Dolores.
E lá íamos a fazer tudo outra vez como se tudo fosse festa.
Então vinham as tias carregadas de costumes europeus – lembro-me bem da tia Erenice com muito rouge (logo fiquei sabendo que rouge significa vermelho em francês) e muito batom e muitas jóias de ouro bom – e diziam para minha mãe:
– É, Regina... quero ver se Mac Dowel (era o tio dentista pelo lado paterno) põe ouro nestes dentes. – e mostravam os incisivos superiores.
E minha mãe deu uma boa gargalhada e minhas tias perguntaram:
– O que foi, Regina?!
E minha mãe disse, sem conter o riso:
– Não vos conto a última do Mac Dowel...
– Conta, Regina!
– Vou contar. Não sabem Antônio Furtado?... pois é... veio extrair uns dentes com o Mac Dowel...
– Vamos, mulher... pára de rir e conta logo! – pressionaram as tias.
– Pois é... O paciente se sentiu mal e Mac Dowel olhou para um lado e outro e só encontrou um boticão velho; pegou o boticão, o encostou no nariz do paciente e recomendou: “inspira bem fundo”, e o paciente disse: “Que remédio bom, doutor!”.
Então lá iam as tias outra vez embora para estarem de volta no próximo domingo ou na próxima festa quase que infalivelmente e me invadia uma curiosidade muito grande: de onde vem essa gente assim como tanajuras, assim como golondrinas, assim como regra de mulher, assim como as chuvas de janeiro, assim como só essa gente mesma tão periodicamente regular?!
Meu avô (pelo lado materno) quase nunca aparecia e quando vinham as tias havia sempre uma reunião secreta entre minha mãe e minhas tias e cuja reunião se iniciava quando minha mãe indagava:
– E papai?...
Esse avô era um homem alto, avermelhado, compleição avantajada, porém de pouca fala (pouquíssima fala) e quando falava era uma fala mansa e lenta e quase nunca aparecia mas um dia descobri que esse avô era um homem de dores silenciadas e sentimentos reprimidos e extremado gênio e demais sistemático esse homem que perdeu sua companheira ainda muito jovem (no parto em que uma de suas filhas nasceu) e dizem que era uma mulher muito bonita e refinada e amável e doce mas minha mãe não conheceu a mãe dela (que morreu quando ela nasceu e eu sempre vi isso muito estranho: uma morreu quando a outra nasceu) e quase nada nos sabia dizer dessa avó!
Havia histórias que eles mantinham em clima de mistério, principalmente quando pronunciavam uma palavra mágica (à época): “questão”. Era a questão (já adolescente fiquei sabendo) das terras do Russo Velho (modesto minifúndio do meu avô materno), cuja questão o pai de minha mãe há muito tinha com um latifundiário seu vizinho, e era “questão para ser resolvida a bala, porque essa justiça é muito lenta” – eles diziam –, “a justiça anda de tartaruga” – eles diziam –, “a justiça tarda mas falha” – eles diziam –, “a justiça é uma prostituta cega” – eles diziam –, “... não é cumpra-se a lei, é compra-se a lei” – eles diziam.
Bem por estes dias, refletindo sobre herança, principalmente sobre a da propriedade privada (privada mesmo!) de produção, não pude me furtar de profundas reflexões sobre o pensamento de Rousseau: “TODA RIQUEZA É UM FURTO” e sobre a “exploração do homem pelo homem” e, pelo lado paterno, lembrei-me da fazenda Belo Monte – herdade que o pai do meu pai lhe deixou – e fiz o poema que ora transcrevo:

BELO MONTE

Meu pai tinha uma fazenda
herdada do meu avô
modesta herança (dir-se-ia uma vingança)
que o pai do meu pai deixou.

O canavial...
Os homens cortando cana
(as mulheres se restringiam
à cozinha e à tarefa dos puxa-puxas durante o dia;
à noite, satisfaziam aos maridos
- as casadas, bem casadas;
as nem tão bem casadas satisfaziam aos vizinhos
e as solteiras satisfaziam aos solteiros
na bagaceira do engenho.
E talvez seja daí que bagaceira
adquiriu a significação léxica
de bagunça, algazarra, desordem, baderna...);
as éguas no cio,
o açude quase vazio,
os meeiros, o gado...
O que na terra havia
por herança ali se transmitia.

A rapadura quente na gamela
o mel borbulhando no tacho
o jeito imperativo do macho
a meeira mais formosa e bela
com a fazenda o meu pai herdou
do meu avô.

Os parentes davam-me livros e mais livros para minha insaciável sede (ou fome?) de conhecimento, e destacam-se aí Castro Alves (presente do primo Johnson...), Rui Barbosa (presente da prima Lúcia) e aguardando o jantar no alpendre da casa-grande devorei “Oração Aos Moços”... Do Rui, ficou-me profundamente marcado: “A NECESSIDADE DAS NECESSIDADE DE UMA NAÇÃO É A JUSTIÇA”. Depois, feito traça de biblioteca (e como esquecer a bibliotecária Adelaide?!, Biblioteca Humberto de Campos, “SOMBRAS QUE SOFREM”...). Dentre tantos, “O CAVALEIRO DA ESPERANÇA”...
E de Luís Carlos Prestes, “O CAVALEIRO DA ESPERANÇA”, jamais esqueci: “O JUDICIÁRIO BRASILEIRO SEMPRE PODRE. TERRIVELMENTE PODRE!”, o que tão bem se encaixava na conversação de minha mãe e suas irmãs!
Um dia não foram só as tias que se foram: aí na adolescência me desgarrei da família, iniciando a vida de gitano e hoje nem sei se eu seria capaz de viver de outro modo.
Sempre vi o mundo muito pequeno; muito mesmíssimo... O cordão umbilical não pode e nem deve ser reatado – teve sua função na vida intra-uterina e não mais – e ignorar as fronteiras sempre me fez bem.
As tias continuaram as visitas para as missas dominicais, suponho eu...
Por minha vez, deparei-me com “questões” pela terra em todas as partes, nas quais não só as “tias” morrem mas meus irmãos de todas as partes.

PERSIGNEM-SE...

(KARLA LENINA)

Persignem-se...
preceitos, conceitos, proposituras, razões...
a transitividade verbal,
a bomba no Nepal,
as mulheres de Bombaim,
a tragédia de Bhopal
(como esquecer 02/12/84 – Pimenta Bueno?!)...
A teoria salvadora de Oparin
- o homem é o único animal
que um dia olhou para trás e viu de onde saiu -,
“VINTE POEMAS DE AMOR E UMA CANÇÃO
DESESPERADA”.
Dois pontos sobrepostos por si sós
não explicam nada...
Risos, gargalhos, gargalhadas...
ânodo, cátodo, íons, enzimas, aminoácidos,
protozoários, proteínas, vitaminas,
ponto de apoio,
ácidos ribonucléico e desoxirribonucléico...
radical livre, base nitrogenada,
meus genes genialmente transcrevem
meu código genético na perpetuação da espécie.
Microscópica imaginação,
ação – vinte mil volts aceleram os elétrons –
tríades da “realidade virtual”,
(para meu gosto, Shekespeare é demais saxônico:
“Homem... Oh! orgulhoso homem! Ignorante
daquilo que tem mais certeza, faz coisas tão
fantásticas que...
Não há longa noite que não encontre um dia”)
- empirismo vão!
A Revolução dos Bichos
ou os bichos da Revolução de George Orwell,
O Cândido de Voltaire,
a Mãe de Gorki, os Ex-Homens Russos,
Os Miseráveis de Hugo, o Fausto de Göethe,
O Corvo de Poe, As Provinciais de Pascal,
o Manifesto de Marx e Engels...
“Que Fazer”, Lenin?
com Platão (ombros largos), Sócrates
só sabe que nada sabe
Rousseau, Tolstoi, Trotski, Brecht, Buñuel, Lorca,
Guillén, Nietzsche, Stirner, Phroudhom,
Luther King, Marti, Guevara, Puschkine...
As Catilinárias de Cícero
Canto Geral nerudiano
(não é canto gregoriano)
Confesso Que Vivi
a Marcha Fúnebre de Choppin
a 5a Sinfonia de Beethoven
o Bolero de Ravel
concertos de Karayan, Strauss,
Mozart, Tchaikovski...
As Quatro Estações
no inverno gélido das mulheres
e se nada disto te diz nada
é que és – no mínimo –
analfabeto!

– Bobagem, Karla Lenina; bobagem! era fácil ser comunista quando ser comunista dava status... era fácil ser comunista quando comunismo era uma “doce utopia”; era fácil ser comunista quando os comunistas estavam no poder... Agora, eles dizem que “comunismo é o sonho que não deu certo”, e eu não tive nenhum pesadelo, oh! minha doce Karla Lenina... Bulgária, Hungria, Polônia (quem diria?!), Lituânia... os comunistas voltam ao poder pelo voto – o tão decantado voto da democracia burguesa...
Bobagem, Karla Lenina... bobagem! Oh! minha doce Karla Lenina! Quanta bobagem eles dizem para o povo acreditar com toda sua religiosidade velhena e empirismo retardante?! Ah! minha doce Karla Lenina... bobagem, quanta bobagem crer em outros meios senão os científicos! Até mesmo o amor faz mal quando não se submete à razão, oh! minha doce Karla Lenina.
Já que fazem tanto pelo melhoramento genético de quase tudo – de abóboras a galinhas – por que não melhorar a raça humana? Por que ainda a estupidez da pena de morte, quando a ciência pode melhorar (não só o indivíduo, é verdade) mas a própria espécie? oh! minha doce Karla Lenina!
Dize-me tu, minha doce Karla Lenina, tu que, se houvesse deuses, já os terias superado, dize-me tu, oh! minha KL-1, tu que me destrinchaste todos os segredos, tu que suplantaste todos os medos, tu que sublevaste todos os oprimidos, tu que perverteste todos os resignados... dize-me tu, oh! Karla Lenina, onde – em que víscera ou em que neurônio – tu buscas e rebuscas tua grandeza!?!?!?!?!
Pura bobagem, oh! Karla Lenina... pura bobagem!... qualquer contestação a Stanley Miller é pura bobagem, oh! minha doce Karla Lenina!
Afirmar a existência de um P P L O (Pleuro--pneumonia life organisms) ou de um deus não é, nunca, a mesma coisa, oh! minha doce Karla Lenina!

MASSACRE EM TODA PARTE

Massacre em Rio Verde
massacre em Mirassolzinho
massacre em Jauru
massacre em Jaru
massacre em Vila Bela
massacre em Humaitá
massacre em Boa Esperança
massacre em Abunã
massacre em Brasiléia
massacre em Suapi
massacre em Periquitos
massacre em Bico do Papagaio
massacre em Monção
massacre no Araguaia
massacre em Livramento
massacre em Porto Murtinho
massacre em Cacoal
massacre em Ariquemes
massacre em Três Rios
massacre em Angicos
massacre em Canudos
massacre em Palmares
massacre na Candelária
massacre em Santiago
massacre em Córdoba
massacre em Vale Grande (sim, em Valegrande
também houve
massacre!)
massacre em Porto Príncipe
massacre em Granada
massacre na Somália
massacre no Bronx
massacre em Bangladesh
massacre em Ruanda
massacre em Quibumba
massacre no Chade
massacre na Tchetchênia
massacre no Chile
massacre na República Dominicana
massacre...
massacre...
massacre...
massacre... massacre... massacre... massacre...
massacres em toda parte!

Quando haverá um mínimo de indignação com tantos massacres?!
Quando iremos dar um basta a tantos massacres?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!

HELOISE
UM CASO INTERNACIONAL
(INARRÁVEL É A SEPARAÇÃO)

Devo admitir que minha gueixa não tinha nada de oriental: era loira, alta e esguia, olhos verdes, bastante agitada e autoritária. Falava mal o Português – aliás, tentava mesclar seu Francês clássico com algumas palavras de Português que ia aprendendo no dia-a-dia – mas não se cansava de vangloriar-se por ter estudado na Sorbonne e ter parentesco com Simone de Beauvoir (a eterna companheira de Jean-Paul Sartre e grande líder feminista). E era com incontido orgulho – que às vezes soava como arrogância – que ela se apresentava como Heloise de Beauvoir.
Heloise foi também o meu primeiro caso amoroso internacional.
É...
Heloise foi minha gueixa, e difícil é entender uma gueixa agitada e autoritária. Parece contraditório ou a própria negação do bom senso, mas ela era como se fosse uma homogênea massa erógena.
Quando ela não estava na cama, estava no espelho se narcisando e escrevendo com batom (ela vibrava com nosso estrangeirismo de origem francesa), e no espelho ela escrevia frases e/ou versos para mim.
– Heloise de Beauvoir... faze biquinho assim... ficar som feio sem biquinho. – insistia ela em me ensinar a pronúncia correta.
– Sim, madame de Beauvoir.
– Formidable! Formidable!
– É formidável, Heloise...
– Formidavél! Formidavél! – disse ela se atirando sobre mim e beijando-me freneticamente.
Gueixa sim. Heloise foi minha gueixa, pois o que fazem as gueixas senão tudo para agradar ao seu homem? Heloise fazia tudo (literalmente tudo) para me agradar.
Já havia decorrido quarenta e oito dias do seu prazo para regressar a França e Heloise não queria nem ouvir falar em deixar a Amazônia.
Nos dias mais quentes, ela dispensava qualquer refeição por sorvetes de cupuaçu e frapês de biribá. E levava não menos que meia hora para degustar uma pequena taça de sorvete – que ao final já nem era mais sorvete – e aquele ritual de paciência sempre me irritava, e mais ainda quando ela interrompia:
– Cupuaçu!... Fantastique!... cupuaçu!...
Um dia, comentei com Heloise que ela dava uma preferência quase patológica a todas as coisas que tinham denominações oxítonas e como resposta à minha observação ela disse que isso lhe dava a sensação de que estava falando sua língua-pátria, pois o tupi-guarani – a exemplo do francês – é língua cujas palavras terminam em sílabas fortes. E Heloise não se deliciava tanto com sorvetes de cupuaçu e frapês de biribá o quanto se deliciava entremeando cada sorvo com um longo “cupuaçu” pronunciado sonoramente com fonação labial.
Heloise era agradavelmente contraditória; era doce e dócil, culta e pueril – bucólica às vezes e amável sempre – e esnobe em sua potencialidade cultural. Estava sempre repetindo que me amava desde o momento em que percebeu minha paixão pela cultura francesa e me chamava em público de “ami de france, ami de Sartre, ami de Exupéry, ami de Eluard, ami de Molière, ami de Voltaire...”.
Heloise já havia conseguido mais noventa dias de permanência quando, inesperada e inexplicavelmente, recebeu um ultimatum do governo para que ela deixasse o país “no máximo em 48 horas”. E estarrecidos, e indignados, e constrangidos, e constringidos e não menos consternados fomos informados (por fonte infiltrada) de que a expulsão de Heloise se devia ao fato de que passara ela a ser “persona nom grata” desde que se “rebaixara a amante desse comunistinha filho da puta”. E não menos consternada Heloise disse entre soluços, rosto no meu peito, lágrimas mornas, inconformada (como se diz: p da vida):
– Que pays c’est, enfin?!

Heloise se foi – eu não podia ir e ela não podia ficar – e inarrável é a separação.

Certo é que nunca mais eu soube de Heloise e nunca eu soube responder nem para mim mesmo que país é este, afinal.

UM ESCARRO VERMELHO
TRÊS SODALITAS
UM MAÇOM E OS SEGREDOS DA MAÇONARIA
ELA E VOCÊ

Um escarro vermelho – quase azulado de tão vermelho – saído das entranhas dos pulmões (do que antes fora pulmões), agora semidestruídos pela tuberculose, foi jorrado pela boca, e aos borbotões e entremeando aquela tosse descomunal, o sangue jorrado pela boca daquele sobejo da morte parecia uma volúpia incontrolável.
Quando já parecia recuperada, veio nova crise de tosse e desta vez bem mais terrível, ao que parecia. E em meio a uma crise e outra ela se esforçou para recuperar o fôlego e sonorizou o seu pensamento:
– “Há mais humanismo neste escarro do que em toda vã filosofia cristã”.
Você lembrou que a frase é do poeta Augusto dos Anjos, pronunciada em idênticas circunstâncias, de sobre a ponte Buarque de Macedo, em Recife; ela, porém, não lhe deu a menor importância e continuou tossindo.
Havia um pingente pendurado em seu pescoço por um grosso cordão de ouro. O pingente era formado por três sodalitas lapidadas em formato cabochão, dispostas em forma triangular e no centro havia um brilhante que sugeria um olho escrutinando você todo tempo; e com a terrível tosse o pingente balançava de maneira violenta. Você sugeriu que ela tirasse o pingente, alegando que “parecia machucar”, ao que ela retrucou:
– Vou morrer com isto aqui... Foi ele quem mo deu... Foi a última coisa que ele me pediu... Vou morrer com isto aqui...
Ela tossiu por mais umas três vezes e continuou, já aliviada:
– Ele era maçom... foi excluído... Ensinou-me o trolhamento... – ela tossia entremeando a fala; tomou fôlego e continuou:
– ... o principal segredo deles, e costumava dizer que “o que tem segredo não presta”. E ele foi excluído da maçonaria porque não tinha segredo. E ele me ensinou o trolhamento, que é assim:
– “Sois maçom?
– Meu irmão como tal me reconhece.
– De onde vindes?
– De uma loja de São João, justa e perfeita.
– Que trazeis?
– Amizade, paz e votos de prosperidade a todos meus irmãos.
– Nada mais trazeis?
– O venerável de minha loja vos saúda por três vezes três.
– Que vindes aqui fazer?
– Submeter minhas paixões e estreitar os laços de amizade que nos une como verdadeiros irmãos.
– O que se faz em vossa loja?
– Edificam-se templos à virtude e cavam-se masmorras ao vício.
– Qual a palavra sagrada?
– Meu irmão, não sei pronunciá-la sem soletrar; portanto dai-me a primeira sílaba que vos darei a segunda.
– BO...
– AZ...”
Ela voltou a tossir e continuou, ofegante, desenvolvendo aquela narrativa que mais parecia um lamento saudoso:
– Parece uma coisa sem sentido, medieval. BO mais AZ são duas sílabas da palavra BOAZ, que era o nome de uma das colunas que sustentavam o templo de Salomão e agora serve de “palavra sagrada” para os maçons. No que não vejo nexo, pois maçom é uma palavra francesa e significa pedreiro e maçonaria era uma associação de pedreiros – principal profissão no período da revolução francesa, visto que com o fim do feudalismo a grande população que morava no campo foi-se aglomerando em torno dos teares e formando os burgos, dando origem assim à burguesia, de quem herdou o lema: “liberté, égalité, fraternité” – para eles, é claro! Um dia, ouvi alguém lhe perguntar: “Que idade tendes?” e ele respondeu “três”; fiquei intrigada, pois ele não era de mentir. Quando ficamos sós, eu lhe observei, repetindo a pergunta: que idade você tem mesmo?!
– Trinta e três.
– Ah! É que eu só ouvi o “... três”.
– Quando?
– Quando aquele homem lhe perguntou...
– A pergunta foi diferente: “que idade tendes”, não foi?
– Sim.
– É a idade maçônica; faz parte do trolhamento e... (disse-me ele com descaso).
Ela tossiu novamente e outro escarro lhe aflorou, quase lhe sufocando, pois agora já vinha uma porção grande de coágulos vermelhos de matiz quase preta. Você olhou o pingente e aquele brilhante parecia mais ainda com um olho escrutinador querendo desvendar o que transcende a capacidade humana de ver. Você se assustou como se tivesse um segredo a ser desvendado. Na ausência de birrefringência, o brilhante emitiu um jogo de cores como se fosse alguma coisa viva, latente. Você se assustou ainda mais e estarrecida pareceu mais uma esfinge sem enigma. Ela relanceou um olhar melancólico sobre o pingente e num ímpeto quase irracional – animalesco mesmo – ergueu a cabeça e cresceu em si mesma, dizendo em uma fonação altissonante:
– Tudo são questões matemáticas. A dor é a coisa mais trivial na vida; portanto ela não nos pode dominar. Vendo do prisma mais elementar da noção de conjunto, a dor está contida em mim e eu contenho a dor; a dor não me contém e nem eu estou contida na dor. Portanto é mais que racional concluirmos que a dor que eu contenho não pode me dominar. Ela é quase infinitamente menor do que eu. Portanto eu sou quase infinitamente maior que a dor. É preciso, sempre, superar a mim mesma. A única certeza da vida é a morte, o resto adquire uma dubialidade atroz, estonteante, catastrófica até! Uma dose de morfina e um cruzado de direita no frontal têm o mesmo poder sedativo. “A mão que acaricia é a mesma que apedreja”; a boca que cospe é a mesma que beija; a loucura e a genialidade se confundem... Eu sou nada sem ele; estou morta em vida desde que ele morreu. Não consigo, até hoje, desassociar a minha existência da sua inexistência.
Você ouviu tudo aquilo quieta, parada, estarrecida, atônita... patologicamente atônita!... Aquilo tudo deixava você confusa ao ponto de não saber distinguir se o que estava ouvindo era uma patológica filosofia ou se uma filosófica patologia.
Quando ela olhou você – suavemente bem dentro dos seus olhos – foi como se alguém estivesse lhe cobrando uma dívida tão antiga quanto impagável. Por vergonha, por questões de consciência talvez, você foi baixando a cabeça como se estivesse envergonhada de si mesma ou se um peso insuportável lhe forçasse a cabeça para baixo... Um profundo silêncio tomou conta dela e duas lágrimas deslizaram suavemente por aquelas faces lívidas; e foi como se ela chorasse com pena de você. Você que não suporta o mais mórbido olhar porque se sente cúmplice de todo mal do mundo. Você que não resiste ao mais subtil olhar porque se sente acusada por toda miséria do mundo. Você que não tolera o mais singelo olhar porque se sente responsável por toda infelicidade do mundo. Ela se aproximou de você e lhe ajudou a erguer sua cabeça, pois ela aprendera dividir, não suas tristezas mas sim as suas alegrias; não suas dores mas sim os seus prazeres; não suas infelicidades mas sim as suas felicidades.
A partir daí houve um profundo silêncio, silêncio sepulcral onde se pode ouvir o barulho enlouquecedor da própria consciência, e a dor se faz companheira necessária, posto que nesta solidão de mortos até as más companhias são bem vindas. Ela esboçou um sorriso cadavérico e citou Omar Khayyam como se estivesse falando para uma multidão eufórica:

– “Vida, jogo monótono
em que só se está certo
de ganhar duas coisas:
uma, a dor; a outra, a morte.

Mais sábio é meditares sobre
Esta certeza: morrerás
E não sonharás mais e os vermes
Ou os cães comerão teu cadáver.”

Ela continuou falando como se estivesse traduzindo sonhos:
– Não tenho a pretensão de ser a melhor mas me recuso estar entre as piores. Ser livre é tudo, principalmente ser livre para tudo. E eu sou livre e tenho a liberdade de não querer a vida das hienas, porque a vida para mim é um ato de liberdade e dignidade e deve ser orgasmo contínuo e constante de dignidade. Antes morrer do que rastejar feito um verme. Não consigo ver, objetivamente, a diferença entre a camisa-de-força e a camisa-de-vênus, pois ambas foram feitas, exclusivamente, para reprimir. E as forças repressoras que se escondem por trás de ambas as camisas ejaculam precoce e sadicamente ou nem ejaculam mais, retratando o prazer desses canibais (devo dizer animais?). Os que usam ambas as camisas repressoras não o fazem por prazer: o dito “louco” é obrigado a conter o orgasmo da liberdade total (exclusividade dos loucos); e o amante ou parceiro casual é obrigado a conter a loucura do orgasmo no momento supremo do sexo (homem-bicho: animal desconexo) digo: momento supremo da vida sem o qual não há vida.
Ela fez uma breve pausa, fechou os olhos e continuou:
– Subjetivamente (ou animalescamente?) os indivíduos – em atos descontinuados – se subtraem e se destruem; e reprimem e se reprimem; amputam e castram, e se castram, e em nome da moral e da legalidade agem como canalhas, déspotas e tiranos. Um dia eles decretarão: “a paz é uma utopia e todo aquele que com ela sonhar deverá perdê-la”. Os ianques e seus “aliados” voltam a atacar o Iraque – é a “nova ordem”, velha desordem mundial. E o ano passado será um ano de relativa paz; o ano que vem foi um ano de absoluta paz; o ano que nunca virá é o ano da verdadeira paz; o ano que fora seria o ano da prometida paz; a paz concedida, negociada, vendida, comprada... Querem até decretar o fim da luta de classes como se fosse possível ocultar a brutalidade das diferenças entre classes em luta com um simples decreto. A filosofia dos conformistas diz: “onde comem dois, comem três”, na vã tentativa de omitir que onde dois passam fome, três passam muito mais...
A noite e o dia se confundiam na indefinição do arrebol e ela silenciou abruptamente como se quisesse ouvir o eco da própria voz. Mas tudo se fez silêncio; um silêncio irritante de velório. Um silêncio fúnebre dos que já não existem mais.

O CHINÊS E OS ORANGOTANGOS

Foi em um país da América Central que um dia você conheceu a lenda dos orangotangos, contada por um chinês:
– Os orangotangos se recolhiam à noite e com a noite vinha chuva e frio, e os orangotangos diziam: “Amanhã construiremos nossas casas. Construiremos!” E vinha o sol e os orangotangos, saltitando de galho em galho, passavam o dia em festa. E chegava mais uma noite e com a noite vinha também chuva e frio, e os orangotangos diziam: “Amanhã construiremos nossas casas. Ah! construiremos.” Porém, ainda hoje os orangotangos não construíram suas casas e só se lembram de construí-las quando vem a chuva e o frio.
Você ficou de olhos arregalados querendo entender, talvez, que o chinês estivesse com gozação, só porque o seu país tem o maior número de favelados do mundo, e a China tem a maior população do mundo (pra mais de um bilhão!) e não tem favela. Foi quando você quis retrucar e não teve o que dizer, e por não ter o que dizer há pessoas que dizem qualquer coisa, mesmo as que não têm nexo; e assim você falou:
– Ó, China!... ainda não temos a concepção do certo nem do errado, pois o próprio relógio parado marca hora certa duas vezes ao dia.
O China fechou ainda mais os olhos como se estivesse penetrando ou rebuscando no próprio cérebro alguma resposta, alguma explicação; e aí houve apenas o diálogo dos olhos entre o chinês e você, sem a inconveniência da barreira das línguas.
Parecia melhor assim! Naquele silencioso diálogo parecia haver maior compreensão e entendimento!
– O que têm feito os poetas senão antecipar o futuro?
O silêncio e a paciência fazem um sábio; o sábio faz, com paciência, o silêncio; e, em silêncio, faz tudo com paciência.
O chinês quebrou o silêncio com mais uma frase solta e acendeu um charuto cubano que trazia num canto da boca. Aí você riu! Intimamente, maliciosamente; sadicamente você riu! Pensando em dar o xeque-mate no chinês, você bradou:
– Fumar – como todos os vícios – é um ato de extrema ignorância e primitividade, do qual eu não compartilho.
O chinês ignorou a provocação e falou pausadamente, orientalmente:
– Eu sou um cidadão do mundo, sem pátria e sem patrão. Venho tentando, há algum tempo, adquirir algum vício e tenho dificuldades. Sabendo-se que os vícios são primitivos e geralmente orais, sendo mesmo adquiridos ainda na vida intra-uterina, quando o feto chupa um dedo, adquirindo e desenvolvendo outros ao longo da existência, o ser humano nada mais é do que um viciado. Conheci um viajante que viciara a filha, trazendo sempre um presente para ela, quando viajava. Um dia, esse pai morreu em uma viagem e trouxeram o seu cadáver para casa e sua filhinha, viciada em receber presentes do pai viajante, sempre que este viajava, exclamou: “Ah! ele nem trouxe o meu presente!”.
Você se sentiu órfão, e desejou que ela estivesse com você, pois certamente ela lhe ajudaria a sair da incômoda situação que o chinês lhe impusera. E foi pensando na amiga que ela é que você sussurrou aliviado:
– Amigo a gente escolhe, parente não!
– As pessoas costumam medir as outras com sua própria medida: para o ladrão todo mundo é ladrão; para o desonesto todo mundo é desonesto; para o demagogo todo mundo é demagogo...
O chinês foi interrompido pelo pigarrear censurador de um famoso politicóide sul-americano que se sentiu ofendido e se entendeu no direito de fazer a censura ao chinês. Este, porém, inabalável como um velho sábio chinês, ergueu a cabeça e quase num paradoxo arregalou os olhos e continuou inabalável a sua fala:
– Os déspotas e tiranos costumam ver, e tratar, todo mundo como se fosse um apêndice de seu quintal. Julgam-se superiores e senhores de tudo e de todos. Um dia, em Xangai, um mandatário europeu, ao ouvir as vaias da multidão na rua, cuspiu em direção da multidão revolta. Como o carro estava em considerável velocidade o cuspo lhe foi de encontro ao rosto, o que deixou o mandatário ainda mais enfurecido. Ele fez parar o veículo e pegou um patrício meu pelo braço e aos berros – como se todo mundo fosse obrigado a falar sua língua – quis obrigar meu patrício limpar o cuspo do seu rosto. Meu patrício não entendia inglês mas gritos e arrogância se entende em qualquer língua. Aos safanões, meu patrício se livrou das garras e da prepotência do europeu e bradou furioso, com o dedo indicador esquerdo em riste, na ponta do nariz do europeu: “Fala baixo, senão eu grito!! Estás na pátria de homens e não de vermes.”.
Você interrompeu o chinês, repetindo, como de costume, o escritor francês Emile Zola:
– “Conheço bem esses políticos e generais! Salteadores é o que são. Capazes de nos roubar até a camisa numa curva qualquer da estrada.”.
O chinês, sem ponderar, acrescentou:
– As pessoas (friamente, animalescamente) são capazes de te devorar; são capazes de te esmagar; são capazes de te esganar, te dilacerar, te sugar; e se possível – sadicamente – te devoram célula por célula; te sugam célula por célula e... para essas “pessoas” é mais prazeroso o sacrifício alheio do que seu próprio bem-estar. Elas não se satisfazem na plenitude do seu egoísmo e de sua ganância. A mim, particularmente a mim, me estraçalha as entranhas e me revolta íntima e profundamente qualquer forma de exploração! Nada é, para mim, tão brutal e desumano e, portanto, vil, como a relação espoliativa entre as pessoas. Há, também, pessoas que se consentem na exploração e no medo; que apenas silenciam e se deixam explorar. E o silêncio dessas pessoas que se consentem na exploração é – de uma forma ou de outra – uma conivência. Um estímulo aos que não se saciam na mesquinhez do seu egoísmo. Eu, porém, fiz do meu medo a minha coragem. Não me assusta a morte; às vezes, viver me assusta muito mais.
O chinês fez uma breve pausa e continuou:
– Morte e vida; amor e ódio; vida e morte... dualidades atrozes. Eu, porém, prefiro viver de tédio do que morrer de amores. E existência é uma atroz e paradoxal retirada: quanto mais se anda mais se recua; cada passo adiante é mais um passo para trás. Toda existência acaba no silêncio único! No injustificável vazio! no bestial esquecimento!
Depois de um longo suspiro, como se quisesse engolir o ar, como quem quer transbordar-se de vida depois de uma existência mesmética, o chinês prosseguiu:
– O religioso dá graças ao seu deus por ter casa, comida, saúde... Eu abominaria um deus que injustamente me concedesse tais privilégios entre milhões de crianças esfarrapadas, que morrem de fome a cada instante.
– Falas de crianças que morrem de fome!!!... Neste instante – exatamente! – milhares de crianças nascem na rua, e crescem na rua, e delinqüem na rua, e se prostituem na rua, e assaltam a mão armada na rua para sobreviver!!!!!! Milhares de crianças – exatamente neste instante! – morrem nas ruas de minha pátria! E ninguém – ninguém!! – nunca lhes deu nada, mas todos se sentem no direito de lhes cobrar tudo, até a liberdade e a vida. Falas de religiosos!!!... e neste instante – exatamente! – milhões de religiosos se prostram nos seus templos com a consciência inabalável para rogar ao seu deus graças para si e, quando muito, para os seus! Não há expressão de egoísmo maior que a religiosidade; ou viste algum homem saciado, feliz, rico e com muita saúde agradecer ou rogar nada a algum deus?! – disse você, fazendo um adendo à fala do chinês.
O famoso politicóide sul-americano quis forçar um hiato naquela conversa para concluir sua censura, porém, o chinês deu o arremate final:
– Nada fere mais a um ditador que a audácia de um libertário. E ditadores são todos aqueles que ditam aos outros o que eles mesmos não são capazes...

“O AMOR ME FARIA LUTAR,
NO ENTANTO EU DESISTO”

– Se não fui capaz de te conquistar, sou, pelo menos, capaz de reconhecer o meu fracasso. Fracassei, e daí? Resta a vida – sobrevivi! – Tocarei o barco; seguirei por outros mares; enfrentarei novas tempestades e se o barco afundar, seguirei a braçadas; serei sempre o náufrago, mas e daí? Serei, também, sempre o supérstite, pois de tantos naufrágios na vida, aprendi que o simples sobreviver é a única bonança nos mares revoltos da existência. Recomeçarei a vida quantas vezes me queiram destruí-la!... pois lutar é o lema. Lutar! Lutar sempre, mesmo que a derrota se prenuncie inexorável... mas lutar!... Sonhei sempre com um mundo onde não havendo coragem, houvesse ao menos um pouco de dignidade; onde não havendo justiça, houvesse ao menos um pouco de compreensão; onde não havendo amor, houvesse ao menos um pouco de tolerância, e onde não havendo liberdade, que houvesse toda indignação e revolta, prevalecendo sempre a liberdade e o direito de todos.
E dito isto, houve um profundo silêncio! Um imenso silêncio; um imenso vazio como de uma ausência total que submete e esgana e sufoca, como o sonho que acaba e a esperança que morre. E ela, ensaiando talvez sua retirada definitiva, disse apenas:
– O amor me faria lutar, no entanto eu desisto.
– Descobri que o sentimento é a razão desenfreada, descontrolada mesmo. Assim, compreendo, agora, por que te amo tanto. - E como quem desperta de um pesadelo, ele apenas sussurrou:
– Havia a esperança, é certo! E há pessoas que assassinam esperança, roubam direitos e mercantilizam a liberdade. Há pessoas que, por não serem felizes, se especializam em exterminar a felicidade alheia. Havia a esperança, é certo! E quando morre a esperança nós morremos um pouco também, juntos. Havia a esperança, é certo! e com ela se foi uma parte de mim! uma parte boa de mim! E quando se vão as esperanças a vida também se esvai. No entanto, enquanto me restar alento, continuarás sendo parte de mim – a parte melhor de mim – pois tu sobreviveste em mim até mesmo quando eu mais quis te negar e te arrancar de mim; era como se, na mesma proporção, mais eu quisesse te negar e te odiar e me afastar de ti, mais eu te afirmasse e mais te amasse e mais me ligasse a ti. A negação deste querer (que se entenda também amar) é a tentativa vã de ocultar aquilo que já não posso mais conter em mim, como coisas grandiosas que, às vezes, a muito custo, eu trago silenciadas e abafadas e comprimidas em mim. Tu, porém, explodes em mim e transbordas em mim. Todos nós somos feitos de esperanças e quando morrem todas as esperanças viramos suicidas em potencial ou nulidades humanas. Tu, porém, reacendeste em mim sentimentos e esperanças que, se não estavam mortos, estavam – no mínimo – abafados, silenciados, retidos... e assim sendo, é como se me tivesses retornado à vida.

A LEGITIMIDADE DA VIOLÊNCIA
CONTRA A VIOLÊNCIA INSUPORTÁVEL

Defendíamos a legitimidade da violência contra a violência insuportável! Era mais que o vox victimae! Isto queria dizer que admitíamos a luta armada em caso estrênuo – mas admitíamos – não apenas ou necessariamente como meio extremado de ascensão ao poder, mas como única forma de sobrevivência; e há apenas três leis universais para o homem (às vezes – ainda!!! – imutáveis e imperativas): a lei da sobrevivência, a lei da gravidade e a lei da gravidez; e uma quarta Lei, que é a LEI DO ESPERNEIO (Esperneandus), a Suprema Lei da última instância das apelações de um condenado, pois mesmo condenado a morte, o indivíduo pode e deve, não somente morrer esperneando, mas de preferência cuspir na cara do seu algoz, pois as demais leis (elaboradas pelo homem) são apenas defesas classistas e oligárquicas, temporárias e casuísticas.
Assim, tínhamos a obrigação de resgatar o tribuno romano Marco Túlio Cícero: “Não me submeterei às leis de César; não é pelo fato de existir a lei que a lei seja justa, principalmente a lei de César”. E nós apenas substituíamos César por burguesia.
As leis são, na sua totalidade, injustas com a maioria e tínhamos nisto o fundamento para toda nossa atividade subversiva. Era ponto de honra – para nós – subvertermos a ordem estabelecida por uma minoria e regulada por leis injustas. Então, partindo destes princípios, supúnhamos que toda nossa subversão fosse heroicamente justa.
Ingênua pretensão?
Não tivemos a opção de escolher o lado – já nascemos do outro lado da cerca: nascemos no quintal dos herdeiros da miséria – e eu, particularmente, tinha pretensões (no mínimo!) esdrúxulas para a maioria. Citava, desde a infância, pensadores malditos e desde então já me cercava das mais esdrúxulas idéias para meu meio. Era assim que desde cedo não só citava Pascal como também limitava meus atos às idéias de Tolstoi, Marx, Mao, Guevara (e como eu vibrava com as idéias de Guevara!): “Sejam sempre capazes de sentirem a mais profunda revolta contra toda e qualquer injustiça praticada contra quem quer que seja, e onde quer que seja”; Lenin; Stalin (Stalin foi grandioso, visto no seu tempo e na conjuntura internacional épica, e querer ofuscar isto é mais que mediocridade e estupidez – é inumano!) e eu pergunto: os “aliados” teriam derrotado o nazi-facismo sem Stalin?...
Bakunin...
De Pascal eu citava abusivamente “A grande virtude das pequenas inteligências é discutir as pessoas; a grande virtude das médias inteligências é discutir as ocorrências; porém, a grande virtude das grandes inteligências é discutir as idéias”. E corri mesmo o risco de parecer pretensioso em propor-me exclusivamente discutir idéias, ao nível (o correto é nivel) acadêmico, com proposições objetivas e racionais, à luz da razão e da ciência, pois que, de outro modo, a paixão far-nos-ia cegos, caolhos, míopes, parciais e, consequentemente, injustos e desumanos.
De Terêncio, aprendi "Homo sun: nihil a me alienum puto" (Sou homem: nada que é humano me é estranho).
De Cícero, não buscávamos o Direito Alternativo como contraposição ao Direito formalmente instituído, e nem mesmo como alternativa menos nociva e menos injusta para os conceitos “atuais” (que não são nada atuais – são marcadamente emaranhados nas teias de aranha da sociedade romana e pouco mudaram) do Direito; nem a alternativa buscada e exercida pelas instituições judiciárias, e tão menos o Direito estabelecido e formal, até porque, a princípio, éramos anarquistas e eu não era simplesmente o garoto tolstoísta da negação metafísica e evangélica do Estado. Eu, particularmente, sugeria de forma não mais propositiva, mas como opções, o Direito Diferenciado e a supressão do Estado. E mais que quaisquer adjetivações que déssemos ao Direito e ao Estado, o que propúnhamos (e proponho ainda) é o Direito em sua plenitude, sem o entrave ou o intermédio do Estado, o que sustentaria e equilibraria uma sociedade justa – verdadeiramente JUSTA – e igualitária (na concepção marxista de que “A igualdade consiste em tratar desigualmente o que é desigual”).
Para isto, o conceito acadêmico do Direito – ou de leis como regulamentação dos Direitos – era, para nossas concepções, vago e ambíguo, com o propósito implícito de dar margens a interpretações várias, ao gosto e sabor das conveniências e interesses a prevalecerem (e prevalecem sempre os poderes político-econômicos de grupos dominantes, em detrimento da Justiça, do Humanismo, da Ciência e da Razão).
Para nossas concepções o juiz não podia (ainda para mim) ser nunca “o intérprete da lei” (a ser objeto de interpretação, a lei seria – e o é em várias civilizações – “faca de dois gumes”). E a lei não pode resultar em injustiça, pois que senão resulta em crime o que deveria ser bom senso; e criminoso é aquele que, tendo o dever de fazer Justiça, cegamente ou caolhamente aplica a lei.
A lei do mais forte sempre foi a lei dos animais, concomitantemente o uso da violência assume a proporção inversa ao desuso da inteligência. E indagávamo-nos: “Há, em qualquer civilização, e em qualquer tempo, registro de uma instituição mais violenta do que o judiciário, com seu braço repressor e todo seu mecanismo policial?”.
Amargamente descobri que toda inteligência sempre esteve a serviço da força bruta – quando não, funciona como sua coadjuvante.
“É a lei”...
O judiciário é, em quase todos os países, um monstro de papel inconstitucionalíssimo, já que a quase totalidade das constituições do mundo reza que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” (hipocrisia ou inconstitucionalidade intencional?!), e não há meia dúzia de países no mundo onde os membros do judiciário são a expressão do povo; pelo contrário: um bacharelzinho em Direito, que tem a única virtude de reconhecer que jamais seria um bom advogado, faz um concurso público (como um concurso qualquer tipo loto ou sena) e vai julgar pessoas probas, honradas, honestas, ilibadas, IRREPREENSÍVEIS... Já quanto ao executivo e o legislativo, sem questionar os méritos intrínsecos, pelo menos o povo tem (mesmo manipulado) o direito de escolher seus membros em sufrágios populares... e, de caras pintadas, destituir-lhes do poder delegado, quando a corrupção, o despotismo e a tirania se tornam insuportáveis.
Os juízes, antigamente, eram escolhidos dentre os anciões mais justos e sábios; aqueles que dedicaram toda sua vida à justiça, à moral, à imparcialidade e foram – por toda vida – exemplos constantes de retidão...
Há uma criminosa sinonimização de Judiciário e Justiça.
A Justiça é a verdade concretizada; portanto, não há aquela sem esta. Já o Judiciário... só nos lembrava Carlos Prestes: “O Judiciário brasileiro sempre foi podre”...
Sim, éramos conscientes de tudo isto, mas admitíamos a luta armada na justificativa extremada da “legitimidade da violência contra a violência insuportável”, e não tínhamos mesmo a pretensão de sermos gandhistas – e aí pesava minha particular admiração pelo líder da independência da Índia:
“Se vocês não podem ser não-violentos, sejam violentos; o que vocês não podem ser é indiferentes”.
Mais que ninguém, não tive o direito de escolher o lado – já fui abortado no lado inumano da cerca, entre mendigos, espoliados, deserdados, explorados, párias, atrofiados da fome; entre prostitutas, entre trombadinhas, entre injustiçados... e quando me diziam: “Sossega, Mário; tu não vais mudar o mundo!”, eu apenas replicava:
– Pois continuarei lutando assim mesmo para que o mundo não me mude! Terei, ao menos, a consciência tranqüila de que fiz a minha parte.
– Sossega, Mário; tu não vais mudar o mundo! – dizem-me ainda, e até quando?!

MÔNICA
(CAVALGANDO EM PELOS)

Mônica!
Mônica mulher, feminina, fêmea, fugaz como um sonho; verdadeira como um sonho. Todos os homens são iguais perante ti e teu sexo, oh! Mônica Fêmea Fugaz. Fugaz como a própria vida; verdadeira e implacável como a própria vida. Fugaz como o sexo; imprescindível como o sexo; volúvel como a vida; inalienável como a vida...
Mônica tinha desejos incomuns...
Lembro-me de uma manhã – jamais esqueci que era a primeira quinta-feira de maio e fazia bastante frio – quando ela me sacudiu da cama:
– Fazes uma coisa para mim? – perguntou-me ela lançando o seu corpo sobre o meu.
Ainda sonolento, disfarcei um bocejo pronunciando um esquisito depende.
– Me deixas cavalgar em pelos?
– Cavalgar em pelos?! – disse eu, ainda bocejando.
– Sim... Deixas?
– Mas... em mim?! Já estás cavalgando em pelo em mim. Estás montada em mim, Mônica!
– Mas não é em ti. É naquele teu cavalo preto (aquele, todo preto); não é o que tem a mancha branca na cabeça, não; é o todo preto.
Isso, vindo de Mônica, era demais simplório. Causava espécie por ser – em se tratando de Mônica – um desejo demais banal; nada extraordinariamente ou inusitadamente sui generis. Para qualquer pessoa “normal” (e Mônica dizia: “Vocês é que não são normais – se reprimem”) cavalgar em pelos (ela e o cavalo) àquela hora da manhã, doze graus centígrados e vento regelante, seria inconcebível. Para Mônica, era apenas mais um desejo que ela não reprimia: “Vocês é que se reprimem” – ela repetia sempre para justificar seus atos e desejos.
Com seus mil beijos gananciosos, sexo úmido e quente a roçar sobre minha barriga, seios pululando a menos de trinta centímetros de minha boca, olhos grandes fixos em mim, boca entreaberta e lábios tensos denunciando prazer...
Foi assim que Monique (era assim que ela adorava ser chamada), foi assim que Monique – feminina, fugaz, fêmea insaciável – fecundou três vezes e abortou todas. Na primeira vez tomou chá de sene com cibalena, e dois chás foram suficientes; na segunda vez houve aborto espontâneo e, na terceira vez (já no quarto mês de gravidez), Mônica introduziu em seu útero uma sonda número quatorze, para retenção de urina, e em cinco dias vieram as cólicas e a hemorragia e muitas cólicas e Mônica ria e gemia ao mesmo tempo e diminuía o intervalo entre as cólicas e aumentava a sangria e aumentavam as cólicas e os coágulos sangüíneos e com um suspiro de alívio – mas com naturalidade – Mônica anunciou:
– Pronto! Saiu. Põe no formol pra mim, tá?
– É teu filho, Mônica!
– Sim, era e daí? Um amontoado de cálcio, ferro, enxofre, zinco, ácidos, aminoácidos... Não dizem que “as vacas nacionais são parideiras mas não são nada confiáveis”? Pois eu não sou a exceção não, meu filho! – disse Mônica, olhando-me por sobre o ombro com um sarcástico riso e se dirigindo para o banheiro, segurando com a mão direita um pano ensangüentado entre as pernas.
Já no banheiro, com o chuveiro ligado, cantarolando

“Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi.

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus.”

do Chico Buarque de Holanda, ela gritou:
– Vem dar banho em mim. No fundo somos todos uns hipócritas – animais mesmo... a vida é uma mera piada e só não riem dela os idiotas. Vem!

LIS
(NICARÁGUA AINDA)

– Remetente: “Ministro de Educación Fernando Cardenal, Complejo Cívico Camilo Ortega, Manágua – Nicarágua”! – Lis, em voz alta, leu novamente o que estava escrito fora do envelope e insistiu:
– Ministério de Educação é só disfarce, não é? Até aonde vão tuas ligações com movimentos internacionais de esquerda?! Por que da Nicarágua?
Não respondi e Lis, com incontrolável irritação, entregou-me a correspondência, e apelou:
– Finalmente, esse Cardenal pode – ele próprio – se definir? Creio que nem ele mesmo sabe se é um padre comunista ou um comunista padre! – o trocadilho era uma das muitas características de Lis quando o sarcasmo lhe aflorava.
– Faz diferença, Lis?
– Tu mesmo... Estranho muito o teu ateísmo cercado de profundas amizades religiosas... É Ernesto Cardenal na Nicarágua, é Casaldáliga no Araguaia, é Paganini em São Paulo, é Valdez na Colômbia, é Torrez no Peru, são os Pribak em França...
– Não são “amizades religiosas”, Lis; são amizades! E não tenho por hábito pedir atestado ideológico aos amigos...
– Estranho! Estranho e receio... Receio que te peguem. E que será de mim se te pegarem?!
– Estranho digo eu, Lis! Nunca te imaginei egoísta, e estás sendo extremamente egoísta.
– Não importa como se denomine isto; o que não quero é te perder... – Lis fez uma breve pausa e suspirou:
– Isso, nunca!
– Nada justifica o egoísmo, Lis. O sentimento de posse faz-nos medíocres e não há, em ti, espaço para mediocridades. Portanto, esse teu gesto é, para mim, demais estranho, porque é demais pequeno, mesquinho.
– E este tablóide?... “BARRICADA INTERNACIONAL”... Por que te mandam isto? – indagou-me Lis, enquanto me entregava o jornal que ela segurava entre as mãos com aparente revolta e indignação.

Os meses se passaram assim: sempre que chegava minha correspondência, Lis a examinava e perdia o autocontrole quando encontrava alguma correspondência da Nicarágua – a Nicarágua dos SANDINISTAS.

JANETE
E
“CEM ANOS DE SOLIDÃO”

Janete surgiu assim, inesperadamente; carente, meio sedutora; meio menina, meio mulher...
Há três semanas ela era a vizinha do lado. Vinha chamando a atenção das demais (vizinhas) por dois motivos: só foi vista no dia em que chegou e mais duas vezes em passeios rápidos pela calçada, empurrando um carrinho de bebê, com sua filha de mais ou menos quatro meses; e, segundo, era muito bonita e jovem, e vestia trajes sedutores (aliás, a pouca roupa lhe deixava irresistível!) e logo despertou o ciúme de toda vizinhança (mas eu mesmo não chamaria a isso de ciúme, mas sim de insegurança das demais vizinhas).
Uma tarde (daquelas tardes amazônicas – só sabe quem já viveu na Amazônia), uma voz suave e firme adentrou minha sala de trabalho, que ficava perto do portão de entrada, de onde vinha a voz, e, absorto no meu trabalho, apenas disse:
– Entra, por favor.
– Boa tarde!
– Boa tarde... Senta, por favor. – disse eu, sem olhar.
Após um breve silêncio, olhei sobre o óculos e quase tive uma síncope. Quis perguntar-lhe a razão da visita e não consegui emitir nenhum som. Ela compreendeu e tentou se explicar:
– Desculpa-me... é que preciso de um favor. – disse ela reticentemente e continuou – Estou incomodando? Parece que estava esperando alguém, menos a mim, claro.
– Estou surpreso!...
– Com?...
– Você aqui...
– Sabe quem sou?
– A nova vizinha. E como não saberia?
– E por que saberia?
– Você não me passaria despercebida em nenhuma circunstância. Até sua ausência me chama a atenção.
– Estou sendo inconveniente? – indagou a jovem, se levantando.
– Não! Não! Por favor... não é isso. É que...
– Eu preciso de um favor, e não conheço ninguém aqui.
– E em que posso te ajudar? Estou ansioso para te ser útil.
Fiz uma breve pausa e perguntei:
– Qual o teu nome?
– Janete.
– Quem, Janete? – perguntei-lhe, olhando para o livro que ela tinha na mão, com o dedo indicador entre as páginas.
– CEM ANOS DE SOLIDÃO... me identifico muito aqui... minha vida estaria até no título se fosse DEZENOVE ANOS DE SOLIDÃO... Já leu?
– Sim.
– Prefiro poesia. Estou relendo... Garcia Marquéz e Josué de Castro... leio os dois porque me identifico muito; reencontro minhas raízes. Prefiro mesmo poesia. Estou lendo Maiakoviski... Ah!!! já vou aqui!? – disse a jovem vizinha como se tomasse um susto, e continuou:
– Eu vim para te pedir um favor e eis-me falando de mim. É que vivo tão só (quero dizer: só eu e a Fabiana) e há vinte e um dias que não converso com mais ninguém, senão com a minha filhinha que mal sabe rir. Chego mesmo a pensar que estou pirando, sabe?
Janete parou abruptamente, pôs CEM ANOS DE SOLIDÃO sobre minha mesa e levou as duas mãos ao rosto. Entre soluços, disse, olhando-me por entre os dedos, com a voz mais terna que eu já ouvira:
– Desculpa, tá?
Atônito, sem saber o que fazer, aproximei-me dela e, num gesto atrevido, acariciei-lhe os cabelos negros, grossos e sedosos.
A jovem mãe, a minha vizinha do lado, recém-chegada, misteriosa e introvertida, chorava ainda mais na mesma proporção que eu lhe acariciava e tentava lhe consolar. Desnorteado, parei e fiquei mumificado ao seu lado.
– Não... você não está fazendo nada de errado, minha vida é que é um erro... Foi a mulher que me vende leite... ela me falou de ti, e eu só venho pela Fabiana. Reconheço que a mulher não pode mais me vender leite fiado, e já há dezoito dias que ela me fornece fiado... ela precisa pagar ao fornecedor, senão... Hoje, ela já não me vendeu mais... mas ainda foi até humana! me deu um pouco de leite para fazer o mingau da Bibi... Minha filha está chorando... estou desesperada... se não fosse pela Bibi eu não faria isto, te contar meus problemas...
– Mas não são teus problemas. Teus problemas são nossos. Todos os problemas humanos são de todos os homens. – tentei confortá-la, sem muita convicção do que eu estava falando.
– A mulher que me vende o leite já me havia falado mil coisas de ti, mas o que me chamou mais a atenção foi o pôster do Guevara no teu quarto... Mas por favor! eu não tenho culpa! é que do meu quintal posso ver o teu quarto... Foi quando subi para colocar o varal... Eu gosto muito daquela frase “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”... Lembra-me muito um tio meu que foi morto pelos militares... Lembro-me muito dele! Eu era criança, ele me punha no colo... era muito carinhoso... Só nunca entendi como uma pessoa tão carinhosa e amável como ele fosse “terrorista”.
Janete já não chorava mais, mas não queria parar de falar, e eu não queria interrompê-la, pois além de saber que aquela conversa toda lhe fazia muito bem, principalmente por ela ter passado tanto tempo sem ter com quem desabafar (pois com a leiteira tivera apenas uma relação comercial e o vexame das cobranças) eu estava adorando ouvir aquela jovem mulher – que antes parecera inacessível e misteriosa – desvendar-se aos meus ouvidos indefensa, frágil, carente, desprotegida...
Levantou-se subitamente e disse, dirigindo-se à porta:
– Vou só olhar a Fabiana e volto logo... – Janete olhou para trás e complementou:
– Isto é, se eu não estiver te estorvando.
– Pelo contrário. Se você quiser, pode até morar. – disse eu, pensando que ela não me fosse ouvir mais.
Em poucos minutos, Janete já estava de volta com a filha nos braços e disse-me sorrindo:
– Esta é a minha Bibi. A única coisa boa que aconteceu na minha vida. – fez um carinho na filha, voltou-se para mim e observou:
– Parece até que já nos conhecemos há muito tempo, não é?!?!?!?!?!?!?!?!
– Parece... Por quê?
– É claro que estava brincando, não estava?
– Quando?
– Quando eu fui saindo.
– O que foi?
– Eu sabia... nem lembra mais!
– O que, então?
– Deixa pra lá. Se não lembra é porque não tinha importância mesmo.
– Ah! não! Pode dizer o que foi.
– ... quando eu fui saindo...
– Ah! Sim! Se você quiser pode até morar? Eu não estava brincando. Não costumo brincar. Aliás, digo sempre que toda brincadeira é uma verdade disfarçada ou uma mentira não assumida; e vice-versa.
– Sabe que sou casada?
– Estou oferecendo abrigo e...
– ... é... parece até que nos conhecemos há muito tempo!
– Parece... Janta comigo?
Janete me olhou timidamente e eu percebi que a timidez não lhe deixaria dizer sim, portanto a induzi:
– Então, vamos para a cozinha; lá, você pode me ajudar a preparar alguma coisa para o nosso jantar.
No início, Janete vinha, preparava nossa comida e dormia na casa dela. Às vezes ela fazia a refeição comigo, às vezes ela levava para preparar na casa dela.
Dois meses se passaram assim, até que numa manhã Janete chegou mais cedo com a sua filhinha e um bloco de papéis encapado com cartolina rosa e uns versos líricos (os quais ela não sabia a autoria – “Ele me pediu com fome de um dia e eu lhe dei com a de toda vida”), estendeu-me o bloco, aproximou-se de mim e sussurrou no meu ouvido:
– Não consegui dormir!... Escrevi isto. Pode até me tomar por louca, mas por favor não me toma por vulgar... – suspirou Janete e prosseguiu:
– Não!... Deixa-me sair primeiro. Não, teimoso! Deixa pra ler quando eu sair, já pedi!
Janete escrevera uma quase-autobiografia e poemas de agradecimento e forte e súbita paixão. Havia também um terceto de um soneto meu entre seus escritos. Procurei por ela e só fui encontrá-la olhando meus livros. Aproximei-me por trás dela, encostei minha boca entre sua nuca e sua orelha e disse-lhe suavemente:
– Certamente seremos felizes!
– Sim. Certamente! Farei tudo para que seja assim.
– Li tudo. Li e adorei! Há até uns versos meus, também, não é? Fiquei agradavelmente surpreso. Obrigado.
– Quais?!
– Se os meus olhos te incomodam... fura-os, assim te amarei: cegamente!
– São teus?! – Janete interrogou e exclamou ao mesmo tempo, duvidando, e prosseguiu:
– Ganhei uma camiseta com este soneto. Mas... é sério?! Não imaginas o quanto eu queria te conhecer e é coincidência demais! Não dá nem para acreditar! – disse ela, virando-se e abraçando-me forte.
Olhos fechados, coração querendo saltar do peito, respiração ofegante, lábios roçando nos meus, Janete sussurrou:
– Aperta-me mais... mais! Nunca me senti tão segura!!!... Nem tão feliz! Você não pode sequer imaginar o que eu faria para eternizar este momento. E se alguém procurar por mim, digam que estou ocupada em ser feliz... Domingo, você tocou uma música que descreve muitíssimo bem este instante para mim... uma que diz: “Sou feliz, sou um homem feliz, e quero que me perdoem por este dia os mortos de minha felicidade”... Lembra?
– Ah! Sim... “Pequeña Serenata Diurna”, do Pablo Milanéz, cubano...
– Isso!... Pois é assim que me sinto neste instante: feliz! Feliz! Mas no fundo, no fundo, um pouco de sentimento de culpa pelos que não podem ser felizes como eu sou agora! Mas sou feliz assim mesmo!
Janete mudou-se definitivamente para minha casa e senti-me remoçado com a companhia dela e da Fabiana; e eu quase não trabalhava mais: vivíamos para brincar os três (a Fabiana já ensaiava os primeiros passos e as primeiras palavras, e quando ela estava dormindo todo nosso tempo era para nos amarmos e, vez por outra, uma partida de xadrez que, invariavelmente, Janete fazia a abertura com Gambito Francês, e comentava:
– Foi o meu tio “terrorista” (o que os militares mataram – esquisito, não é?! Ele nunca fez mal nenhum a ninguém e os que o acusavam de terrorismo o mataram!), foi ele quem me ensinou a jogar!! Eu tinha apenas oito anos! Ah! como me lembro! Ele dizia: “Adoro jogar xadrez porque posso trocar um peão por uma rainha ou um cavalo por dois bispos, e os soldados serão damas mais tarde.”.

TREINANDO GUERRILHA
(“MACACO TAMBÉM É GENTE”)

Um alto oficial – com comando na Amazônia – fez um relatório informando ao seu governo que eu treinava guerrilheiros na selva amazônica.
Surpreendeu-me! Surpreendeu-nos!!!
As informações estavam corretas até em detalhes, inclusive no que se referia ao número de guerrilheiros: “vinte e nove guerrilheiros, incluindo três mulheres”. Somente uma informação estava incorreta: nosso objetivo não era “assaltar o poder através da guerra de guerrilhas em todo território nacional”. Éramos cidadãos de várias nacionalidades latino-americanas, com objetivos localizados.
Há de se compreender o exagero do militar: além de militar adorar mostrar serviço (formação hierárquica da caserna), ele queria chamar a atenção de seus superiores, além do que os fatos exigiam ou mereciam. E conseguiu.
Uma manhã, um bimotor cessna, equipado com uma antena em forma de losango (asas, cauda, bico da hélice), sobrevoou o nosso acampamento por duas vezes seguidas. Pegamos tudo que foi possível, dando prioridade para armas, munições, medicamentos; e adentramos a selva, margeando um igarapé, no sentido noroeste. A uns oito minutos de acelerado-marcha distantes do acampamento, ouvimos uma ensurdecedora artilharia aérea irromper à nossa retaguarda. Pina Valdéz – uma colombiana recém graduada em medicina – que marchava logo depois de mim, olhando para trás e destravando o fuzil, gritou:
– ¡Tenemos traidor entre nosotros!
– Trataremos disso depois... Agora, é sobrevivência! – disse eu.
– A traição não ameaça apenas nossas vidas aqui. Esses recrutas mercenários da Força Aérea são insignificantes comparados a ameaça que representa um traidor entre nós. – gritou Inacito, na retaguarda da fila indiana.
– Vamos liquidar logo esse assunto. Não podemos seguir com um traidor em nosso meio. – disse o Cavazanne, paranaense filho de europeus.
Diminuída a marcha, alguém sugeriu que nos afastássemos da margem do igarapé, adentrássemos a selva e discutíssemos a questão. Mudamos o sentido da marcha em 90o e a meia hora de mata a dentro, onde a mata se apresentava totalmente inóspita, paramos e, somente aí, nos demos conta de que a artilharia da aviação ainda matraqueava no rumo do acampamento que, a menos de uma hora, deixáramos para trás.
– Escapamos por pouco! – exclamou Thelma, ainda assustada e ofegante.
– Estamos todos? – indaguei.
– Falta o Ruíz. – disse Leonora.
– ¡No!... cá estoy yo.
– Falta o Sílvio, então.
– Sim, o Sílvio.
– O Sílvio! Onde está o Sílvio? – indagamos todos de uma só vez, olhando-nos uns aos outros, estarrecidos e indignados.
– Filho da puta! É ele mesmo o traidor!
– Alguém o viu hoje cedo?
– Não! – respondemos em coro.
– Verme! Gusano! É ele mesmo o traidor! – bradamos todos a uma só voz.
A artilharia cessou, mas por toda manhã a aviação fez vôos rasantes sobre a região. Decidimos a imprescidibilidade de anularmos quaisquer vestígios que confirmassem as informações do traidor e, já por volta das 15:00 h, resolvemos providenciar a primeira refeição do dia, o que não foi tarefa difícil, apesar de ter sido indigesta para muitos.
O Nelson, já pré-neurótico com toda tensão acumulada, descontrolou-se com um bando de macacos bugio que se divertia conosco de sobre as árvores, disparou sua 765 em uma macaca que, para defender seu filhote, cuspira e mijara no rosto dele. Desaprovávamos a atitude do Nelson quando alguém sugeriu:
– Vamos almoçar churrasco de macaca!
– Estás louco?! A aviação nos localiza rápido pela fumaça.
– Faremos ao molho! – satirizou alguém, tentando aliviar a tensão dos demais.
Deliberamos que cavaríamos um buraco no chão, enrolaríamos a macaca com folhas de bananeira, colocaríamos assim a macaca no buraco e faríamos o fogo por cima, e que isto deveria ser feito o mais distante possível para que, no caso de a aviação localizar o fogo e bombardear o local, ficarmos a salvos nós e nossa refeição. E assim foi feito e, como prevíramos, o bombardeio foi intenso; e a salvos – nós e nossa refeição – Nelson e Mário Caê trouxeram a macaca que nos salvou da fome.
Ao ver a macaca sobre as folhas, Thelma teve fortes convulsões de vômito e gritou:
– Isso é canibalismo. Antropofagia mesmo! ‘Tão vendo que eu não vou comer isso... Parece uma moça assada!
Ruíz pegou a faca, cortou um considerável pedaço, o suficiente para que concluíssemos que sua fome era maior que todas as filosofias, e éticas, e princípios, e preceitos juntos. E um a um seguimos o Ruíz, até Leonora e a Thelma.
Repetindo já a terceira fatia, eu disse:
– Compreendo, agora, todos os canibais e todos os antropófagos do mundo.
– Eu os compreendo e os perdôo, irmãos na fome. – satirizou Velasquez, provocando risos e gargalhadas.
Logo descobrimos um problema sentimental constrangedor: o filhote da macaca continuava irredutível e inconsolável; chorava copiosamente e por nada queria se afastar da mochila de munição. Descobrimos que a pele da macaca sob a mochila era o motivo pelo qual o macaquinho não nos deixava em paz. Pina estendeu a pele da macaca sobre as folhas, no chão, e o macaquinho deitou-se em cima, soluçando. Pina disse que era nosso dever adotarmos o órfão e outras coisas mais que, confesso, nos comoveu a todos. Ela tentou nos convencer que “macaco também é gente; que somos todos preênsis, primatas de primeira ordem, antropóides, aglomerados de protozoários...”, que o fator Rh do nosso sangue vem do nome científico daquele macaco, que é Reshus... A Leonora até chorou; o Ivan, caladão como só ele e uma estátua, acariciou o macaquinho e sussurrou um grave:
– !Pobrezito!
O macaquinho ganhou nome: Ramón, e Ramón nos seguiu por muito tempo e só dormia sobre a pele da mãe (dele, claro) e com as carícias de Pina. E eu nunca mais esqueci de Ramón, da mãe dele e de Pina repetindo com a voz embargada:
– Macaco também é gente, gente!

SABER E SABEDORIA
SÃO COISAS DISTINTAS

UM BUGRE DEBOCHADO

AV. XV DE NOVEMBRO NO S N I

– Fala guema, guema... seis vezes.
– Guema, guema, guema, guema, guema, guema.
– Responda rápido: como é o nome da clara do ovo?
– Gema.
– O nome da clara do ovo é gema!!! – disparou o Guaracy, numa estrondosa gargalhada.
– Ah! O nome da clara é clara, claro, cara!
– Te peguei! Estás vendo o que é o cérebro humano? Te peguei. – gargalhava o Guaracy, o bugre mais moleque que já vi.
Em vão, tentei justificar que ele me condicionara a não fazer nenhum raciocínio lógico ao dizer: “Responda rápido”.
Aquele bugre debochado (que nunca perdia uma oportunidade para falar aos seus amigos sobre os meus conhecimentos gerais e minha sagacidade – segundo ele) se sentia agora o máximo, o vencedor. E mais que o vencedor: o fã que superou (venceu) o seu ídolo.
Aí eu me lembrei de um casal de amigos franceses que, há bem pouco tempo, quando falávamos sobre ensino e educação em França, contou-me que quando ingressaram na universidade, em França, houve um trote coletivo: um professor perguntou aos calouros qual a capital de um desconhecido país da África Central, de nome Burundi. Apenas uma jovem sabia a resposta e gritou com ares de superioridade:
– Bujumbura!
O professor, com estudada frieza, escarneceu:
– Sim. E daí?! O que você vai fazer agora com o seu conhecimento?
Silvianne e Dominique se entreolharam e arremataram, olhando para mim:
– Saber e sabedoria são duas coisas distintas.
Silvianne – lembro-me bem – ainda fez um adendo:
– Uma criança, quando aprende arremessar uma pedra, sai gritando para os amiguinhos: “eu sei arremessar pedras e você nem sabe”.
Lembro-me agora que esta conversa se deu na casa dos amigos franceses, para onde eu e Soninha fomos convidados para um jantar com comida francesa que Silvianne ensinaria Soninha fazer, com sobremesa brasileira que Soninha ensinaria Silvianne fazer.
Ficamos até tarde dessa noite no precário observatório do casal francês, com vários mapas do universo estendidos no chão, à espera de melhores condições para rastrearmos um cometa e observarmos uma pequena constelação que eles não conseguiam identificar no mapa.
Nessa época ainda, tive tormentos com o Sarará, funcionário público federal e militante de esquerda – não sei se tão à esquerda.
Parecia até que ele juntara todos os teclados e pianos velhos do mundo para eu consertar e afinar.
O Salvaterra nos deixava dúvidas, pois às vezes nos parecia um amigo fiel, em quem podíamos confiar, ora parecia um policial caxias a nos espreitar, cujas dúvidas eu compartilhava sempre com Soninha. (Depois, já bem depois, ficamos sabendo que ele era mesmo um policial).
Um dia, me senti o poeta da avenida XV... e aí eu dava meus plantões: manhã, meio-dia, tardezinha.
Avenida XV de Novembro, Guajará Mirim (em tupi-guarani quer dizer cachoeira pequena)... Essa avenida para mim é a maior do mundo! (Hipérbole não – para mim é), larga, bem larga, dezenas de garotas deslizando suavemente em suas bicicletas, no sentido Brasil – Bolívia. Aí vão as garotas mas belas e felizes (por isto mais belas) do mundo (hipérbole não, pois para mim são)... As garotas mais belas e felizes (por isto mais belas) do mundo – do meu mundo!
Avenida XV de Novembro, no 801, Guajará Mirim – Rondônia... eis um dos vários endereços meus relacionados em minha ficha no Serviço Nacional de Informações (SNI), o famigerado SNI da ditadura e da repressão.
Avenida XV... no 801... daqui eu via o Mamoré (o rio que une Brasil e Bolívia) e Guayaramerim (cidade boliviana que fica do outro lado do Mamoré). Aqui eu fui o poeta anônimo que contemplava três vezes ao dia belas garotas deslizando suavemente em suas bicicletas, indo e vindo para o trabalho ou pontuais passeios, e eu – o poeta anônimo – era o subversivo que “ameaçava a segurança nacional” da pátria colônia.
E isto tudo era motivo de deboche para o Guaracy, (o bugre mais debochado que já vi – não me canso de dizer) que, com suas gargalhadas ruidosas e escandalosas, se deleitava:
– Um cara como você ameaçando a segurança nacional!!! – gargalhava o bugre – Tu não és pouca merda não! ou este país é merda pura! – gargalhava o bugre (o mais debochado que já vi).
Um dia, eu voltarei à avenida XV, com ou sem festivais; com ou sem parcerias musicais; com ou sem missão de organizar (só que agora reorganizar) o Partidão; com ou sem pianos e teclados do Sarará; com ou sem “contatos secretos” para fazer com camaradas bolivianos... Ah! se voltarei! E tomarei sorvetes de cupuaçu em plena avenida, mesmo sem Heloise e mesmo sem Soninha – esta, assassinada com vinte e um tiros – e era assim que eles também queriam me ver: todo rendado de balas, como fizeram com Soninha.
Ah! se voltarei! E te pegarei outras vezes, seu bugre debochado:
– Fala: o original nunca se desoriginalizará, pois desoriginalizando, tudo se desoriginaliza. Fala! Pegar-te-ei outras vezes, seu bugre!

S A R C H A
(TESE E ANTÍTESE)

“Bate outra vez
com esperanças o meu coração
pois já vai terminando o verão”...

Sarcha cantarolava Cartola todo tempo com apenas três notas musicais: Mi, Fá e Lá.
Sempre que eu chegava ao comitê, Sarcha tinha uma pilha de papéis para bolinar, cantarolando Cartola e me olhando de soslaio. Um dia, perdi a paciência e perguntei-lhe se não sabia cantar a INTERNACIONAL. Sarcha nada respondeu e ainda continuou cantarolando. Aproximei-me mais dela e quase gritando perguntei-lhe se não estava me ouvindo. Ela parou, pôs as mãos sobre a pilha de papéis, olhou fixa e profundamente para mim e disse:
– Sabes que tu és a causa da separação dos meus pais? Tu és o responsável pelo ingresso de minha mãe neste partido... meu pai é religioso... minha mãe, de tanto ouvir tuas pregações, terminou atéia e um dia meu pai disse para ela: “Ou eu ou o partido”...
Sarcha parecia ser toda feita de ódio:
– A tua tese da “negação em si mesma” foi a gota d’água. Meu pai disse que tudo tem um criador... eles discutiram... meu pai disse: “A casa só existe porque alguém a fez”... e minha mãe rebateu, usando os teus argumentos... Meu pai disse: “... tudo tem um criador...” minha mãe disse: “Essa é a tese da negação em si mesma”. Meu pai ficou calado e minha mãe insistiu: “Essa tese obriga a existência de um criador do criador, e um criador do criador do criador, e um criador do criador do criador do criador, e um criador do criador do criador do criador do criador... infinitamente”. Meu pai disse: “Aquele comunista virou a tua cabeça”. Minha mãe jamais foi a mesma. Nós éramos felizes! A fé faz bem ao meu pai e, ademais, que mal faz crer em um paraíso eterno? Ao menos ajuda aliviar a dureza desta vida insana. Ilusão?! Que seja! “Ópio do povo”? Que seja! Pelo menos anestesia o povo da dor desta vida dura e crua... Tu és a causa da separação dos meus pais! E não tens o direito de...
Sarcha começou a chorar aos soluços e não mais conseguiu falar.

Sarcha deu-me as costas, saiu passo ante passo e nunca mais quis me ver, nem de soslaio.

E eu amei – e ainda amo – Sarcha assim mesmo: na sua ausência e com todo seu ódio. Com toda minha capacidade humana de amar, eu amo Sarcha com todo o seu ódio.

“NÃO ME TIRES O QUE NÃO
ME PODES DAR”

JUSSARA, O GRINGO NÃO CREU
NESSA INFÂMIA

Contava eu histórias para Jussara quando ela tinha apenas dois anos e poucos meses, e cujas histórias eu começava sempre assim:
– Era uma vez, uma negrinha que se chamava JU... JU... JU... JU...
Eu fazia uma pausa de suspense e ela me ajudava, fazendo coro comigo:
– Que se chamava Jussara! – e ela ria gostosamente, infantilmente.
Só nunca entendi por que ela prestava mais atenção e ria mais quando eu contava três histórias de Diógenes (sábio grego, cognominado “O Cínico”).
Contava eu:
– Quando Alexandre invadiu a Grécia, a pátria de Diógenes, este morava em uma caverna, nas proximidades de Atenas. Alexandre, conhecido também como o “imperador e senhor do mundo”, quis conhecer o sábio Diógenes. Informado de que Diógenes estava morando no mato e por nada queria ir à cidade, Alexandre – que tinha como seu principal desejo conhecer Diógenes – foi até à caverna de Diógenes. Diógenes tomava banho de sol e a carruagem do imperador se interpôs entre o sol e o sábio Diógenes. Alexandre perguntou ao sábio o que ele queria do seu novo imperador, e Diógenes respondeu:
– Quero só que não me tires o que não me podes dar.
Alexandre nada entendeu e o seu conselho de sábios muito menos. Assim, pediram que Diógenes fosse mais claro
e o sábio respondeu:
– Sai da frente, que eu estou tomando banho de sol, oh, monstrengo arrogante e prepotente!
A segunda história era a de quando Diógenes abandonara Atenas, jogara tudo fora e levara consigo apenas uma cuia para beber água, mas quando viu uma criança bebendo água na concha das mãos – em um córrego – ele ficou bravo consigo mesmo, quebrou a cuia na sua própria cabeça enquanto berrava furiosamente consigo próprio: “Como eu tenho sido idiota! Tenho ainda que aprender com uma criança!”.
Jussara ria e me ajudava encenar Diógenes quebrando uma imaginária cuia em minha cabeça.
A terceira história era a de quando Diógenes, em pleno meio-dia, com duas tochas nas mãos, acesas (claro), saía pelas ruas de Atenas, procurando:
– Cadê? Cadê? Cadê? Onde está?
E quando lhe perguntavam:
– O que procuras, sábio? – ele respondia:
– Um homem! Procuro pelo menos um homem em toda Grécia!
E Jussara me ajudava encenar Diógenes:
– Cadê? Cadê? Procuro apenas um homem em toda Grécia!
Só nunca entendi por que Jussara, com dois anos e poucos meses de idade, adorava estas três histórias, assim como nunca entendi por que ela fugia de casa.
Vários anos se passaram desde então e – um dia – nos reencontramos em Cuiabá. Jussara vinha da aula (não sei se balé, natação ou piano) e ela fugiu de mim, correndo pela avenida da Prainha.
Na ocasião, lembrei-me de quando ela fugia de casa e da lenda de que “comunista come criancinha”. Só que Jussara já está uma mocinha, e será que disseram – e se disseram, será que ela crê? – que “comunista come criancinha”?
Parece-me que o Gringo não creu nessa infâmia.

DE AJURICABA
AO GUERRILHEIRO DO CHE

Ouvi muito na Amazônia – em toda Amazônia que cobre o lado do Brasil, do Peru e da Bolívia – a história (ou lenda?) do “índio” Ajuricaba.
Dizem que, quando os colonizadores europeus quiseram escravizar os nativos da região, houve ferrenha resistência, e que Ajuricaba foi o exemplo e símbolo dessa digna resistência: acorrentado ao barco que o levava para o cativeiro, ele se jogou no rio, preferindo morrer do que ser escravo.
Talvez o hino boliviano homenageie esse personagem que a história oficial tenta – em vão – apagar.
Diz o hino:
“ANTES MORIR QUE ESCLAVO VIVIR”.

Conheci o primo do Júlio (cujo nome de guerra era Joaquim), um dos guerrilheiros do Che na Bolívia, morto em Valegrande, e seu nome homenageia o nativo herói: AJURICABA.
Com os parentes do Júlio (através do seu primo Ajuricaba) conheci um pouco mais sobre a guerrilha do Che na Bolívia.
Sob o pretexto de jogar xadrez para não chamar a atenção dos vizinhos e muito menos dos militares e demais forças de repressão, freqüentei a casa da família do Júlio, onde conheci alguns objetos, pessoas e histórias ligados à guerrilha do Che na Bolívia.
Em seu diário (que depois virou livro e cujo original foi vendido por milhões de dólares) o Che fez apenas um registro cronológico da guerrilha – como não poderia deixar de ser um diário! – e com todo amargor de um grande homem acuado e traído pelos bolivianos, desde os altos dirigentes do Partido Comunista Boliviano até os campesinos mais singelos!
O que ninguém falou ainda é que a intelectualidade internacional dita de esquerda ou simpatizante, e aí se excluem poucos ou pouquíssimos: Russel e Sartre por exemplos, assassinaram Guevara aos poucos – resta saber se coniventes com a CIA –, quando silenciaram na propaganda Revolucionária e se omitiram ou, na melhor das hipóteses, foram malemolentes nas campanhas de fundos para ajuda à guerrilha de Guevara na Bolívia.

AUTO-REVOLUÇÃO
NA ADOLESCÊNCIA

TRANSFORMAR TANQUES DE GUERRA
EM MÁQUINAS AGRÍCOLAS

MIL ERROS BÍBLICOS

O BÊBEDO SEMPRE SÓBRIO

ÀS VEZES VEJO SANGUE E PUS
NESTAS PÁGINAS

São inevitáveis as reminiscências dos primeiros anos de adolescência, recém-saído da casa paterna, com o compromisso pessoal de, se não conseguir vencer na vida, pelo menos não me deixar corromper. E o que seria vencer na vida? Porém, logo aprendi que NÃO VENCEMOS QUANDO DESTRUIMOS O NOSSO SEMELHANTE, MAS SIM, QUANDO DESTRUÍMOS O ANIMAL QUE HÁ EM CADA UM DE NÓS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Mais uma vez o pensador romano Cícero me dava lume: “É um erro educar uma criança na atmosfera apenas do amor familiar, pois quando essa criança cresce e descobre o mundo dos homens sofre um golpe do qual nunca se recuperará.” Cheguei à adolescência com essa educação restritamente familiar. Inversão de valores, dogmas ensinados como verdades absolutas, códigos de ética e conceitos rigidamente velados... Todas essas estúpidas cercas de giz que nos mantêm nos quintais de monges, cavaleiros (não é cavalheiros) e inquisidores medievais – em que pese a redundância, pois qualquer figura de inquisidor é medieval – foram tecidas em minha volta, e minha saída da casa paterna significou a definitiva ruptura com tudo isso, levando-me contiguamente a uma auto-revolução.
A educação tradicional é inescrupulosamente reacionária e conservadora. Em minha infância, passaram-me idéias errôneas – por exemplo – de que o ministro da justiça era o cidadão mais justo dentre todos os patrícios!
Inspirado talvez em Platão, logo que dispus de mim próprio, comecei intervir na política; e assim os fatos, a vivência, foram demolindo os falsos conceitos: “ministro da justiça autoriza massacres... ministro da justiça tinha conhecimento de torturas... ministro da justiça chefiava quadrilha de contrabandistas de pedras preciosas... ministro da justiça comanda pessoalmente massacre a posseiros que resulta na morte de uma mulher e duas crianças...”. Descobri também que, para esses medíocres, mentira ou verdade só faz diferença quando pela conveniência.
Foi quando o oriental e o ocidental se chocaram em meu cérebro, e um axioma da China pré-maoísta me acorreu: “Se um homem faminto rouba uma galinha para saciar-lhe a fome, vai para a cadeia; mas se rouba a nação, sobe ao trono”. Parecia, então, tudo explicado para mim, adolescente conflitando o mundo familiar e provincial com o mundo sem fronteiras.
Eu tinha fome – tinha carência mesmo – de conhecimento. Ouvia a Central de Moscou e Rádio Pequim diariamente às escondidas e era como se isto fosse a descoberta de um mundo novo, fascinante e irresistível. Tudo cheirava a novo e, como tal, fascinantemente irresistível.
Primeiro rádio “All transistor” (totalmente transistorizado), Philips holandês, cheio de novidades: antena telescópica, seis pilhas, sem válvula – o “milagre”! – só transistores (feitos de germânio), par casado na saída: AC 187 – AC 188; AF 115 na FI (Freqüência Intermediária) e AF 117 no Oscilador Local... “Um milagre!”.
Êpa! Êpa! Mas como “milagre”, se vivo a dizer que só gosto de eletrônica porque não existe margem para – sequer – a idéia de milagre?
A locutora do programa Pequim Informa perguntou:
– Qual a semelhança entre a lagosta e as Forças Armadas Brasileiras?
A resposta só foi dada no final do programa e nesse ínterim o comentário do dia tinha como título “O PETRÓLEO BRASILEIRO NÃO É DO BRASIL”, e, por fim, a resposta para a pergunta do dia:
– A semelhança entre a lagosta e as Forças Armadas Brasileiras é que ambas vivem nas costas do Brasil.
Provavelmente foi nessa época que ri ruidosamente pela primeira vez na vida! A Central de Moscou transmitia o “Mosaico” em espanhol, e falavam de produção, de recordes dos camponeses na produtividade e na produção de trigo, e condenavam os “metafísicos que ainda apregoam o ‘Rex gratia Dei’”... Senti que havia descoberto um novo caminho a seguir. E o locutor falava em estímulos à ciência e aos esportes; em transformar tanques de guerra (antigos T-34, usados largamente na defesa de Leningrado contra as tropas de Hitler) em máquinas agrícolas.
Aos treze anos eu tive, pela primeira vez, a sensação de que, se estava em um mundo estranho, pelo menos não estava só neste mundo, pois era como se ecoasse em minhas entranhas as palavras de Berthold Brecht: “Onde jamais se vira isso: que os frutos do trabalho tocassem a quem havia trabalhado? Onde jamais não foram expulsos de uma construção os que a haviam erguido?”
Nessa ocasião, determinei-me a ler a bíblia inteira pela primeira vez e anotar mil erros absurdos e ridículos... “e por que sobem tais pensamentos aos vossos corações?” – Lucas, 24 – 38.
E eu me perguntei e procurei na ciência a resposta para esta minha indagação: o pensamento sobe ao coração?!
Ou a ciência está errada ou quem escreveu isto não tinha o mais elementar conhecimento científico, o que significa que não houve nenhum “onisciente inspirador de evangelistas” -, e este questionamento me acorreu e me empolgou na tarefa de encontrar outros erros e absurdos bíblicos.
Jesus ia com seus discípulos por uma estrada e tinham fome; e encontrando uma figueira e esta não tendo frutos para saciar-lhes a fome, Jesus amaldiçoou a figueira. Ora!!! Com tanta fome e tanto poder e sendo “o filho do bem”, seria menos irracional ter dito: Dá frutos e que teus frutos saciem todos os famintos do mundo e que nunca mais morra uma só criança de fome! E Jesus agonizava entre dois ladrões e a um destes – “o bom ladrão”, como se houvesse bom ladrão – disse Jesus: “Hoje mesmo estarás comigo no reino do meu pai”, e Jesus levou ainda “quarenta dias para subir aos céus” - segundo o próprio evangelho – deixando assim o pobrezinho do “bom ladrão” esperando onde que ninguém sabe. A terra não é o centro do universo e Galileu soube o quanto custou afirmar isto; Giordano Bruno foi condenado a pena sumária por ter afirmado que o mundo está em constante transformação!!!...
Operava-se uma Revolução em mim!
Foi nesta efervescência que, um dia, conheci um bêbedo que falava de religião, de política, de mulheres, de proletariado, de luta de classes, de minorias discriminadas, de esportes... e afirmava a existência de uma papisa chamada Joana... e esse bêbedo falava de muitas coisas (como todo bêbedo) mas não era rico nem valentão. E esse bêbedo falava em muitas línguas (francês, inglês, latim, alemão...). E esse bêbedo vendeu-me muitos livros (raríssimos e antiquíssimos alguns), escritos em línguas que nem sabia eu que existissem... Havia um livro de Keppler (que ele traduziu o título como “MAIS ALEGRIA”) e um dicionário curiosíssimo até de título: “PEQUENO DICIONÁRIO HISTÓRICO E ELUCIDATIVO DE ASSUNTOS POUCO VULGARES”! E falava esse bêbedo em Rasputine e Catilina. E todos os dias esse bêbedo me procurava para vender-me seus livros, e ele bebia seus livros e eu saciava minha fome de conhecimentos com seus livros. E nunca mais eu vi esse bêbedo e em toda minha vida tenho visto raríssimos homens tão sóbrios. E esse bêbedo falou-me de Maquiavel e Marat, e disse-me esse bêbedo que o homem comete crimes por dois motivos básicos: “Primeiro, por vingança, que se caracteriza pela violência; e, segundo, por ambição e ganância, que se caracteriza pela argúcia e pela sagacidade”... e nunca vi ninguém mais sóbrio do que esse bêbedo.
Da luta pelo ingresso numa escola agrícola federal... e do colégio ardem-me (literalmente) as lembranças: meus livros considerados “proibidos, subversivos, imorais, atentadores aos bons costumes e à segurança da pátria”... (Frágil pátria!) queimados pela direção da escola... Um artefato caseiro que explodiu na sala da diretoria dessa escola... Não! Não! Eu não fui o “principal suspeito”, pois quando deveriam levantar suspeições, já vinham com o veredicto sentencioso condenatório... E o que dizer naqueles primeiros anos de golpe militar? (e nem chamavam ainda de ditadura militar eufemisticamente as noites de terror que inauguraram com o golpe militar).
Bater em retirada ou contra-atacar em outras frentes?
Não tinha ainda eu convicção da resposta.
Os partidos políticos – quaisquer que sejam – são, intrinsecamente, anti-revolucionários, pois que REVOLUÇÃO não é só “mudança brusca”; tem que ser também constante.
Revolução é mudança construtiva permanente, e os partidos políticos são anti-revolucionários, principalmente porque trazem em si mesmos um fim e o fim no bojo dos seus programas, estatutos, objetivos finais e militância, e servem apenas para ascensão dos oportunistas... Somente os MOVIMENTOS SOCIAIS e a CIÊNCIA PURA são verdadeiramente REVOLUCIONÁRIOS...
A professora do primário marcou-me profunda e indelevelmente a vida... Não! Não!... Não!... Eu sei muito bem que para o aluno a professorinha é a pessoa mais sábia do mundo, assim como o pai é o maior herói do mundo para o filhote. Mas é que Miriam Abrantes marcou-me profundamente a existência, não tão-somente pelo seu saber mas por sua sabedoria e extremada tolerância e compreensão. Lexicógrafa e filóloga em um mundo tão atrasado e aculturado que ela se satisfazia em ser minha biblioteca ambulante. Eu recitava, com todo seu estrênuo apoio e estímulo, poemas do Castro Alves em datas comemorativas nacionais: “VOZES D’ÁFRICA” no dia da “independência nacional” era o máximo!
Um dia, ela me disse:
– Tu és muito idealista!... (era recreio e ela tocava violão).
Eu cri nisto – sou o produto de tuas palavras, Miriam!
Pedi-lhe que me indicasse um bom dicionário para que assim eu lhe desse trégua, e ainda o tenho comigo como um inseparável tesouro. E meu primeiro contato com a obra literária de Catulo da Paixão Cearense foi através dela...
(Algumas décadas se passaram desde então e num encontro que objetivava a organização de um partido de esquerda, e somente aí, compreendi por que ela era tão essencial, humana e sublimemente diferente!! Superiormente diferente! Brechtnianamente imprescidível!).
Conflitavam em mim, na adolescência, dois mundos diametralmente opostos, e não muito me custou descobrir que, mais que opostos, eram antagônicos – o metafísico e o racional; o empírico e o científico; o dogmático e o estúpida e duramente vivenciado e vivido... Meus pensamentos, idéias e atos provocavam (quase que infalivelmente) reações. Tudo que saísse de mim era rotulado de “utopia”. Mas o que têm feito os homens senão concretizar sonhos que um dia foram “impossíveis”?! A partir daí descobri o subversômetro: pela perseguição dos reacionários eu media a eficácia de minhas ações.
A minha adolescência passou – como também a infância – com turbilhões de questionamentos, e as respostas para estes questionamentos significaram rupturas irreversíveis com um mundo atavicamente alienante. Daí vieram os primeiros contatos com movimentos estudantis de esquerda, as primeiras panfletagens, as primeiras reuniões secretamente clandestinas, a primeira experiência sexual, a clandestinidade – na qual sepultei quase toda minha existência, existência esta marcada por atentados contra minha vida, sendo que saí ileso de alguns mas de outros ficaram terríveis, profundas e indeléveis cicatrizes no meu corpo e na minha memória, e tanto que às vezes vejo sangue e pus nestas páginas que agora vos ofereço para o vosso deleite intelectual.

LIS
(FASE CRÍTICA)

“SÓ MORREM AS CAUSAS PELAS QUAIS NINGUÉM MORRE”

Começou o que eu chamo de primeira fase crítica de um relacionamento: a fase da comparação. Não que eu comparasse Lis com outras mulheres, mas – mais grave ainda! – com ela mesma, como se houvesse duas Lis; como se eu houvesse conhecido uma Lis extremamente segura, extremamente autoconfiante, toda razão e toda lógica... e de repente eu passasse a conviver com uma Lis completamente oposta: desconfiada, insegura, piegas, sentimentalóide...
Rotineiramente, durante os últimos vinte e oito dias, eu me acordava em meio à madrugada com Lis aos soluços, acariciando-me a face, sentada ao meu lado, vestida apenas com uma calcinha lilás (e ela já me dissera que, quando estivesse com aquela calcinha, era porque não queria sexo, preferiria carinhos, e que preferia a lilás porque sabia que me excitava mais e que eu sempre a elogiava e me “desmanchava em carinhos e carícias”), e eu já nem perguntava mais: O que há contigo, ó! Lis? Era sempre a mesma resposta:
– Deixa essa vida!... Nós podemos ser felizes longe de tudo e de todos. Teus ideais são impossíveis e utópicos... Pensa um pouco em ti. Morrer pelos outros não vale a pena.
No início desta crise eu ainda arriscava algumas frases de efeito, como “SÓ MORREM AS CAUSAS PELAS QUAIS NINGUÉM MORRE” e “Há algo mais forte do que todos os exércitos do mundo: um ideal, cujo tempo é chegado”, mas, por último, frases assim a levavam ao desespero:
– Estás vendo?... Tu não tens jeito mesmo! Pareces até suicida!
E Lis abraçava-me como uma criança com medo – muito medo! – e alagava meu rosto com suas lágrimas. E Lis já não era mais a mesma: era agora irreconhecivelmente toda medo! E eu, na minha eterna busca de explicação para tudo, cheguei a cogitar que tudo tivesse causa em uma reação bioquímica provocada por uma possível gravidez de Lis.
– Mesmo menstruada?! – indagou-me Lis, com um discreto riso entre as lágrimas, olhando-me em diagonal.
– Sim... Não é normal, mas há registros na literatura médica de alguns casos assim.
Lis não queria fazer o exame de gravidez com temor de que o resultado desse negativo. Ela passou os dois dias seguintes muito bem humorada, vivendo a expectativa de uma possível gravidez que o resultado do exame desmoronou. Ela fico inconsolável, e as próximas semanas foram terríveis!
– Não viveremos por muito tempo juntos... e o que eu mais quero é ficar com um filho teu. – Lis falava isto o dia inteiro, e com tal convicção que, mais que me levar à neurose, me deixava assustado.

A L I N E

(“QUANTO MAIS CONHEÇO O SER
HUMANO MAIS ADMIRO AS HIENAS”)

Aline se divertia ridicularizando-me com suas idéias e parábolas futuristas. Talvez buscando um equilíbrio para minha ideologia socialista, da qual ela discordava profunda e radicalmente. E esta nossa diferença ideológica fazia nosso convívio e nosso relacionamento tipicamente divertido, com lances de competitividade sui generis.
Aline adorava mesmo ridicularizar as minhas loas à cultura indígena.
Eu contava para Aline que, quando garimpei diamantes no Suapi e na Venezuela (às vezes olho minha fotografia de quando estive preso na Venezuela e lembro-me com indignação daquela expulsão), conheci uma tribo de nativos que considerava crime imperdoável um de seus membros comer ovo, pois – segundo eles – é a maior demonstração de cobardia comer um ser que ainda nem mesmo nasceu. Eu falava também para Aline dos xavantes – índios mato-grossenses – que têm o costume de, quando um membro da tribo rouba ou comete algum outro erro, a tribo não permite que tal índio case para, segundo eles, (conhecimento milenar de genética?!) não reproduzir outros ladrões e malfeitores. Falava eu também para Aline de tribos que cavam em volta do pé de mandioca e retiram-lhe apenas a maior raiz, preservando assim as outras raízes e, concomitantemente, sua fonte de alimentação, enquanto o “homem branco” arranca o pé inteiro de mandioca, retira a raiz que lhe interessa no momento e destrui sua própria fonte de alimentação...
Aí Aline contrapunha, só para ridicularizar, suas metáforas, as quais ela chamava de “memórias futuristas”:
– A criança, indignada de nojo, berrou para a mãe: “Mãããããê! Puseram leite no meu queijo!!!” E a mãe disse: “Não sejas estúpido, filho. Não vês que todo queijo é feito de agnenga?!” O filho disse: “Mãããããê! Esta água não tem cheiro nem sabor!” A mãe disse: “Não sejas estúpido, filho! Não vês que toda água tem cloro, flúor, potássio, cálcio, mercúrio, vitaminas, aminoácidos, entamoebas, resíduos fecais, enzimas, metalacidoprotozoariotoxinas?!... Portanto, toda água tem cheiro e sabor, filho.” O filho disse: “Mãããããê! Por que aquele homem está ali, parado e pensando?” A mãe disse: “Não sejas estúpido, filho! Não vês que somente as máquinas pensam?!”.
Eu contei para Aline que conheci dois vizinhos que viviam a discutir. Um, dizia:
– Amigo bom é aquele que me dá o que tem.
O outro retrucava:
– Amigo bom é aquele que não quer o que é meu.
Aí Aline ridicularizava:
– Amigo bom é o teu dinheiro; mas cuidado para não pegar notas falsas.
E Aline me desconsertava:
– Em terra de cegos, não é preciso ter um olho para ser rei: basta fingir que enxerga...
Eu dizia para Aline que se eu plantasse uma árvore não seria pela possibilidade de comer-lhe os frutos, mas pela esperança de que algum faminto saciasse sua fome e, saciado, sequer pensasse que um gitano anônimo houvesse plantado aquela árvore. Eu também dizia para Aline que um país onde investir na bolsa é atividade de menor abandonado, uma nação tão miserável que só é solidária na tragédia, e politicóides que se cospem e se lambem desavergonhadamente jamais poderia ser um país sério. E eu dizia mais: que a miséria do nosso semelhante faz-nos, a todos, mais vis e mais miseráveis. E que ninguém consegue ser feliz sozinho...
Aí Aline me dizia com a forma mais cínica que ela tinha de me falar:
– Assim como são os ratos são os homens – os que conseguem ser homens, porque muitos não passam de vermes ou, quando muito, nulidades ou mediocridades. Nós somos lixo genético na involução: após atingirem um estágio ultra- avançado, os teoses (assim eram chamados os homens), possuidores que eram de uma consciência ecológica elevadíssima, decidiram – talvez como resultado do primeiro encontro ecológico do planeta – voltar para a floresta e levar vida primitiva. Os aborígines ramaptecus a quem chamamos macacos são, portanto, seres superiores a nós... Sabes que quanto mais conheço o ser humano mais admiro as hienas? Os instintos têm sido mais úteis aos outros animais do que a razão aos homens!
Já por estes dias, quando eu cogitava sobre escrever estas memórias, lembrei-me muito de Aline, quando escrevia uma carta para Eliane (não a menina de rua que conviveu comigo na Amazônia) o seguinte: ... não havia sentido tamanha vontade de estar na selva como a que sinto agora, quando lá embaixo contemplo seres tão atrasados que nem sequer têm consciência de sua própria miséria, de suas deficiências e ignorância. E a própria dança (essa coisa convulsiva) atesta que esses seres não desenvolveram ainda o sistema nervoso central – o que os conserva nesse estado primata, macacóide, antropoidal -, e eu me lembro dos índios e dos macacos da Amazônia e constato que os macacos da selva já estão mais desenvolvidos do que esses seres daqui. E a própria dança dos selvículas da Amazônia atesta que essa expressão cultural (e por sua vez, uma manifestação do sistema nervoso central) já não é tão convulsiva como a daqui – e a convulsão é um reflexo patológico, mórbido e/ou uma atrofia de todos os seres dotados de sistema nervoso.
– As formigas não são nada admiráveis e muito menos exemplares. Há milhões de anos que, por não quebrarem a rotina, continuam bestialmente a mesmíssima coisa, hierarquicamente! Não evoluem, pois nunca subvertem a ordem estabelecida. (disse-me Aline, um dia, friamente).
Aline abalou minhas convicções!
Nossas divergências sobre Darwinismo: “The Variation of Animals and Plants under Domestication; On the Origin of Species by the means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life; The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex” (A VARIAÇÃO DE ANIMAIS E PLANTAS NA DOMESTICAÇÃO; SOBRE A ORIGEM DAS ESPÉCIES POR MEIO DA SELEÇÃO NATURAL, OU A PRESERVAÇÃO DE RAÇAS FAVORECIDAS NA LUTA PELA VIDA e A DESCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELEÇÃO EM RELAÇÃO AO SEXO” – livros de Darwin) eram bases para nossos debates, os quais se acirravam na “SELEÇÃO NATURAL”.
Então aprendi com Aline que a arma mais poderosa é a palavra: “um desses presidentes loucos, genocidas e beligerantes que por aí abundam, resolve acabar com o planeta, acionando seu arsenal atômico e o código para tal é a palavra ‘wartoba’ ou ‘tobawar’... Adeus planeta terra!!!, e que uma discussão nunca cai no vazio, pois se duas pessoas divergem sobre um determinado assunto e são irredutíveis em suas opiniões no decorrer da discussão (isto, por mera vaidade, exclusividade dos humanos – e toda vaidade é burrice) não significa que essas pessoas não tenham um mínimo de bom senso e de discernimento para reconhecer a razão uma da outra, nem tão cegas que não queiram ver a verdade. A título de exemplificação, se duas pessoas discutem que o homem era quadrúpede e agora é bípede, o que explica ser o homem e alguns outros macacos os únicos animais que nadam em posição diferente da que normalmente andam, tendo ainda que aprender a nadar, pois esqueceu durante os milênios de transformações, e uma dessas pessoas, mesmo convencida de que a outra está com a razão (por vaidade) não reconhece seu próprio equívoco, mas jamais ela defenderá o seu antigo ponto-de-vista, pois ninguém quer ser idiota.”
– Aline! Aline!
– Que foi?
– Isso não é diálogo. E eu não me proponho aos teus infindáveis monólogos!
Ah! Aline era sempre assim: carente de ser ouvida e, como todo mundo (ou quase todo mundo?) dizia que sua vida dava um belo romance.
– Me ajudas escrever um romance sobre minha vida? – ela freqüentemente me pedia.
– É só escrever... pega tua história, mistura com sete ingredientes: diálogo, ação episódica, atmosfera, temática, linguagem, problemática abordada e caracterização de personagens... e pronto! Difícil é leitor em um país de iletrados... e terás de trocar o miolo da cabeça por um miolo de pão!
– Chega!... já esqueci. Vamos virar o disco! – disse Aline, com o seu jeito de eterna menina de encarar as coisas e a vida, e deixar tudo para trás e jogar os problemas para o alto.
Vez por outra Aline me fazia as mais embaraçosas perguntas:
– Por que colocam etiquetas por fora das roupas?
– Para que os beócios consumistas não tenham que vestir a roupa pelo avesso, para exibir a etiqueta. – tomado assim de chofre, respondia eu meio atordoado.
– Por que tudo tem que vir dos Estados Unidos? Nós não fabricamos nada? Nem filmes?! E um tal de Glauber Rocha?...
– Porque, para os Estados Unidos da América do Norte, não é viável economicamente dominar outros povos pelas armas; é mais lucrativo dominar outras nações culturalmente, pois além de conseguir o domínio colonial, os dominados passam a ser agentes do dominador. O mundo inteiro não aplaude os Estados Unidos quando eles invadem outros países?
Falei um pouco para Aline sobre Glauber Rocha e disse-lhe que deveria ser matéria obrigatória nas escolas Castro Alves e Glauber Rocha, mas ela se interessou apenas quando eu lhe disse que glauber quer dizer incrédulo em alemão.
Aparentemente Aline não dava a menor importância para minhas respostas. Porém, passavam-se dias e mais dias e de repente, no momento mais inadequado e inesperado, Aline continuava um assunto interrompido abruptamente por ela – às vezes meses passados.
Então Aline vinha pueril e doce e se atirava sobre mim pura e nua, e suave e carinhosa viajava sobre mim, e meiga e febril deslizava seu corpo sobre o meu corpo, e ardente e terna me cobria de beijos, e insinuante e enlouquecida de prazer transpirava como uma operária, e extasiada e insaciável gritava que queria mais como uma patroa qualquer, e somente no sexo Aline se fazia mulher. Aline era menina e mulher; era profana e sagrada; profana quando sagrada, sagrada quando profana. Profana enquanto amante e sagrada enquanto amada.
Então Aline vinha pueril e doce e me fazia menino com suas meninices; e me deixava estonteado, confuso, com suas perguntas embaraçosas – de gente grande:
– Por que teria que ser um deus o criador de tudo?! Não poderia ser uma fêmea não? Esses machistas!...
E Aline nem esperava a resposta e jogava água em mim só para me provocar e saía correndo para que eu – também feito menino – saísse correndo atrás dela e quando a alcançasse eu a dominasse feito a fera e a presa e a levasse nos braços para a cama. Então eu falava para Aline das nativas bolivianas que, mesmo querendo o coito, se fazem de rogadas, dizendo:
– Tombame si me quieres.
E ao final do ato, delirantes de prazer, dizem:
– Pero, no lo quiero.
E Aline ria e parafraseava:
– Comeme si tienes hambre, que ya estoy hambrienta.

O PROFESSOR DE “CHINEZINHO”
E O HOMEM DE TERNO

– Doutor! Um instante só... É só um pequeno contratempo aqui. – falou a jovem vendedora da concessionária de automóveis para seu cliente de terno azul cinza e se dirigindo para mim, que naquela ocasião calçava tênis chinezinho, vestia uma camiseta remendada a mão por mim e uma calça desbotada com dois rasgões à altura dos joelhos (para variar a bermuda já quase refeita de retalhos).
A jovem vendedora, ao se aproximar de mim, mudou a alegre e jovial fisionomia e carrancuda e parecendo enojada indagou-me:
– Você não sabe que só damos na sexta-feira, à tarde?!...
– O que, moça?
– Esmola... você não sabe que só damos na sexta à tarde?!
Acostumei-me com cenas deste tipo e confesso que me dão o maior orgulho, “lavam-me o peito” e divertem-me.
Enquanto a vendedora falava comigo o homem de terno se aproximou de sua mesa, pegou algo e saiu com certa pressa. Já afeito e veterano com este tipo de discriminação (confesso com inusitado orgulho que isto me diverte) parti para a gozação:
– Quero comprar o último modelo... aquele que passa na televisão e diz que tem um ar fresquinho dentro.
Aí a vendedora chamou o guarda e disse:
– Tira esse engraçadinho daqui. – virou-se em direção do local onde deixara o homem de terno, olhou para a mesa, não viu o homem de terno nem o pacote que deixara sobre a mesa e gritou:
– Guarda! Guarda! Segura ele! É ladrão! Ele me desviou a atenção enquanto o senhor de terno levava o dinheiro do depósito!
Aí eu assumi o meu lado cênico e cínico. Dramatizei, fiz cenas teatrais para, propositadamente, deixar a dúvida enquanto me divertia; e isto durou até chegar a polícia.
A vendedora contou a história e eu quis contar a minha história mas os policiais disseram:
– Cala a boca, porra! Na delegacia tu isprica isso direitin. Ninguém te perguntô nada aqui...
Na delegacia, ao me ver, o delegado tomou um susto:
– O que há, professor?!
Waleska, a filha do delegado, era minha aluna de Biologia e adorava aulas de fecundação e métodos anticoncepcionais e foi a primeira aluna a aprender teoricamente – bom, não sei se na prática também – a fazer a tabela e ensinava para suas colegas:
– A partir do primeiro dia da menstruação, você conta quatorze dias... Pronto! É só não transar dois dias antes e nem depois do décimo quarto dia...
– Doutô! Ele tava...
– Cala a boca! Num te perguntei nada. – disse o pai de Waleska para seu subordinado e virando-se para mim.
Expliquei-me. O delegado liberou-me e saiu em diligência...
No início da tarde já haviam elucidado (aliás, esclarecido) o caso. Voltei à concessionária e a vendedora – meio sem jeito – tentou desculpar-se. Procurei confortá-la dizendo que aquilo já era rotineiro para mim, e que, de certa forma, me fazia bem, me divertia; que o importante era que ela tirasse lições daquilo tudo e que nunca mais julgasse ninguém pela aparência...

L E N I T A
(DESCENDENTE DA NOBREZA INCA
COM AS NÁDEGAS NO PRESENTE)

UMA INCISÃO FEITA A BISTURI
EM UM CORPO EXUMADO

DISPUTANDO ESPAÇO COM OS ABUTRES

Na esperança advinda com a abertura política, resolvi “peregrinar” à busca de apoio para minha proposta de unificação das esquerdas.
Conhecera eu por essa época – através do Jorge e de Adélia – o Mamede, então assessor do Dante de Oliveira (aquele – o pai adotivo das diretas já) – deputado em Mato Grosso. O Mamede, de início, se mostrou entusiasmado com a idéia e em nome do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, em homenagem ao último dia de vida do Che, cuja facção havia adotado a guerra de guerrilha urbana no período da ditadura militar), então em nome do MR-8 o Mamede me procurou várias vezes com propostas que – para a época – eram, no mínimo, suicidas para as esquerdas, o que não tardou para que o carrossel da história o provasse, como a eutanásia do MR-8 e outros segmentos esquerdistas.
Alguns anos se passaram – não sei ao certo o ano, lembro-me apenas que no início dos anos oitenta – estava eu na Universidade do Acre e uma funcionária da Assembléia Legislativa daquela unidade da Federação procurou-me, disse-me que simpatizava (pareceu-me que não só para me parecer simpática) com minhas posições ideológicas e que gostava de meus poemas e outras coisas mais... Com curiosidade incontrolável perguntei-lhe como ela sabia tanto a meu respeito.
– Lembras do Mamede?... Trabalha aqui, em Rio Branco... na Assembléia Legislativa.
Então, tinha eu dois motivos para passar, naquele dia, na pracinha que une Palácio do Executivo, Assembléia Legislativa, centro comercial e barracos de populares (onde vendem comida a preços “populares” e se disputa literalmente um lugar com cães, ratos e abutres). Aí eu compreendi por que o J. G. de Araújo Jorge, quando eu lhe comunicara que estava indo ao Acre, me dissera:
– Não deixas de comer buchada nos barracos do cais!...
Então fui à Assembléia Legislativa, e não encontrando o Mamede aí, resolvi conhecer o palácio do Executivo, a poucas dezenas de metros.
Tropas do exército instalavam armamento e equipamentos militares na pracinha, em frente ao Palácio e... um disparo de canhão que destruiu parte da parede da frente do Palácio. Claro que a explicação foi “um incidente”. Claro também que nunca me convenci disso. Naquela época os serviços de informações rastreavam-me passo a passo e minhas propostas desagradavam até mesmo setores das esquerdas.
O Mamede se confessou decepcionado com o MR-8 e muito mais com o Dante, e pareceu-me esconder algo; era demasiadamente reticente. Tentava mostrar-se efusivo e só conseguia ser lacônico e... Restaram-me dúvidas: quantos cabos anselmos existiram? Há pessoas que buscam espaço na esquerda porque se sentem incapazes de vencer na direita? Até onde os projetos e ambições pessoais obstruem o ser humano?... (Depois, o Dante foi eleito deputado federal por Mato Grosso pela legenda do PMDB e com o apoio do MR-8, e de minha casa saiu a idéia do projeto da emenda pelas diretas já, o que ainda rende dividendos eleitoreiros ao oportunista que o apresentou no Congresso Nacional).
Anonimamente vaguei pelas ruas de Rio Branco, ziguezagueando sobre os pontilhões do rio que corta a cidade como se fosse este uma incisão feita a bisturi em um corpo exumado.
Foi nessa perambulação que conheci uma jovem peruana que também vagava pelas ruas de Rio Branco. Fugida de casa com um turista gringo (como todo ser humano só queria ser feliz), mas depois de usada foi “descartada como pratinho de papel em festa de aniversário de criança” nas ruas de Rio Branco – segundo ela – “Pero, todo lo que yo quiero es la felicidad” (disse-me Lenita com seus negros cabelos longos esvoaçando ao vento e olhos turvos querendo penetrar-me até às entranhas, como se fosse eu o assassino da felicidade dela. Então perguntei para Lenita sobre seu passado e sobre seus sonhos para o futuro e Lenita disse-me entre longas reticências:
– É... meus pais vivem das glórias do passado e de projetos para o futuro... hoje... que somos?!... É... quem tem um pé no passado e outro no futuro vive com as nádegas no presente...
Lenita estava depauperada com os maus tratos, as noites insones e a fome por que passara nos quatorze dias já fora de casa. As horas que mal dormiu – se é que se pode denominar assim cochilos entremeados com sobressaltos – foram na estação rodoviária, entre bagagens, bêbedos, homossexuais e prostitutas. Então a convidei para um hotel e ela dispensou apartamento separado; e ante minha incredulidade, ela explicou:
– O que economizares com o apartamento eu aceitarei de muito bom grado, como ajuda.
– Não! Lenita! Prostituição não! Não quero teu corpo assim... como mercadoria!...
– ¡No!... !No!... yo no estoy ofrecendote nada... por lo contario: estoy dispensando... el apartamento...
– Para, em troca, dividirmos a mesma cama!...
– Ciertamente! Pero, dividirmos el mismo lecho no implica, necessariamente, tornar disponible my cuerpo.
Naquele instante tive vergonha de mim mesmo. Tive vergonha da mediocridade que domina todo macho diante de uma fêmea; tive vergonha de toda cultura machista, oportunista e espoliativa que o nosso mundo nos impregna. Tive vergonha dos dólares que trazia no bolso e naquele instante faziam a diferença entre mim e Lenita. Tive vergonha...

Lenita compreendeu o meu embaraço, pegou-me pela mão e seguimos o empregado do hotel, que nos levou ao apartamento 1437.

M A R A Í Z A
(A NEGRA MAIS BONITA QUE JÁ VI!)

UMA CRISE DE MISANTROPIA
GERADA POR MINÉRIOS INTELIGENTES

Era uma jovem pouco bonita para os padrões estabelecidos e exigidos; e como para compensar a beleza física que lhe faltava pelos padrões convencionais, Maraíza se desmanchava em amabilidades, simpatias, meiguices, doçuras, sinceridade e – de sobra! – sua voz suave e pausada marcava profunda e indelevelmente quem a ouvisse.
Maraíza sempre me saudava com incontido entusiasmo denunciado no sorriso largo marcadamente destacado pelos lábios carnudos e com um oi, ao qual ela dava uma pronúncia toda própria:
– Oôôôôôiiiiii!!!!!!!!!
Seus dentes extremamente brancos contrastando a cútis limpidamente negra sugeria a harmonia de todos os opostos. A coexistência pacífica e harmoniosa dos extremos e inconciliáveis se retratava em cada sorriso de Maraíza, cujo sorriso se fazia mais amplo e mais marcante ainda quando eu lhe falava, na minha mais incontida alegria:
– Tu és a negra mais bonita que já vi!!!!!!!!!!
Curiosamente nem conhecia ainda Maraíza e eu já a amava!... e a amava tão profunda e intensamente, tão fraternal e tão eroticamente como eu nunca havia amado ninguém! Eu amava Maraíza só pela sua voz – pela suavidade da sua voz – de menina e de quem só sabia rir. Comecei amar Maraíza como se fosse ela produto de minha imaginação; como se fosse ela uma criação minha a quem eu pudesse dizer: Sorri sempre para compensar as tristezas de minha vida! Sorri sempre que me ouças ou que me vejas ou que me sintas para que eu também possa sorrir! Sorri sempre para mim para que eu possa esquecer quão cruel é a vida! E eu comecei amar Maraíza no momento em que eu só me sentia capaz de odiar! E eu comecei amar Maraíza desde quando eu ainda nem a conhecia! Com toda capacidade humana de amar eu comecei amar Maraíza quando era só ódio todo o meu ser! Quando todos os seres humanos me pareciam lixo genético e abomináveis vermes, eu comecei amar Maraíza como quem se desencanta de um terrível pesadelo! E eu amei Maraíza como se no mundo não houvesse mais ninguém para eu amar! Como se fosse a única coisa que eu soubesse na vida eu amei Maraíza! Eu amei Maraíza bem mais do que muito e não mais porque o meu amor atingira o paroxismo! E desde antes – bem antes! -, quando ainda nem a conhecia, eu comecei amar Maraíza logo que ela atendeu ao telefone com o seu “Oôôôôiiiiii”, ao qual pela primeira vez eu ouvia e desde então para sempre amarei!
Foi casual...
Queria eu localizar um alemão (Christoff von Dhoffer), pois o mesmo esquecera comigo alguns documentos, e minha esperança de que Christoff ainda estivesse no país me levou a telefonar para uma sobrinha dele, e, por um feliz engano, inverti os números finais (93 por 39) e...
– Oôôôôôiiiiii!
– Chama tua mãe, por favor.
– Não está.
– Quero falar com alguma pessoa adulta...
– Sou adulta... – falou Maraíza, sempre rindo.
– Eu falo sério; e o assunto é sério.
– Eu também falo sério.
– Quero falar com Birgda, sobrinha do Christoff...
– Ah! Conheço. Por que não liga para ela? É 591-2293... E eu não sou criança não, ouviu, moço?!
Era o amor que me possuía; era de amor que eu ardia; era de amor todo o meu ser! Era o amor que me impulsionava; era só de amor que me alimentava; era do amor de Maraíza que por aqueles dias eu vivia! E não mais! E por nada e por ninguém mais! Pois era todo meu ser, pela época em que conheci Maraíza, um amontoado de decepções e desencantos... E eis que, com Maraíza, reacendeu em mim o amor sextilhões de vezes aumentado! E eis que com Maraíza o amor em mim renasceu como se não coubesse em mim!
– Tu és a negra mais bonita que já vi!
Quantas vezes, no frenesim, procurei Maraíza para – no paroxismo do meu amor -, como quem tem o mundo nos braços e pateticamente não sabe o que fazer com o mundo que tem nos braços, dizer baixinho em seu ouvido ou gritar como quem quer anunciar para o mundo: TU ÉS A NEGRA MAIS BONITA QUE JÁ VI!?!?!? E eu amei Maraíza quando o meu tédio patogênico substituíra em mim toda minha fé no ser humano e toda minha esperança de dias melhores para a humanidade.
Por essa época eu teorizava sobre MINÉRIOS INTELIGENTES, cujas teorias me levavam a conflitar com o Marxismo, haja visto que uma das premissas por mim levantadas sustentava que a Revolução Científica deveria anteceder a Revolução Social (e aí eu buscava na Dialética Histórica os exemplos irrefutáveis de que todos avanços sociais advieram com os avanços científicos: os próprios avanços logrados com o tear no fim da sociedade feudalista e surgimento da sociedade burguesa eram ilustrações incontroversas), e minhas teorias sobre minérios inteligentes arrebataram de mim – por meses seguidos – toda minha fé no ser humano: o silício, o germânio, a galena, o cádmio (pela minha mera concepção empírica – ainda sem nenhuma sustentação científica), e o silício em especial como matéria-prima inteligente dos semicondutores (díodos, transistores, circuitos integrados e chips para computadores), assim como quase a totalidade dos elementos químicos naturais, são encontrados no corpo humano. Todo nosso corpo é uma caldeira eletro-química. Todo universo é uma tríade: FÍSICA + QUÍMICA = BIOLOGIA... é possível (ainda – e infelizmente ainda! – não provável) que essas partículas minerais inteligentes que compõem o nosso corpo conservem no pós-morte do ser humano toda nossa memória, ao que a ignorância religiosa denomina de alma e espírito. Então, dentro deste contexto, o valor do ser humano para mim passou a residir na consciência humanista universal, ao contrário do religioso que berra que “Deus é onipresente – está em toda parte”, mas olha para um lado e outro e como não vê ninguém rouba o seu semelhante.
Foi nesta fase que me apareceu Maraíza...
Ah! como eu a amei!!!
Cheguei mesmo a concordar com o Lorenzo, quando ele dizia que “se Adolfo Hitler não fosse um religioso – e como tal, racista, preconceituoso – teria sido um grande benfeitor da humanidade, pois é preciso melhorar a raça humana, mas cor não é qualidade...”, porém, eu jamais perdoaria Hitler pelos comunistas, pelos negros e muito menos por Maraíza!
E foi exatamente nesta época que conheci Maraíza e ah! como eu a amei! Com toda minha capacidade de amar eu amei Maraíza! E foi com Maraíza que conheci o paroxismo do meu amor!

AMAZÔNIA
(“QUEM DE LOMBRIGAS E MALÁRIAS NÃO MORRE, DA EXPLORAÇÃO NÃO ESCAPA”)

“MESTRE MARTINS”
E A RAZÃO MAIOR DO EXISTIR
QUE É A ESPERANÇA

“AMAZÔNIA – A REGIÃO MENOS
BRASILEIRA DO BRASIL”

As malárias...
Ah! as malárias!
Ainda cheguei a contar quatorze, mas daí em diante desisti da banal enumeração do inelutável para quem vive na Amazônia. Até porque “as malárias (como me dizia o seringueiro Horácio) são como as mulheres que se vão: enumerá-las não nos alivia as seqüelas deixadas!”.
– O importante é viver tremendamente cada uma, a seu tempo. – satirizava Horácio, referindo-se às malárias... e às mulheres.
Ah! as malárias!... assim como as mulheres, não deixam cicatrizes aparentes; mas que marcam, marcam... Cada uma tem sua hora preferida; cada uma tem seu jeito próprio de chegada e de partida...
– Todas nos fazem tremer incontrolavelmente, e mente quem ao contrário diz. – falava-me o seringueiro Horácio, referindo-se às malárias e às mulheres.
As malárias... Ah! as malárias!... Bem que poderiam ser chamadas “as Marias, as Matildes, as Marthas, as Meires”... e assim poderíamos nos embalar tiritando ao ritmo de um tango de Gardel, ou de um bolero (não de Ravel) de Bienvenido Granda, ou de uma balada de Lennon, ou de um rock do Pink Floyd, ou de um rasqueado tocado no radinho de pilha nas entranhas da selva amazônica, onde só se ouve rádio estrangeira ou a Nacional de Brasília, fugindo de freqüência devido à má propagação das ondas hertzianas na região.
As malárias!... tantas e tantas que o município de Ariquemes – Rondônia, aí pelos meados dos anos setenta, era denominado pejorativamente “Aquitremes”.
Mas não tão-somente se treme de malária na selva amazônica, nos garimpos e seringais.
Lembro-me do garimpeiro Osvaldo (militante comunista do PCB desde l934 – um ano antes da “intentona comunista” – “stalinista convicto, mas tenho profundas simpatias por Bakunin”, como ele mesmo me dizia), lembro-me como se agora fosse tão indelevelmente marcante foi a emoção do Osvaldo quando cheguei ao Suapi e levado fui ao seu barraco pelo piloto de avião Pablo Torrez...
É que o Torrez prometera – de há muito – ao Osvaldo levar-me ao seu barraco para que nos conhecêssemos...
Osvaldo fora sindicalista e participara do inolvidável comício da Central do Brasil dias antes do golpe militar de l964, no Brasil. Daí, ele entrou na clandestinidade e, travestido de freira, conseguiu chegar até Vila Bela da Santíssima Trindade – antiga capital de Mato Grosso, banhada pelo rio Guaporé e a poucos minutos da Bolívia – de onde seguiu de barco para Forte Príncipe da Beira, tendo seguido dias depois para Costa Marques, de onde foi trabalhar como seringueiro em Roraima. Em meados de 1965, foi à Colômbia e – detectado aí devido às suas “atividades subversivas” – foi garimpar diamantes no Suapi, onde viveu por muito tempo na clandestinidade, com vários nomes falsos e exercendo uma plêiade de atividades para sobreviver. No Suapi, Osvaldo era conhecido, amado e admirado por todos como Mestre Martins...
– Martins!? Ó! Martins!?... – gritou o Torrez, quando nos aproximamos do barraco do Osvaldo.
– Imagina quem veio comigo. – prosseguiu Torrez, já tirando a taramela da porta do barraco.
Seguindo o Torrez, adentrei o barraco do Osvaldo (ou Martins – aliás, Mestre Martins) e um homem esguio deitado ao longo de uma rede, as pernas cruzadas de modo que os pés ficavam pendurados, o rosto enfiado em um livro vermelho que ele sustentava à altura do peito, olhou-nos por sobre o livro como quem estava sendo importunado e disse com incomum naturalidade:
– Ah! Que bom! És tu, Torrrez!? Senti muito a tua falta... Senta... – olhou para mim, ainda sobre o livro, e sem erguer a cabeça que literalmente mantinha dentro do mesmo, disse-me:
– Podes sentar, camarada! Esta é a nossa casa... Como é mesmo o nome do camarada?
O Torrez sorriu, olhou para mim e levou o dedo indicador direito aos lábios, num gesto de quem pede silêncio. Compreendi: o Torrez queria surpreender o Osvaldo.
– Trouxeste pilhas e sal para mim, Torrez?
– Sim...
– e jornais?
– Sim.
– e aspirina?...
– Sim, Martins.
– Mas desta vez não esqueceste minha sulfa?
– Sim, Martins.
– E novidades, Torrez... tens?
– Sim, Martins.
– Estou te estranhando, Torrez; tu estás muito monossilábico. O que estás a esconder de mim, Torrez?! – Osvaldo fez uma breve pausa, como se a aguardar resposta, e se esforçando para levantar-se da rede, indagou:
– Quem é o camarada, Torrez?
– Nem desconfias, Martins?
– ... Hum! Não faço a menor idéia.
– Mário Caê, ó! Martins...
Osvaldo saltou da rede, o livro caiu-lhe das mãos (aberto e a capa para cima, de modo que ainda li “DEZ DIAS QUE ABALARAM O MUNDO”, livro sobre a Revolução russa de outubro de 1917), e somente aí pude ver que Osvaldo era bem mais alto do que me parecera e assim me dava a impressão de ser bem mais magro. Porém, de tão velho e manuseado o livro, a tinta já havia largado da napa vermelha da capa do mesmo, mas do pouco que restara, concluí que o título era mesmo “DEZ DIAS QUE ABALARAM O MUNDO”, de John Reed.
As tintas dos livros largam e as páginas amarelam, e assim são as pessoas: apesar dos pesares são úteis em todas as circunstâncias!
Osvaldo abraçou-me em silêncio e sua descomunal estatura fez com que ele se curvasse, parecendo um ritual de reverência oriental. Uma voz trêmula, embargada e grave saiu-lhe a muito custo, de modo que nem consegui entender o que ele falou. Não refeito totalmente da emoção, Osvaldo virou-se para o Torrez e disse:
– Tu és um homem, Torrez! Um homem!
Torrez aproximou-se de mim, como quem quer segredar algo, e disse-me:
– Quando vim ao Suapi pela primeira vez, eu trouxe uns jornais, forrando umas caixas... O Martins viu e tomei um susto com ele me pedindo os jornais... daí, começou a nossa amizade e minha obrigação: toda vez que eu chegava no Suapi ele corria para me encontrar, e ia logo perguntando: “E aí?!... trouxe algum jornal velho?... Velho é o modo de dizer”, falava Martins, parecendo tímido, meio sem jeito... E não é que um dia ele leu uns artigos teus em um jornal e quando eu disse que te conhecia ele mal acreditou... tive que prometer que um dia te traria aqui...
Osvaldo pôs a mão no ombro do Torrez e indagou:
– Como é possível afirmar que a esperança em dias melhores morreu se os homens continuam sonhando? Como é possível afirmar que não haverá um novo amanhã se há homens que edificam Utopia a cada instante?
Conversamos longamente até alta madrugada sobre os mais variados assuntos. Percebi que havia uma lacuna histórica imensa na mente do “Mestre Martins” – de quando e quando ele me interrompia:
– E o pessoal da UNE?
– Exilados todos!
– Quer dizer que não há mais UNE mesmo?
– Não, Martins!...não há mais UNE mesmo!
– E as LIGAS?...
– Que ligas?!
– Camponesas, do Chico Julião, ora!
– Não há mais ligas, Martins! E o Chico Julião é um anônimo qualquer nas ruas do Rio de Janeiro.
– E...
– O país é outro, Martins!
Martins ia perguntando sobre isso e aquilo com tamanha voracidade que nem me dava tempo para resposta. Por fim, Martins falou com profunda amargura:
– Quer dizer que não é propaganda mentirosa burguesa, não?!
– Não, Martins! Infelizmente não, Martins!
Sem imaginar que voltaria outras vezes ao Suapi e a rever o Osvaldo toda vez que fraquejasse minha esperança de dias melhores para a humanidade, deixamos o barraco do MESTRE MARTINS com a mais profunda certeza de que nada supera a esperança como força propulsora da vida.
Osvaldo ficou na porta do barraco nos olhando em silêncio e seus olhos brilharam; e ele parecia pleno de esperança e de dor.

Restou-me apenas sair calado, deixar a dor e a esperança e trazer comigo um imenso vazio.

EPÍLOGO

Um dia, acabava eu de sair do banho, quando ouvi barulho metálico de arma automática. Claro que me assustei, e mais ainda quando vi Lis em minha frente com uma metralhadora Usi (arma israelense, assim denominada em homenagem ao oficial do exército de Israel de nome Usiel, cuja arma ele desenvolveu) apontando para mim.
– Teve medo? – indagou Lis, com um estranho riso nos lábios.
– Nunca imaginei que você soubesse manobrar uma arma!
– Também sei usá-la... e muito bem. Quer ver?
– Não em mim. – tentei mostrar a tranqüilidade que eu não conseguia encontrar em mim mesmo e dei-lhe as costas.
– Você é louco ou confia mesmo em mim?
Lis convidou-me – para aumentar ainda mais meu espanto – para irmos a um stand de tiros e aí ela fez o que eu não conseguia com uma Usi: rajar de dez em dez tiros. Entregou-me a arma, olhou-me profundamente e me abraçou com toda sua força, dizendo:
– Está assustado ou curioso?
– Os dois...
– Quer alguma explicação?
– Você deve alguma explicação?
Lis disse-me que tudo aquilo era a prova do amor dela por mim. Que pertencia (e fez questão de repetir que pertencia e não mais) a um grupo que tinha o objetivo de exterminar comunistas e que ela havia recebido a missão de assassinar-me, e que estava feliz por ter sido ela a escolhida...
– Claro! Pois se fosse outra, você já estaria mortinho da silva. – ela tentou explicar-se.
Lis fez uma retrospectiva em nosso relacionamento, mas sempre fazendo questão de salientar que, “felizmente”, conseguira me “amar desde o início”... que a haviam treinado para me matar, e outros detalhes mais, como por exemplo: que havia aprendido até jogar xadrez porque disseram-lhe que é o meu ponto fraco...
– Ainda bem que mandaram a mim... Só assim você está vivo e eu amando pela primeira vez. – Lis falava e ria, e me dizia que eu tinha que compreendê-la e acreditar que ela me amava “de verdade”.
Eu não consegui mais amar Lis nem confiar mais nela e foi tudo como caramelo que cai da boca na lama.

Alguns anos se passaram e fiquei sabendo que Lis fora para o exterior por força da família e que voltara doutorada em filosofia e que atualmente leciona na rede pública.

***> <*** Como dizer para um homem faminto (com filhos e mulher famélicos também) que tirar pão de um supermercado é um “ilícito penal” (e ilícito é o antônimo de lícito, necessário...), se este homem e sua família necessitam tanto desse pão para sua sobrevivência?!?! Eu jamais terei o que dizer para o fantasma do Gervásio que me acompanha como se fosse a minha própria sombra. Apenas sinto uma profunda vergonha e indignação... Afinal, Gervásio, o que é lícito: a tua vida e a vida dos teus ou alguns centavos para aquele que esbanja milhões?!?... Milhões acumulados da mais-valia do teu suor e sangue!!!!... Estava eu em um garimpo no rio Madeira, a poucos quilômetros da Bolívia, quando numa manhã chuvosa e de muita lama vermelha, estava no barraco quando da balsa vizinha alguns garimpeiros gritaram: – Mário! Chegou carne nova no pedaço! Eu sempre perdia a noção de tempo e naquela manhã sorumbática eu estava mais voltado para meus pensamentos quando eles insistiram: – Vamos, porra! Hoje é domingo e tem carne nova na Saramambaia. Saramambaia era a “casa de espetáculos” da Carminha, que na verdade era um bordel de garimpo: alguns paus e uma lona e mulheres que vinham transar o corpo a peso de ouro, e “carne nova” eram essas operárias da cama recém chegadas. “Carne nova” era Carla Patrícia que ao me ver deu um salto sobre mim, pendurou-se no meu pescoço e gritou: – É tu, seu sacana?!... Poucos dias se passaram e quando numa noite, Carla Patrícia discutia com Paulinha (“A Paraguaia”), esta lhe deu duas facadas na barriga. Encostaram o corpo num canto da barraca e a Saramambaia continuou como se nada houvera. ***> <*** Duas vezes procurei Dina – tentando uma reconciliação talvez – e na última vez ela me disse: – Tudo muda... as pessoas também... Só você não muda, cara... Você é a exceção da regra... estou noiva e não tenho tempo a perder... estou ajudando o meu futuro esposo no açougue dele... aliás, nosso: meu e dele. Não me procura mais, por favor!... E Dina deu-me simplesmente as costas e não me senti merecedor de mais. E eu compreendi que o perdão é a expressão mais arrogante de castigo para quem o recebe e a mais berrante expressão de incompetência e cobardia para quem o dá. ***> <*** Começou ainda na infância minha aversão por polícia. Na infância, vi um pobre mendigo ser assassinado estúpida e friamente por um policial, simplesmente porque teve vontade e baaann! Um tiro fatal! E nas historinhas que ouvi na infância os heróis eram os cangaceiros (“Justiceiros do Sertão”) e os bandidos eram os “macacos” (policiais). Tudo que veio depois justificou sobejamente a imagem formada na infância. Um policial não tem nacionalidade em sua estupidez e seus métodos de violência. O braço armado do judiciário. ***> <*** Há mais de meio século questões pela posse da terra estão sob judice e ouço vozes inidentificáveis da infância ecoando: “A JUSTIÇA É UMA PROSTITUTA CEGA” e vozes do presente extrapolando os porões: – J U S T I Ç A ! ***> <*** Pouco ou quase nada sei de Karla Lenina, pois nada ela falava de si. Quando eu lhe fazia alguma pergunta pessoal, ela falava de Rosa Luxemburgo, Anita Garibaldi, Indira Gandhi, Olga Benário... e dizia com preocupante humildade: – Minha vida não é nada importante. Há exemplos a seguir. E eu nunca soube nada de Karla Lenina senão de suas idéias. E eu não sei de onde ela veio nem para aonde ela foi. Sei que deixou comigo as melhores lembranças de um ser incomum. ***> <*** Na Plaza Mayo, em Buenos Aires, eu vi “las madres locas” (às quintas-feiras) chorando pelos filhos desaparecidos no terrível massacre da ditadura militar argentina. No Chile, vi estudantes massacrados nas ruas e universidades, pelos “carabineros” nazi-fascistas do sanguinário Pinochet. Na Amazônia, vi luxurientas fazendas produtoras de ócio e cocaína onde antes existiam tribos de índios livres e felizes. No Nordeste, vi crianças aos seis anos de idade com peso de recém-nascido. Em um garimpo de cassiterita em Rondônia, vi adolescentes vendidas como uma mercadoria qualquer em leilão. No Peru, vi camponeses metralhados por serem supostamente simpatizantes do grupo guerrilheiro maoísta Sendero Luminoso... ***> <*** A cada dia que passa eu sinto mais dificuldades em responder a pergunta de Heloise: “que país é este, afinal?”; e mesmo que eu tivesse uma resposta para Heloise (ou para mim mesmo) não há mais em mim a esperança de rever Heloise e dizer para ela: – Este país mudou para melhor, Heloise. E não menos consternado, e não menos constrangido, e não menos indignado certamente eu diria para Heloise, entre soluços, rosto no seu peito, lágrimas mornas, inconformado (como se diz: p da vida): Creio na mudança deste país como um canceroso terminal deve crer em milagre! ***> <*** Figuras doentias, esqueléticas (de constituição e compleição frágeis, porém de caráter férreo) anônimas e tão anônimas que se fazem pequenas e tão-somente pronominais: Ela e Você assumem a impessoalidade, a universalidade e a extratificação da dignidade humana. Ela e Você somos todos nós, igualados na dor, na tragédia, na alegria e na ânsia eterna de paz e felicidade; na busca infindável de prazer e bem-estar; na superação da dor e das tragédias cotidianas. ***> <*** Filosofias, éticas, conceitos, princípios, religiões... têm servido tão-somente para dividir povos e/ou para subjugação de uns por outros. Os orangotangos já construem edifícios e armas de extermínio em massa, mas também há os que – às vezes, com abnegação e até mesmo com o sacrifício da própria vida – dignificam a raça e ajudam os outros manterem acesa a esperança em um porvir melhor. O chinês morreu no início dos anos noventa, já beirando um século de vida exemplar e com toda lucidez de um chinês, e fiquei sabendo que morreu de desgosto com a onda perestroikiana. A última vez que nos vimos foi em uma viela de Havana, num antigo sótão, perto do mar caribenho, ponto de encontro de alguns estrangeiros, e ele nos dizia que “um país com um bilhão e trezentos milhões de habitantes consegue viver com dignidade, enquanto países com menos de duzentos milhões de habitantes, mais recursos naturais e a maioria do seu povo está relegada à miséria absoluta (e o China falava isto olhando para mim!) este país merece a especial atenção de vocês”. ***> <*** Desistir da luta não é apenas falta de amor: é falta de esperança, de perspectivas novas, de solidariedade... Desistir de lutar pode ser apatia, assim como pode ser até mesmo bom senso ou estratégia. Portanto, o amor por si só não faria ninguém lutar. O brio e a esperança também fazem o náufrago lutar quantas vezes se lhe afundem o barco. ***> <*** A Dialética nos ensina que um rio não é o mesmo rio a cada fração de tempo. O mundo nunca foi o mesmo, independente de qualquer perestroika. Mário nunca foi o mesmo: a cada fração de tempo crê mais no homem e na ciência. E a cada instante os avanços científicos comprovam que Mário está no rumo certo. ***> <*** Mônica casou-se com um rico fazendeiro goiano, mora no planalto central, tem muitos filhos e cuida de cavalos. Mônica tanto sabe ser feliz em qualquer lugar como – mais ainda – sabe fazer os outros felizes. ***> <*** Janete, assim como apareceu, sumiu; e por muito tempo procurei esquecê-la como se a faculdade de lembrar não fosse a mesma. E com isto ganhei todos estes anos de meia solidão, durante os quais me lembrava de Janete e do seu tio, que não conheci, e o parodiava: TROCO MEU REINO POR UM SEGUNDO COM JANETE NA CAMA. Tenho procurado – em todos estes anos – reencontrar-me com Janete como se, para mim, reencontrá-la fosse achar a mim próprio! ***> <*** Um país com cento e cinqüenta milhões de habitantes tem setenta e dois milhões de eleitores (menos da metade da população), sendo que desses setenta e dois milhões de eleitores trinta e seis milhões são analfabetos e semi-analfabetos, e elegem o presidente dessa república. É isto democracia – “governo do povo, pelo povo e para o povo”? Isto, sem contar com as agravantes dos artifícios com que as classes dominantes se mantêm no poder. Então, não críamos (e não creio ainda) em democracia, essa messalina cortesã serviçal dos poderosos a quem aluga seu pomposo nome para que justifiquem tiranias, injustiças, barbáries... e – segundo dizem – foi em nome dela que, democraticamente, entre Jesus e Barrabás, o povo escolheu ao ladrão (qual?)... e buscáramos a luta armada como quem rompe com todos os paradigmas. ***> <*** Impossível distinguir a clandestinidade do anonimato. Impossível também esquecer pessoas que, nesta imensidão geo-política, neste “mosaico” sócio-político, dão-nos – além do imprescindível apoio para nossa sobrevivência, correndo todos os riscos do comprometimento – lições de vida, lições de dignidade, de solidariedade, de esperança e até mesmo de certeza de que a raça humana melhora a cada instante. Soninha foi assassinada na noite de trinta e um de agosto de 1991, por volta das dezoito horas e vinte minutos, aos vinte e um anos de idade incompletos... Vinte e uma balas assassinas provaram que os vermes não são mais que vermes, selando prematura e cobardemente uma vida de dignidade. ***> <*** Um dia, recebi um bilhete da mãe de Sarcha: “Camarada Mário... Como é do teu conhecimento, Sarcha foi ao Congresso Internacional dos Estudantes na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas... ela mandou-me uns postais do Kremlin, do Mausoléu de Lenin, do Volga... mas pasme, camarada Mário: Sarcha escreveu-me dizendo que ficará em Moscou estudando balé e... pasme mais ainda: Sarcha mandou lembranças para ti! e pediu-me para dizer-te que ela já aprendeu que МИР (MIR) significa PAZ; СОЮЗ СОВЕТСКИК СОЦИАЛИСТЙЧЕСКИХ РЕСПўБЛИК (СССР) é UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS e que ПРАВДА (PRÁVDA) significa VERDADE em Russo. Fraternalmente Bia.” ***> <*** Não mereço – e nem mesmo espero – que os parentes, e principalmente os filhos, compreendam minha ausência. Um dia compreendi que minha família é todo o mundo e a consangüinidade é uma casualidade e não pode nos deter, e não haverei de me interpor entre o sol e os que buscam – ao seu modo – “um lugar ao sol”. ***> <*** Um dia, em uma gleba perto de Valegrande (Bolívia), uma camponesa que perdera o marido assassinado pelo exército boliviano e assessores militares estadunidenses sob a suspeita de haver colaborado com a guerrilha de Che Guevara, disse-me com lágrimas nos olhos e a voz trêmula, referindo-se ao Che: – O maior guerrilheiro do mundo morto pelo pior exército do mundo. E ele só queria nos libertar da miséria e da opressão. ***> <*** Aí, pela adolescência, conflitando mundos, conceitos, ensinamentos e princípios; diluindo sonhos e lutando para edificar projetos; polemizando idéias e – aluno do mundo –, como todo autodidata, sempre fui professor de mim mesmo; não o único professor de mim mesmo mas o professor intransigente de mim mesmo... Aí pela adolescência – autodidata – aprendiz de tudo e de todos, de grandioso aprendi desde então que a vida é uma história para ser contada na posteridade ou esquecida depois, para sempre. E que nos são reservados dois lugares na história: de agentes da história (sempre contracenados pelos oportunistas) e de espectadores. ***> <*** Aline gerou em mim as mais doces e terríveis dúvidas. Abalou-me as estruturas! Muitas foram as vezes que perguntei a mim mesmo: Vale a pena crescer? Estarei no rumo certo? Ser feliz não é ser como Aline?... Foi nessa época que adquiri um insuperável trauma: sempre que ouço o bip de um computador eu me lembro de Aline e penso que o mais sábio, mais douto, mais culto... dos homens não é capaz de usar 1% de todo recurso disponível na informática; aí, penso que o computador está gozando de minha cara, e me dá o maior complexo de inferioridade. Não mais soube eu de Aline para minha amargura e tristeza. Não mais!... e sequer consigo imaginar ou fazer conjecturas sobre seus dias. Nem sei se Aline continua moldando o mundo que a cerca, ao seu modo, ou se o mundo moldou Aline. Porém, agora que escrevo estas memórias decanas, uma notícia me chega – certamente a melhor em toda minha vida –, cuja notícia me conforta e substitui um pouco Aline: “O computador pode usar o ADN humano em seu circuito, com enésimas vantagens”! Quantas vezes discutimos sobre assuntos assim?! Hoje, eu não diria para Aline: A ciência vencerá! Aproveito até o ensejo para dizer para Aline, onde ela estiver, que a ciência já está vencendo! ***> <*** Do Mamede nunca mais soube eu nenhuma notícia e nem recebi dele qualquer sinal de vida – qualquer que fosse. Adélia é uma poetisa anônima e um ser humano superior. Vive em Cuiabá, no anonimato dos que fazem a história e desconfio de que tenha, neste ano de 1994, ajudado eleger governador de Mato Grosso o Dante (aquele que explora até hoje os rendimentos da emenda constitucional encaminhada por ele mas gerada, parida, alimentada e bem tratada bem longe dos gabinetes – principalmente do dele, pois evitávamos reuniões em seu gabinete por óbvios motivos). Adélia nos dá o exemplo vivo de que toda história é feita por trabalhadores e os que assinam embaixo são apenas os oportunista da história. De Lenita pouco fiquei sabendo depois... Descendia de “linhagem nobre” dos Incas. Por aproximadamente dois anos mantivemos contatos, nos quais fiquei sabendo que ela sobrevivia de artesanatos, legado cultural herdado de seus ancestrais. Da última vez que estive com o Chico Mendes pedi-lhe que ajudasse Lenita e, se possível, que a encaminhasse no PT (Partido dos Trabalhadores) do Acre. Com o assassinato do Chico, nunca mais eu soube de Lenita. Do J. G. de Araújo Jorge eu nunca esqueci seu riso meio paternal e meio mofa quando eu lhe contei sobre minha experiência de comer buchada tendo que espantar os abutres, ratos e cães em volta, com a panorâmica contrastante da Assembléia Legislativa e do Palácio do Executivo semidestruído logo à minha frente. ***> <*** Vivia eu – indubitavelmente – os dias mais terríveis de minha vida: acontecimentos nacionais e internacionais arrebataram-me estúpida e violentamente a esperança na Revolução e, mais ainda, a fé no ser humano – a mais profunda razão de minha existência! Não! Por aqueles dias (durante alguns meses antes de conhecer Maraíza) vivia eu uma espécie de desilusão com a raça humana; uma espécie de desencanto; uma verdadeira misantropia! Não! Não cria mais em nada: nem na Revolução e muito menos no ser humano! Era mais que misantropia! Era a desesperança! Perdera eu, por alguns meses – devido a fatos que não tinham explicação senão na estupidez, na mesquinhez e no egoísmo humano – todas as minhas esperanças em dias melhores para a humanidade. Foi nestas circunstâncias que conheci Maraíza (a negra mais bonita que já vi – não me canso de dizer), e com ela reaprendi amar, apesar de ter-me relacionado poucos meses com ela, pois logo sofri mais um atentado contra a minha vida e, na luta pela sobrevivência, privei-me dos encantos e da felicidade que ela me proporcionava... E nunca mais soube eu nenhuma notícia de Maraíza – a negra mais bonita que já vi! Foi nesta época que (se é que havia em mim alguma dúvida) adquiri toda convicção de que o nazi-fascismo estava (ou está?) errado. Verdade é que sempre fui um entusiasta da EUGENIA (melhoramento do patrimônio – código – genético, com total controle do ADN e através da inseminação artificial para o melhoramento geral da inteligência da humanidade), mas nada de arianismo, de racismo ou de qualquer ismo! Somente a ciência – sem predomínio de raça sobre raça –, até porque a questão não é de sub-raça mas de sub-cultura, sub-inteligência, submundo, subdesenvolvimento; de sub... E foi a partir de Maraíza que aprendi amar ainda mais (como se mais fosse possível) a África, e a odiar mais (como se mais fosse possível) o racismo. Não discordei do Lorenzo (e nem discordaria) e tampouco acrescentaria nada à sua idéia. Talvez – redundantemente – eu lembrasse a omissão da igreja católica e a conivência odiosas e odientas secularmente ante questões tão graves como o racismo. O Vaticano benzia lotes de escravos como se fossem animais de trabalho, porém um século depois o nazista João Paulo II (quem e por que mataram o I?) vai à África do Sul – no auge do apartheid – e (descaradamente, ante a nojenteza do racismo naquele país) pede aos negros perdão pelo envolvimento da igreja católica na escravidão negra... Possivelmente no próximo século um outro papa irá à África pedir perdão pela omissão ante o apartheid... É sempre assim, foi sempre assim... As religiões têm sido o maior entrave da humanidade. ***> <*** Inúmeras foram as vezes que ouvi (e a constatação fática por mim vivenciada deu-me alento para também assim crer) em toda região amazônica nativos, seringueiros e garimpeiros dizerem que “quem de lombrigas e malárias não morre, da exploração não escapa”. Seringueiros, garimpeiros, meeiros, poaieiros, pescadores, lavradores, canoeiros, peões, índios, prostitutas, imigrantes... herdeiros da miséria e da exploração, vão gerando riquezas para os patrões (nacionais e estrangeiros) que ficam cada vez mais ricos e perpetuam a miséria social na região. Não há consciência política que não sucumba à fome, mesmo que sucumbir sinonimize viver-morrer com dignidade. Mestre Martins – o Osvaldo – prescindiu de quase todos os bens e recursos materiais e tecnológicos que a sociedade hodierna conquistou: para viver, bastavam-lhe sal, pilhas para rádio e lanterna, sulfa, aspirina, revistas e jornais... e não mais! Nos seus olhos mortiços de quando o vi pela primeira vez se acendeu um brilho de esperança, que espero, com toda minha potencialidade de esperar, não tenha se apagado dos olhos do Mestre Martins devido essa onda tênue de que “o comunismo acabou” como forma ludibriosa de assassinar no ser humano (e nos trabalhadores em particular) a razão maior do existir, que é a E S P E R A N Ç A ! ! ! Ah! lembrei-me do Berthold Brecht: “Há pessoas que lutam um dia e são boas; há outras que lutam um ano e são melhores; há aquelas que lutam muitos anos e são muito melhores; porém, há as que lutam toda a vida: estas são as imprescindíveis.” NOTA DO AUTOR: A língua portuguesa – como as demais – obedece a uma lógica, orientando-se pela binariedade. Em sendo assim, eu prefiro a variação numeral do substantivo óculos (o óculos – singular; os óculos – plural) como aparelho para a visão determinada pelo artigo. A expressão haja visto que, composta pelo presente do subjuntivo (haja) mais particípio (visto) dos verbos haver e ver (infinitivos) respectivamente, como analogia a tenho dito (ter e dizer), jamais poderia ser haja vista – verbo e substantivo. Haja vista como tenha olhos para somente poderá anteceder a preposição para e haja visto como tendo visto (sendo do prévio conhecimento) somente poderá ser seguida do pronome que, e ambas expressões têm estruturas gramaticais distintas e, concomitantemente, valores e significados distintos, portanto usos distintos. E são ambas corretas. Os gramáticos só dizem: “Nunca use haja visto nem por erro e nem por absurdo”. Que absurdo! Espero que argumentem para crédito. Concluído em 24 de maio de l995, às 14:17 h, (seiscentos e trinta e oito dias nos cárceres da burguesia). Ah!... Isto – minhas injustas prisões – só me dão orgulho e me fazem lembrar Luís Carlos Prestes: “O Judiciário brasileiro sempre foi podre. Terrivelmente podre”, Paul Eluard: “Enjaularam os inocentes Como se fossem animais. Procuram os olhos Que viam claro nas trevas Para os vazar.” e Fidel Castro, em A História Me Absolverá:

"É compreensível que os homens honrados estejam mortos ou presos, numa república em que o presidente é um criminoso e ladrão."

PRÓLOGO À II EDIÇÃO

SUMÁRIO
Capítulo Título Pág.
I Lis, (No Mundo Dos Tuiuiús)............ 13
II Lis (Um Xeque-mate Pastorzinho)........ 19
III Pó Branco No Ventilador De Vocês,
Carla Patrícia Virou Memórias,
Assim Como Gervásio: Irreconhecivelmente Rendado
De Balas.............................. .00
IV Dina (Lição De Vida Na Cerca De Giz)..... 00
V Lis (Viajando Pelo Seu Corpo)............ 00
VI “Tremenda Cara de Marginal” – Caldeirão Geográfico.... 00
VII Reminiscências da Infância (“Justiça, Uma Prostituta
Cega”)................................. 00
VIII Persignam-se... (Karla Lenina)............ 00
IX Massacre em Toda Parte................... 00
X Heloise Um Caso Internacional (Inarrável É a Separação) 00
XI Um Escarro Vermelho,
Três Sodalitas,
Um Maçom e os Segredos da Maçonaria,
Ela e Você............................. 00
XII O Chinês e os Orangotangos............... 00
XIII “O Amor me Faria Lutar, no Entanto Eu Desisto”... 00
XIV A Legitimidade da Violência Contra a Violência Insu-
portável... 00
XV Mônica (Cavalgando em Pelos)............... 00
XVI Lis (Nicarágua Ainda)...................... 00
XVII Janete e “CEM ANOS DE SOLIDÃO”.............. 00
XVIII Treinando Guerrilha (Macaco Também É Gente)... 00
XIX Saber e Sabedoria São Coisas Distintas,
Um Bugre Debochado,
Avenida XV de Novembro no SNI.......... 00
XX Sarcha (Tese e Antítese)................... 00
XXI “Não Me Tires o Que Não Me Podes Dar”,
Jussara, o Gringo Não Creu Nessa Infâmia... 00
XXII De Ajuricaba ao Guerrilheiro do Che........ 00
XXIII Auto-revolução na Adolescência,
Transformar Tanques de Guerra em Máquinas Agrícolas,
Mil Erros Bíblicos,
O Bêbedo Sempre Sóbrio,
Às Vezes Vejo Sangue e Pus Nestas Páginas... 00
XXIV Lis (Fase Crítica)
“Só Morrem As Causas Pelas Quais Ninguém Morre”... 00
XXV Aline (“Quanto Mais Conheço o Ser Humano
Mais Admiro as Hienas”................ 000
XXVI O Professor de “Chinezinho” e o Homem de Terno.... 000
XXVII Lenita (Descendente da Nobreza Inca Com as Nádegas
no Presente),
Uma Incisão Feita a Bisturi em um Corpo Exumado,
Disputando Espaço Com os Abutres....... 000
XXVIII Maraíza (A Negra Mais Bonita Que Já Vi!),
Uma Crise de Misantropia Gerada Por MINÉRIOS
INTELIGENTES........ 000
XXIX Amazônia (“Quem de Lombrigas e Malárias Não Mor-
re, da Exploração Não Escapa”),
“MESTRE MARTINS” e a Razão Maior do Existir,
que é a ESPERANÇA,
“Amazônia - a Região Menos Brasileira do Brasil”... 000
EPÍLOGO:
Da página 000 até a página 139.

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6 comentários:

F. Antenor Gonsalves disse...

É claro que não é apenas um livro onde o autor relata e expõe minunciosamete detalhes de sua vida. Livro que além de contos, romances, também é uma história de lutas e conquistas de justiça e liberdade...
Cada vez que leio este livro - e já perdi a conta! - amplio minhas forças para lutar por um mundo humanista e mais justo.
Parabéns, Antenor!
É de idéias como as suas que precisamos para mudar o mundo para melhor.

Jair Francisco da Silva Júnior disse...

Tive a grande honra e o imenso prazer de ler esse livro através dos originais (escritos na injusta prisão), em plena fase de acertos com a editora para a publicação! Ainda que eu não estivesse à altura, esse grande homem me pediu sugestões e ajuda com a correção ortográfica e editoração da versão eletrônica que seria enviada à Editora; não sabem o quanto me emociona lembrar desses privilegiados momentos e o quanto me orgulha ter participado, ainda que de forma bem singela, da publicação desta monumental obra!!! Tenho saudades das agradáveis tardes que passávamos conversando sobre os mais variados assuntos; e do prazer de compartilhar da companhia e sabedoria de uma pessoa com uma mente tão brilhante e cativante, mente esta capaz de impulsionar seu corpo para a concretização de seus anseios, sonhos e ideais altruístas no contexto chocante da realidade caótica e cruel imposta pelas potências imperialistas e pelos grupos (civis ou militares) oportunistas (sinto-me envergonhado de ter uma mente fraca e incapaz de impulsionar meu corpo ao front)!!! vejo neste camarada a verdadeira figura do herói (não o estereótipo ianque dos quadrinhos e da guerra), pois ele reúne as qualidades de um verdadeiro herói, de um verdadeiro guerreiro (sei que ele é um ícone para seus companheiros de luta)! Uma coisa que as pessoas não percebem (por falta de leitura), é que as grandes mudanças e as revoluções que trouxeram algum benefício à humanidade não se deram por meio ou em consequência de religiões, de religiosos ou de pessoas passivas e obedientes, mas por meio da Ciência e por meio do sacrifício (mente e corpo) de homens como o Antenor, subversivos até o fim!

F. Antenor Gonsalves disse...

O Júnior é um dos que fazem parte das minhas quase duas dezenas de amigos; jovem extremamente generoso e inquiridor da Verdade. Há de se compreender a sua bondade e generosidade para comigo. Tu, à tua maneira, Jair Da Silva Junior, fazes a tua parte. Muitíssimo obrigado. Apenas uma ressalva: foi valiosa a tua crítica então, mas eu já havia feito a revisão, pois nunca aceito revisão (ortográfica) dos meus trabalhos por outrem, mas foram valiosas as críticas e observações aos originais feitas por ti, o que te agraço profundamente. Imensamente agradecido, do seu grande amigo F. Antenor Gonsalves.

Anônimo disse...

Camarada Antenor, muito obrigado pelas palavras! De qualquer maneira fico muito feliz de ter participado de alguma forma! Grande abraço, meu amigo!

Kelma disse...

Antenor,

Devorei cada página do seu livro, agora que terminei percebo que minha ansiedade não era apenas pela necessidade de saber do homem Antenor, apesar do título sugestivo de “minha bíblia”, mas também pela vontade de conhecer o revolucionário e agente político transformador.

Estou encantada com o li, principalmente com o fato de ter se despertado tão prematuramente para as questões sociais, por lutar incansavelmente por aqueles que não tem voz e pelos que sequer imaginam que são objeto de exploração.

Saber mais sobre sua trajetória, suas escolhas, o ideal pelo qual dedicou toda sua vida e sua postura com relação aos demais me fez admirá-lo ainda mais. O vejo como um ser raro daqueles que só conheci pelos livros, e sempre me questionando se eram tudo aquilo mesmo? Hoje vejo que é bem possível que tenham sido, pois você é tudo que li e acredito muito mais.

Só me resta agradecer pelo carinho e por ter me mostrado em pouquíssimas páginas tanto sobre tantas coisas.
Amei!!! Beijos.
Kelma

F. ANTENOR GONSALVES disse...

Amei a assinatura Kelma e que tenhas amado. Senti-me, também, amado por ti. Obrigado...
Antenor

Como podemos nós mesmos governar o mundo sem delegarmos poder a corruptos?

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